A grande queima de livros em Berlim

Em uma noite de maio de 1933, mais de 20 mil livros foram atirados na fogueira pelos nazistas.

Roteiros Literarios
roteirosliterarios
10 min readNov 9, 2020

--

por Leonardo de Lucas

Livros são queimados em Berlim, na Alemanha, durante o nazismo

Opernplatz (atual Bebelplatz), 10 de maio de 1933. É uma noite de chuva fina e de céu nublado em Berlim. Cerca de 40 mil pessoas, jovens em sua maioria, aguardam ansiosas a realização de um grande evento.

No meio da praça, uma imensa estrutura de toras entrelaçadas de quase dois metros de altura é posta em chamas. As labaredas lançam um clarão que alucina as massas. Como num desfile militar, milhares de estudantes marcham exibindo com orgulho as cores de suas universidades. Ao se aproximarem da enorme pira, atiram pequenos volumes ao fogo.

No entorno da cerimônia, muitos carros chegam com seus porta-malas abarrotados da mesma carga que era incinerada pelos alunos. Passam de mão em mão os pacotes até que o material chegue à combustão final.

Apesar de inflamáveis, esses objetos não têm essa utilidade, não foram produzidos com essa intenção. No entanto, é isso que acontece. O mesmo país que há quase 500 anos havia inventado a prensa tipográfica móvel, o que possibilitou a popularização global desse bem e do conteúdo que ele traz consigo, tragicamente, pela força bruta da irracionalidade nacionalista, sepultava sua própria criação.

Um dos maiores crimes que se pode cometer contra a cultura de um país ou de um povo é destruir sua memória, seus registros, sua história, suas ideias. Queimar livros como forma de punir e eliminar inimigos políticos, etnias minoritárias, modos de pensar e de viver diferentes é um ato tão bárbaro que deveria ser condenado e combatido por toda a humanidade.

Naquela noite perversa, estima-se que estudantes e membros do partido nazista tenham incinerado 20 mil livros. Entre os autores alvos da fúria intolerante estavam: Sigmund Freud, Karl Marx, Thomas e Heinrich Mann, Albert Einstein, Franz Kafka, Karl Kraus, Ernst Bloch, Robert Musil, Rosa Luxemburgo, Emil Ludwig, Bertolt Brecht, Arnold Zweig, Erich Maria Remarque, Erwin Piscator, Walter Benjamin, Stefan Zweig, Arthur Schnitzler, Marcel Proust, Romain Rolland, Emile Zola, Máximo Gorki, H. G. Wells e Ernest Hemingway.

O ato, intitulado “Ação contra o espírito não-alemão”, foi transmitido ao vivo pelo rádio e filmado para depois ser exibido nos cinemas do país. Um estudante fez um discurso contando sobre o objetivo do extermínio das obras daqueles autores em solo alemão.

Goebbels discursando no ato

Pouco tempo depois, outro aluno leu uma lista para que aqueles nomes ficassem gravados na mente de todos os espectadores.

O ponto alto do evento foi comandado por Joseph Goebbels. O ministro da propaganda nazista falou do nascimento de um novo homem alemão, livre do intelectualismo judaico:

Esta é a missão dos jovens, por isso vocês estão certos de, nesta hora tardia, entregar o lixo intelectual do passado às chamas. É uma forte, grandiosa e simbólica responsabilidade, uma responsabilidade que irá provar a todo o mundo que a base intelectual da República de Weimar está sendo derrubada agora; mas que a partir das ruínas irá crescer, vitorioso, o senhor de um novo espírito”.

O ATO

A queima de livros (Bücherverbrennung) foi organizada pela estrutura estatal nazista, pelo Comitê Geral dos Estudantes e pela União Estudantil Nacional-Socialista. Contou com a presença de reitores, professores universitários e líderes estudantis, além da alta cúpula de Hitler. O evento ocorreu simultaneamente em 34 cidades universitárias alemãs.

Com a transmissão pelo rádio, as exibições nos cinemas e a cobertura da imprensa, nos dias seguintes, outras fogueiras foram organizadas nos pequenos centros. A partir daí, deu-se início a uma caçada a toda e qualquer obra que fosse considerada impura, decadente e degenerada. Tropas nazistas invadiam casas, livrarias e bibliotecas a procura dos títulos listados.

O escritor Erich Kästner testemunhou anônimo a queima de seus próprios escritos e registrou a consternação no texto Sabe a terra onde florescem as armas? (Kennst du das Land, in dem die Kanonen blühen?).

O psicanalista Sigmund Freud, quando teve conhecimento de que seus livros haviam sido incinerados, ironizou: “Que progresso! Na Idade Média teriam me queimado. Hoje só queimam meus livros”.

“Queimem-me!” (“Verbrennt mich!”), lançou o escritor Oskar Maria Graf em um artigo de jornal, ao saber que seu nome não havia sido incluído entre os autores condenados pelo regime. “Estou na lista branca dos autores da nova Alemanha e todos os meus livros, à exceção de minha obra principal Somos prisioneiros (Wir sind Gefangene), foram poupados!

