A história esquecida de Nadiêjda Khvoschínskaia em Riazan

A escritora russa foi uma das pioneiras na produção de narrativas que contestavam a posição limitada da mulher na sociedade.

Roteiros Literarios
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9 min readMar 8, 2022

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por Leonardo de Lucas

A escritora Nadiêjda Khvoschínskaia

A literatura russa é um patrimônio universal devidamente reconhecido. Nomes como Aleksandr Púchkin, Nikolai Gógol, Ivan Turguêniev, Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói e Anton Tchekhov inauguram e criam o que seria tido posteriormente como o período de ouro da escrita, tanto na poesia como na prosa e na dramaturgia. Mas esse século 19 que engendrou e projetou ao mundo a cultura eslava não se restringia apenas aos escritores homens.

Naquela Rússia absolutista, a literatura era o principal e praticamente único canal de trocas e debates de ideias. As mulheres também participaram desse momento, produzindo obras que dialogavam e até antecipavam tendências que posteriormente seriam associadas a alguns autores. Infelizmente, a história de muitas dessas escritoras foi soterrada e esquecida pela consolidação de um cânone literário essencialmente masculino.

Neste post resgatamos um pouco da vida de Nadiêjda Khvoschínskaia (1824–1889), nascida em Riazan, e de seu pioneirismo na produção de narrativas que contestavam a posição subalterna e limitada da mulher naquela sociedade.

No centro de Riazan, província a 200 km a sudeste de Moscou, nas proximidades de um imponente museu militar e de outros prédios históricos, encontra-se uma construção misteriosa, coberta com uma tela ilustrada. O desenho parece simular ou sugerir o que está oculto pelo pano: uma grande casa de madeira (foto abaixo). Tal recurso é muito utilizado, principalmente em reformas de edificações reconhecidas como atrações turísticas.

A casa nos dias de hoje, e antigamente

Mas não há nenhum procedimento de restauro em andamento, pelo contrário, o imóvel está abandonado há muitos anos. A situação é tão precária que um tribunal distrital decidiu confiscar a propriedade de seus antigos donos pela má administração do prédio. A corte satisfez uma reinvindicação coletiva da cidade por tratar-se de um patrimônio histórico e cultural não só da província, como de todo o país.

Nessa construção tradicional do século 19, hoje uma das poucas do período ainda de pé, moraram três irmãs: Praskovia, Sofia e Nadiêjda. Filhas de uma família pouco abastada da nobreza rural, mas muito bem educadas, elas tomaram para si um destino muito diferente do que era traçado à maioria das mulheres: fizeram da escrita a sua profissão e por meio dela se inseriram no mundo.

Nadiêjda Khvoschínskaia era a mais velha e foi a que mais se destacou, dedicando 47 anos de sua vida ao labor literário. Nascida em 1822, desde tenra idade já sabia ler e escrever em russo. Aos seis anos, sem muita dificuldade, aprendeu francês, língua oficial da nobreza czarista. A educação inicial ficou a cargo da mãe, Iuliia Vikenteva, de origem polonesa, que era fluente em várias línguas.

O pai, Dmitry Khvoschínski, tinha especial afeição à filha, incentivando-a a visitar a sua biblioteca e a participar de seu universo de negócios e atividades públicas. Nadiêjda teve uma infância repleta de estímulos e de tranquilidade até os nove anos, quando o seu entorno familiar é fortemente abalado por uma denúncia contra o pai. Vítima de uma calúnia por desvio de verba no serviço público, Dmitry é condenado a ressarcir uma verdadeira fortuna, sendo também proibido de servir ao Estado.

A partir daí, Nadiêjda foi forçada a amadurecer antes do tempo, vivenciando situações que influenciaram diretamente a sua vida. Após a venda dos bens da casa, Dmitry, sem ganhos suficientes, conta com a ajuda de parentes para garantir o sustento dos filhos. Essa situação se prolongou por mais de uma década, quando só então o pai conseguiu um parecer favorável da justiça e pôde recuperar a sua honra.

Os anos tortuosos da adolescência foram também os seus anos de formação crítica. A penúria material, o estigma moral e a exclusão social tornaram-se parte de suas reflexões agora dotadas de consciência política sobre a realidade. Em conjunto aos problemas, Nadiêjda desenvolveu-se intelectual e artisticamente: passou alguns anos com o tio em Moscou, aprendendo italiano, música e desenho. Com o seu irmão, ela estudou latim.

