A festa que arrebatou Stefan Zweig em Salvador

Em 1941, na capital baiana, o escritor se rendeu à energia da Festa do Bonfim e foi homenageado com um busto na cidade.

Roteiros Literarios
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7 min readFeb 23, 2022

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por Andréia Martins

Busto em homenagem a Stefan Zweig em Salvador; foto do escritor para a carteira de identidade brasileira (Arquivo Casa Stefan Zweig) e a capa do livro que ele escreveu sobre o Brasil

E m 1940, o escritor austríaco Stefan Zweig (1881–1942) viajou de norte a sul do Brasil colhendo material para o livro Brasil, um país do futuro (1941). Era sua segunda visita ao país. É fato que o Rio de Janeiro, então capital do Brasil na época, tem o maior destaque no livro (como já contamos aqui; leia), mas Salvador não ficou atrás.

O livro é sobre o exílio e, ao mesmo tempo, um relato de viagem. Faz uma interpretação do Brasil que combina perplexidade e fascínio. São três capítulos dedicados à Bahia. “Com essa cidade teve início o Brasil e, com direito podemos dizê-lo, a América do Sul”, escreve ele sobre Salvador na abertura do capítulo A Bahia — Fidelidade à tradição.

A viagem pelo Brasil era um respiro frente à situação da Europa, envolvida em uma segunda guerra devastadora e com o nazismo em alta. Neste cenário, Zweig via aqui uma esperança a diversidade cultural e étnica do país, o que gerou muitas críticas à sua obra já que o Brasil vivia a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e também pelos estereótipos reproduzidos no livro. Em suas anotações, ele acredita que no Brasil existia uma interação pacífica entre brancos, negros, descendentes de indígenas e imigrantes de várias partes do mundo, o que não condizia com a realidade da época.

Pouco depois de um ano após a visita a Salvador, na noite de 22 para 23 de fevereiro de 1942, Zweig suicidou-se em Petrópolis (RJ), ao lado da mulher Elisabeth Charlotte Lotte. Sua carta de despedida, que intitulou “Declaração”, foi concluída com as palavras: “Saúdo todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes”.

Zweig e Lotte, ao centro, em Salvador. À direita, o jornalista e professor baiano D’Almeida Vitor, indicado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo para acompanhar o casal (Arquivo/Casa Stefan Zweig)

Em 1943, o escritor ganhou uma efígie em sua homenagem em Salvador, de autoria do italiano Heitor Usai, e que hoje está em frente ao Forte de Santa Maria, no Porto da Barra. É preciso saber da existência da obra para não passar despercebido por ela, como quase aconteceu comigo.

Em 1981, a obra foi reinaugurada na Barra (Arquivo/Casa Stefan Zweig)

Há ruas asfaltadas e muito perto delas ruas calçadas com pedras brutas; na Bahia podemos, num período de dez minutos, estar em dois, três ou quatro séculos diferentes, e todos eles parecem genuínos. O verdadeiro encanto da Bahia reside no fato de nela tudo ainda ser genuíno e não propositado; as chamadas “coisas dignas de serem vistas” não se impõem ao forasteiro, acham-se incorporadas de um modo imperceptível, no conjunto”. (Zweig, em Brasil, um país do futuro)

A Festa do Bonfim pelas palavras de Zweig

A Festa do Bonfim é considerada a segunda maior manifestação popular da Bahia e começa na quinta-feira que antecede o segundo domingo posterior ao Dia de Reis (6 de janeiro). É celebrada todos os anos desde 1754, reunindo milhares de pessoas no Largo do Bonfim, em frente à igreja, no alto da Colina Sagrada. As festividades prosseguem nos dias seguintes até o domingo.

Igreja Nossa Senhora Conceição da Praia; ao lado, vista da Praia da Barra, onde está o busto de Zweig

O festejo começa às 10h da manhã, quando os participantes se concentram em frente à Igreja da Nossa Senhora Conceição da Praia para dar início a uma caminhada de 8 quilômetros até a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim. O caminho — todo feito a pé — é um verdadeiro passeio turístico.

Naquele janeiro de 1941, a festa ganhava uma testemunha diferente: Zweig, acompanhado da mulher Lotte estava na capital para pesquisar temas para um novo ensaio. Para sua sorte, chegou à cidade a tempo de acompanhar a Festa do Bonfim, o que lhe causou um grande impacto.

Tive a feliz oportunidade de ver a do Senhor do Bonfim. O Senhor do Bonfim tem na Bahia uma igreja, que com uma encantadora vista está situada numa colina. (…) O grande largo é destinado aos muitos milhares de pessoas que, na maior alegria, passam as noites da semana de festas ao relento.