Com isso, fui conclamado a ser um dos expoentes do ‘novo’ espírito alemão! Não mereci esta desonra! Com relação a toda minha vida e toda minha obra, tenho o direito de exigir que meus livros sejam lançados à chama pura da fogueira e não venham parar nas mãos sangrentas e nos cérebros podres dos bandos assassinos marrons”. Meses depois, o pedido de Graf foi atendido.

Bertolt Brecht fez um poema para elogiar a coragem do amigo de publicar tais dizeres:

“Quando o Regime ordenou que queimassem em público

Os livros de saber nocivo, e por toda a parte

Os bois foram forçados a puxar carroças

Carregadas de livros para a fogueira, um poeta

Expulso, um dos melhores, ao estudar a lista

Dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus

Livros tinham sido esquecidos. Correu para a secretária

Alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.

Queima-me! escreveu com pena veloz, queima-me!

Não me façais isso! Não me deixes de fora! Não disse eu

Sempre a verdade nos meus livros? E agora

Tratais-me como um mentiroso! Ordeno-vos:

Queimai-me!”

Undeutsch, “não-alemães”. Essa era a forma como se referiam aos autores que foram perseguidos. Esses escritores, filósofos, cientistas, artistas sofreram com a censura, com o confisco de seus bens, com a cassação de seus títulos acadêmicos, com a perda da cidadania alemã, com o exílio forçado.

Muitos tiveram seus familiares mortos, por decorrência da ação direta das forças nazistas, por conta do desespero provocado pela situação, pelo desenrolar da guerra ou pelo envio aos campos de concentração.

Livros também foram queimados em outras cidades alemãs

Com a expansão do território alemão pelos países vizinhos, os livros e todo o material “não-alemão” quase desapareceram por completo. Bibliotecas e livrarias foram devastadas.

Essa caçada aos autores considerados degenerados e a todo tipo de publicação tida como imprópria e inadequada demarcou um novo episódio do horror nazista. Até 8 de maio de 1945, o dia da vitória na Europa, mais de 100 milhões de livros haviam sido destruídos no continente.

A queima de livros neste período gerou manifestações de outros países, principalmente nos Estados Unidos. Houve protestos em Nova York, com 80 mil pessoas; em Chicago, com 50 mil; e na Filadélfia, com 20 mil. Na imprensa americana, os atos foram chamados de “holocausto literário” pelo New York Times e de “bibliocausto” pela revista Times.

Um ano após o incidente, escritores exilados, em conjunto com os que combatiam o nazifascismo, criaram a Biblioteca da Liberdade (Freiheitsbibliothek), também conhecida como Biblioteca Alemã dos Livros Queimados.

Um comitê foi formado em Paris e em outras capitais europeias para coletar livros, documentos e arquivos que foram destruídos, banidos ou censurados pelo regime. Entre os membros estavam Romain Rolland, Heinrich Mann, Alfred Kantorowicz e H. G. Wells.

Com a eclosão da Segunda Guerra, a polícia francesa proibiu a atuação da associação que administrava a biblioteca e confiscou todo o material cuidadosamente garimpado. Acredita-se que as tropas nazistas a tenham destruído, quando da ocupação da capital francesa.

A maior parte dos 20 mil livros que foram queimados naquele dia em Berlim veio da biblioteca da Universität Unter den Linden, atual Universidade Humboldt.

Localizada ao lado da Opernplatz (atual Bebelplatz), passaram por ela parte significativa da filosofia e do pensamento alemão: Johann Fichte, Georg Wilhelm Hegel, Arthur Schopenhauer, Friedrich Schelling, Karl Marx, Friedrich Engels; físicos famosos: Albert Einstein e Max Planck; e o geólogo: Alfred Wegener. Além disso, a universidade contou com 29 ganhadores do Prêmio Nobel.

Helen Keller, escritora e ativista social americana, que também teve seus livros queimados, quando soube do ocorrido em Berlim, redigiu uma carta aos estudantes envolvidos naquele grande crematório da cultura e do pensamento crítico. Expressando sua incredulidade sobre aquele fato ocorrer justamente numa terra marcada pela popularização dos livros e da universalidade das ideias, escreveu o seguinte:

“Se vocês acham que podem matar as ideias, a história não lhes ensinou nada. (…) Os tiranos muitas vezes tentaram fazer isso antes, e as ideias se ergueram com toda a força e os destruíram. (…) Vocês podem queimar meus livros e os livros das maiores mentes da Europa, mas as ideias neles contidas já se infiltraram através de milhões de canais e continuarão a estimular outras mentes”.

Memorial sobre a queima de livros

Opernplatz era o nome coloquial que se dava à praça que fica ao lado sul da avenida Unter den Linden, no centro do bairro de Mitte. No lado oeste, estão os prédios da Universidade Humboldt, dentre eles, o que fica mais próximo é o da Alte Bibliothek (Biblioteca Antiga).