O pai também continuou propiciando experiências e ampliando os horizontes da filha na medida do possível. Quando completa quatorze anos, Dmitry a encoraja a escrever poesias, dando de presente um caderno para seus manuscritos. Na capa ele anotou: “Um livro preto para as ideias brilhantes vindas da cabecinha escura da minha filha”. A mãe também se alegrava com a dedicação da filha, mas tinha receio sobre o futuro de uma mulher vinculada à escrita.

Ainda nessa época, Nadiêjda trabalhou como secretaria do pai, desenvolvendo aptidões normalmente vinculadas aos homens. Dentro de casa, desfrutava de prerrogativas que não eram associadas às mulheres, como o direito de se expressar e debater livremente, desenvolvendo argumentos próprios, mesmo que contrariassem a figura do patriarca. Tal liberdade não era concedida às outras irmãs.

Nadiêjda Khvoschínskaia começou a publicar seus versos em 1842, época em que a poesia era a grande estrela da literatura russa. Seus escritos circularam nos meios letrados em três importantes revistas grossas: O Filho da Pátria, A Gazeta Literária e Ilustração. A escritora encontrou espaço para divulgar o seu trabalho, mas um dos seus entusiastas, o editor Vladimir Zótov, passou a exercer papel preponderante sobre a sua produção.

A relação com Zótov tornou-se conturbada. Ele não pagava o que combinava pelo trabalho e ainda adulterava os poemas em aspectos caros à autora. Diana Greene, em seu livro sobre as poetas russas do século XIX, enumerou inúmeras mutilações feitas pelo editor em diversas obras da escritora. Ela chamou esse tipo de ação de censura político-sexual e o seu principal alvo eram os temas de questionamento de gênero.

A censura czarista normalmente retirava um trecho do texto, mas não o reescrevia para reverter o significado. Pois era exatamente isso o que o censor político-sexual fazia. Ele manipulava as palavras de acordo com a sua leitura sobre a obra e ainda poderia ficar revisando eternamente os escritos, deturpando totalmente o seu sentido. Tal medida era usada em alguma medida para silenciar escritoras que questionavam a posição subalterna da mulher. Perdia-se, assim, a denúncia poética, a ironia lírica e a sofisticação crítica e estética.

Após anos vendo seus escritos desvirtuados, sendo preteridos pelo editor por conta do conteúdo e sem o recebimento da remuneração devida, Nadiêjda foi perdendo o interesse pela poesia. A própria literatura russa passava nesse momento por uma transição para a prosa. Com os primeiros contos publicados e o pagamento advindo, o pai deu a jovem uma mesa de trabalho e a mãe a presenteou com uma tinteiro.

A escritora começou a assinar os seus textos com o pseudônimo masculino V. Krestovsky. Nessa época, era raro ver mulheres romancistas. Apesar de tudo, Nadiêjda foi encontrando reconhecimento tanto na crítica como no público. Alguns literários chegaram a colocá-la no mesmo nível de Ivan Goncharov e de Ivan Turguêniev. A renda que recebia pelos seus livros ao fim da carreira era similar a dos grandes escritores da época.

Esses dados sobre a renda que a autora ganhava só são hoje conhecidos porque em algum momento editores mal-intencionados romperam um dos pilares sagrados de uma sociedade literária: a inviolabilidade do pseudônimo. Após a morte de Sofia, que também escrevia prosa utilizando pseudônimo masculino, Zótov publicou um obituário em sua homenagem, sem a concordância de Nadiêjda. Daí em diante, outros editores foram publicando pequenas biografias e o interesse em torno das irmãs só aumentou.

Tais textos produziram uma interpretação machista principalmente sobre a figura de Nadiêjda, moldando o imaginário em torno dela. Assim, sua aparência, seus hábitos e costumes tidos como masculinos passaram a explicar e a determinar a sua escrita e até o seu sucesso literário, coisa que não se via quando eram publicadas biografias sobre os homens escritores. A autora, por não se encaixar no que era o preconcebido e natural espaço da mulher, gerava desconforto em seus contemporâneos.

Toda a interpretação sobre Nadiêjda se centrava, ao final, a dizer que na realidade ela estava deslocada de seu gênero: fumava charutos, não se interessava por assuntos do lar ou por casamento, vestia-se conforme a sua vontade e não segundo os padrões normativos. Além disso, a autora se relacionava com outras mulheres, o que na época não era aceito (e no caso da Rússia, ainda hoje é algo condenado pelos órgãos oficiais).