Toda a fachada da igreja acha-se profusamente iluminada à eletricidade e à sombra dos coqueiros estão armadas numerosas barracas, nas quais se vendem comidas e bebidas; pretas baianas, acocoradas na relva junto de seus fogareiros, regalam o público com suas variadíssimas guloseimas baratas, e atrás delas dormem, no meio daquele banzé, seus filhos.

O escritor “é curioso como um repórter. Quer saber tudo, quer tudo ver, quer que tudo lhe seja explicado. Diante de uma bahiana legítima, de barangandans e chinelas bordado que saber a origem do traje, o nome de cada peça do vestuário. De lápis em punho vai anotando tudo em sua carteira. Escreve em alemão e, sorrindo, nos diz: ‘Só uma coisa eu não sei anotar. Esse azul maravilhoso do céu e do mar da Bahia. Bahia, terra ideal para os pintores’”, relata reportagem do jornal A Tarde, de 16 de janeiro daquele ano.

O cortejo que termina com a lavagem da escadaria do Senhor do Bonfim é comandado por baianas que usam turbantes, saias engomadas, braceletes e colares, carregando vasos com água de cheiro. Atrás delas vem o bloco Filhos de Gandhi e uma multidão de fiéis. Todos se vestem de branco, a cor de Oxalá.

Sobre as baianas, Zweig escreve:

Mas o que torna imponente o préstito são as baianas que, com fervor religioso e majestade, carregam sobre a cabeça jarras com flores durante todo o longo trajeto, com um sol intenso. Essas rainhas pretas, que a fim de completarem seu traje colorido, ainda pediram emprestado aqui um lenço rendado e acolá um colar, radiantes de felicidade por servirem ao Senhor do Bonfim e serem admiradas pelo povo, dão uma impressão aparatosa”.

A festa é dividida em diferentes momentos: as novenas, o cortejo, a Lavagem das escadarias e do adro da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, os Ternos de Reis e a Missa Campal. O apelo e tradição da festa fizeram com que Senhor do Bonfim fosse considerado o padroeiro não oficial da cidade (o oficial é São Francisco Xavier).

O caminho é um verdadeiro passeio turístico, começando pela própria Igreja da Conceição da Praia, construída no século 17, em estilo gótico.
Em seguida o cortejo passa por por dois cartões postais: à direita, o Elevador Lacerda (o elevador liga a Cidade Baixa à Cidade Alta) e do lado esquerdo o Mercado Modelo com quase 300 lojas que vendem artesanato e lembranças locais. Na sequência, a caminhada segue por toda a Av. Miguel Calmon.

O Elevador Lacerda e o Mercado Modelo, em Salvador (fotos: Roteiros Literários)

Zweig prossegue sua descrição sobre a festa:

Em carroças muito primitivas estão sentados os rapazes, cada um com uma vassoura sobre o ombro, e sem cessar toca uma banda de música desarmoniosa, mal ensaiada. Tudo isso brilha e se agita na claridade intensa, e por trás está o mar azul e por cima o firmamento, também azul. É uma exuberância de cores e de alegria”.

Já encontramos a igreja cheia. Mulheres, homens e inúmeras crianças pretas e risonhas estavam ali aglomeradas à espera do cortejo. (…) Quando o primeiro tiro de morteiro avisou que numa curva do caminho aparecera o cortejo, deu-se uma dessas explosões de júbilo que raramente eu vira. As crianças bateram palmas e sapatearam de alegria, os adultos gritaram: “viva o Senhor do Bonfim”, e a igreja inteira retumbou durante um minuto esses brados de júbilo.

Depois de mais uma caminhada, chegando aos pés da Colina Sagrada, é hora de amarrar as tradicionais fitinhas do Bonfim e fazer seu pedido. Mais tarde, depois da missa de frente para o pátio, as baianas começam a Lavagem do Bonfim.

Havia algo de tão violentamente arrebatador e contagioso nessa lavação cheia de gozo que não tive certeza de que, se me achasse no meio daqueles indivíduos exaltados, não agarrasse uma das vassouras. Foi verdadeiramente o primeiro acesso de loucura coletiva que vi e que se tornou mais inverossímil pelo fato de ocorrer numa igreja, sem uso de álcool, de estimulantes, sem música, e em pleno dia, sob um céu magnífico e radiante”

Trechos retirados do livro Brasil, um país do futuro, de Stefan Zweig.

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