A sudoeste, está a Catedral de Santa Edwiges, primeira igreja católica construída na Prússia depois da Reforma Protestante. O edifício que nomeava o espaço fica ao lado leste, a Staatsoper, Ópera Estatal.

Toda a concepção urbanística da praça foi pensada e planejada no século 18 por Frederico II para ser o Forum Fridericianum. Exemplo de déspota esclarecido, Frederico, o Grande, como também era conhecido, foi patrono das artes e do estímulo ao pensamento na Prússia.

Por conta disso, surgiu a ideia da praça congregar uma ópera, uma igreja, uma biblioteca e uma residência real. Posteriormente, essas duas últimas fariam parte da Universidade Humboldt.

A praça foi rebatizada de Bebelplatz, no final da década de 40, em homenagem ao político esquerdista August Bebel, um dos fundadores do Partido Social-Democrata Alemão (SPD). Toda a região de Mitte fez parte da Berlim Oriental, lado comunista da cidade até 1989, quando o Muro de Berlim caiu.

Depois da reunificação, em 1995, o artista israelense Micha Ullman foi convidado para fazer um monumento em memória dos livros que ali foram queimados.

Exatamente onde se localizou a grande pira que incendiou parte dos livros da biblioteca da Universidade Humboldt, Ullman criou um simbólico espaço para relembrar aquele dia trágico. No chão, em meio aos paralelepípedos, há uma placa de vidro transparente.

Através dela, é possível ver uma sala subterrânea sem cor e sem vida. Nela, estão várias estantes vazias, sem um livro sequer. As estantes são grandes o suficiente para acomodar os 20 mil livros que foram destruídos naquela noite. O monumento é um memorial ao vazio deixado por esse ato, um símbolo à consternação diante de um fato tão chocante.

A visão proporcionada pela sala subterrânea é perturbadora. Próximo da abertura de vidro, há duas placas de ferro [foto abaixo]. Numa delas, estão os dizeres: “No centro deste lugar, em 10 de maio de 1933, estudantes nacional-socialistas queimaram as obras de centenas de escritores, editores, filósofos e cientistas”.

A ausência dos livros leva o visitante a pensar também na falta dos milhões que morreram por conta da ideologia nazista; de todos os que foram perseguidos, torturados, humilhados e destruídos por terem diferenças no modo de pensar, na forma de representar a cultura, na política, na religião, na orientação sexual e na cor da pele.

O extermínio gratuito motivado pelo ódio, tanto de livros, como de seres humanos é o mote da ideia expressada na outra placa de ferro.

Nela está inscrito um trecho da tragédia Almansor, de 1820. Um ex-aluno da universidade, um conhecido poeta romântico de origem judaica, Heinrich Heine, é o autor da obra. Ele também teve seus livros queimados na ação dos nazistas.

O tema é a inquisição espanhola na guerra pela conquista de Granada, na Espanha, no fim do século 15. Na peça, o personagem Hassan, ao ver o Alcorão ser queimado pela intolerância religiosa, lança uma fala que teria um tom profético diante dos nefastos eventos futuros produzidos pelos nazistas:

“Aquilo foi somente um prelúdio; onde se queimam livros, queimam-se no final também pessoas” (“Das war ein Vorspiel nur, dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man am Ende auch Menschen”).

Todo ano, no dia 10 de maio, é realizada uma leitura pública dos livros que foram queimados pelos nazistas. O evento é organizado pelo partido de esquerda alemão Die Linke.

A praça também é palco de várias manifestações simbólicas com a intenção de relembrar a importância da leitura e da liberdade de expressão. Também há eventos que estimulam o acesso aos livros, como a instalação de bibliotecas temporárias acessíveis aos transeuntes.

Em 2006, o governo federal fundou uma organização chamada Alemanha — Terra de Ideias. Encarregado de apresentar ao mundo o lado inventivo e inovador germânico em todos os campos do pensamento, o órgão tem várias formas de atuação.

Na época da Copa do Mundo de Futebol, como parte de suas ações, foi criado a Walk of Ideas: um conjunto de seis grandes obras urbanas com temas em que a Alemanha se destacou historicamente.

Na Bebelplatz, foi colocado um enorme monumento chamado Der moderne Buchdruck (A moderna impressora de livros). Composto por livros gigantes de autores importantes para a cultura alemã, a escultura representa a importância da invenção de Johannes Gutenberg para a popularização, democratização e libertação do pensamento.

Entre os escritores, filósofos e pensadores homenageados estão Gunter Grass, Hannah Arendt, Heinrich Heine, Martinho Lutero, Immanuel Kant, Anna Seghers, Georg W. F. Hegel, Irmãos Grimm, Karl Marx, Heinrich Böll, Friedrich Schiller, Gotthold Ephraim Lessing, Hermann Hesse, Theodor Fontane, Thomas Mann, Bertolt Brecht e Johann Wolfgang Von Goethe.

--

--