Não se concebia a possiblidade de uma mulher ser independente e livre, de não se vincular ao que era determinado pela igreja, pela família e pela autoridade patriarcal. Após a morte da irmã Sofia, Nadiêjda ainda chegou a se casar por alguns anos, mas nunca usou o sobrenome do marido. Durante o período, a autora sustentava com seus escritos todas as despesas da casa e ainda garantia o sustento da mãe, da irmã Praskovia e inclusive do seu esposo.

A autora e um de seus livros, A Moça do Internato

O seu trabalho literário se centrava no que ela mais conhecia e odiava: na vida provinciana. No centro da história, na maioria das vezes, havia uma heroína que tinha que existir entre a pequenez de uma sociedade vulgar e o lugar estático e limitado a ela imposto. A província em suas obras pinta a vida em cores feias, os personagens se sufocam na pobreza, tanto material quanto espiritual.

Alguns escritos trataram diretamente o tema da emancipação feminina, como A moça do internato (Editora Zouk). Nessa novela, publicada em 1861, a autora antecipa discussões sobre a posição da mulher na sociedade antes de Pais e filhos, de Ivan Turguêniev, e de O que fazer?, de Nikolai Tchernichévski. Nadiêjda, apesar da distância geográfica com os grandes centros urbanos, sempre esteve muito atualizada e conectada com tudo o que ocorria em sua época, principalmente nas tendências estéticas e políticas mais vanguardistas e liberais.

Após a morte da mãe, Nadiêjda foi morar em São Petersburgo. Mesmo doente e com a saúde frágil, continuou trabalhando, principalmente na crítica literária russa e na tradução de escritoras e escritores franceses e italianos, em particular George Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Dupin. Depois se mudou para Peterhof, onde passou os últimos dias e o seu corpo foi sepultado. Como homenagem, um retrato seu é mantido na Galeria Tretyakov, um museu dedicado à arte nacional russa na capital Moscou.

Local onde a autora está enterrada e a Galeria Tretyakov, o museu de Belas Artes em Moscou

No entanto, a despeito da produção intensa e da qualidade expressiva de sua literatura, o nome de Nadiêjda Khvoschínskaia parece ter tido o mesmo destino da casa onde viveu com as suas irmãs: o completo esquecimento. Seus livros não são encontrados em livrarias ou bibliotecas e a já faz mais de 40 anos desde a última vez que suas obras foram publicadas em solo russo. Apenas nos últimos anos, algumas ações têm resgatado a importância do legado de Nadiêjda e de suas irmãs, inclusive fora do país.

A casa, que já abrigou a primeira sala de raio-x da Rússia e que já foi cotada para se transformar num grande museu literário, é palco de intensa mobilização em torno da sua preservação e da consequente divulgação da obra das irmãs Khvoschínski.

Desde 2016, a Fundação Pública de Riazan para a Preservação do Patrimônio Cultural organiza uma arrecadação de fundos que já levantou mais de 2 milhões de rublos. E, com a decisão judicial recente inédita e favorável, a expectativa é grande para que o restauro se torne uma realidade.

O precedente também foi importante para demonstrar a outros proprietários de imóveis de valor cultural e histórico que a posse do bem é assegurada, mas ela precisa estar acompanhada da devida manutenção e da função pública de preservação do patrimônio. Quem sabe num futuro não muito distante Riazan também possa fazer parte do grande roteiro de casas e museus de escritores e escritoras da Rússia. E, além disso, mais importante até, que a lembrança de Nadiêjda e de suas irmãs inspire mais e mais meninas a escreverem seus diários e a publicarem suas histórias.

PARA LER

A moça do internato, Nadiêjda Khvoschínskaia

Ursa Maior, Nadiêjda Khvoschínskaia

City Folk and Country Folk, Sofia Khvoschínskaia

Texto escrito utilizando como referência os livros: “Reinventing romantic poetry: russian women poets of the mid-nineteenth century”, de Diana Greene, e a introdução “Uma escritora independente”, de Odomiro Fonseca, assim como a sua tese de doutoramento: “Niilismo estrada para a emancipação. O destino literário das personagens femininas russas na época das grandes reformas (1855–1866)”. As notícias sobre a casa das irmãs Khvoschínski foram retiradas do site Rewizor.ru, portal de informações sobre cultura na Rússia e no exterior.

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