Alemanha: Hegel, Hölderlin e Schelling no mosteiro de Tübingen

Os 3 pensadores que fizeram da liberdade seu grande tema e desenvolveram o núcleo do idealismo alemão.

Roteiros Literarios
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7 min readOct 7, 2021

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por Leonardo de Lucas

É o início do ciclo de estudos teológicos e mais um grupo de jovens chega para se instalar no mosteiro evangélico do antigo Ducado de Württemberg, região da Suábia, parte do Sacro Império Romano-Germânico. Parece ser um começo de semestre como qualquer outro na instituição secular, não fossem alguns detalhes: o ano é 1788, a cidade é Tübingen e entre os alunos estão Friedrich Hölderlin, Friedrich Joseph von Schelling e Georg Wilhelm Friedrich Hegel.

A vida cotidiana na Tübinger Stift (Abadia de Tübingen), como a de outros lugares similares, era rígida, opressiva e sufocante. No entanto, nem mesmo o interior dessa cidadela religiosa passaria incólume a duas poderosas revoluções que ocorriam em segundo plano: a francesa, com a qual a ordem social e política foi radicalmente posta em causa, e a do modo de pensar provocada por Immanuel Kant. Foi nesse contexto que, em meio a discussões conjuntas, os três jovens pensadores fizeram da liberdade seu grande tema e desenvolveram o que mais tarde foi reconhecido como o núcleo do idealismo alemão.

Quando os três estudantes chegaram ao prédio da Abadia Evangélica, parte da Eberhard Karls Universität Tübingen, o complexo resguardava ainda alguma lembrança dos tempos de mosteiro. De 1262 a 1535, o espaço abrigou eremitas agostinianos nas suas quatro alas às margens do rio Neckar. Após a introdução da Reforma em Württemberg, os mosteiros foram dissolvidos e convertidos em escolas protestantes, semelhantes a internatos. Para ser aluno da Abadia e ter direito a uma bolsa, que incluía alojamento, alimentação e mensalidade, era preciso passar por um árduo processo de seleção.

O curso de teologia tinha duração de cinco anos, dos quais os dois primeiros eram reservados apenas às matérias de filosofia e de humanidades. O currículo de estudos tinha uma organização peculiar que compensava a severidade da disciplina reinante com um grau de estímulo intelectual. Terminada a formação universitária, com direito a graduações de mestre e de doutor, o candidato era admitido para o exercício do ministério pastoral.

Friedrich Schelling, Friedrich Hölderlin e Georg W F. Hegel

Hölderlin, Schelling e Hegel poderiam até ter, cada um a seu modo, vocação para a vida eclesiástica. Os dois primeiros eram filhos de pastores e o último tinha uma tradição familiar no campo da religião protestante. Até ali, ambos tinham passado por escolas e instituições que selecionavam os melhores alunos em cada etapa, sendo a formação universitária em Tübingen o ponto mais alto nesse processo de instrução evangélica da região. No entanto, nenhum deles seguiu esse caminho. O primeiro tornou-se um dos maiores poetas de língua alemã e os outros dois mudaram a filosofia para sempre.

Schelling, cinco anos mais novo, era o prodígio do grupo. Entrou na Eberhard Karls Universität Tübingen em 1790, aos quinze anos. É nessa época que os três estudantes passam a dividir o mesmo dormitório, o Augustinerstube, um dos únicos que tinham sistema de aquecimento. Hölderlin e Hegel já se conheciam, mas não eram amigos antes de irem para o mosteiro. De lá do quarto, eles vão se aprofundar nas discussões mais candentes do pensamento da época e também vão se atualizar sobre os acontecimentos vindos da França.

Cada um dos três se envolveu em diversas atividades extracurriculares que incluíam música, literatura, artes, associações tradicionais e grupos de reuniões secretas. Muitas dessas ações se davam em tavernas, na enfermaria do mosteiro ou mesmo nas salas dos alunos. Em um desses clubes, que Hegel e Schelling eram membros ativos, faziam-se performances secretas de comédias que, no entender da instituição, ridicularizavam e zombavam da sua hierarquia religiosa. As reuniões sobre política também ocorriam sob muito sigilo e discutiam as novas ideias de liberdade.

Nesses ambientes, circulavam secretamente livros de autores iluministas e jornais de revolucionários franceses. A universidade era pequena e muito conservadora em costumes e ideias. Mesmo os textos de Kant, que já eram muito discutidos em Jena ou em Göttingen e estavam revolucionando a filosofia da época, não eram admitidos no interior do Instituto. Só depois, quando a sua projeção já era inquestionável, é que os estudos sobre o filósofo de Königsberg se tornaram comuns na Abadia.

No geral, as punições a qualquer quebra de conduta sobre as normas mais triviais já eram austeras. Não cumprimentar um professor ou uma autoridade da maneira adequada, assim como não estar devidamente trajado entre outras questões similares, qualquer uma dessas violações tinha pena severa. Os casos mais flagrantes de infração e subversão às regras da Abadia exigiam a atuação do governante maior daquele estado, o Duque de Stuttgart. Por vezes, Schelling, Hegel e Hölderlin passavam por situações delicadas.

Há muitas lendas em torno desses anos no mosteiro em Tübingen. Talvez a mais famosa é a que versa sobre uma árvore da liberdade que os três estudantes plantaram em homenagem ao aniversário da Revolução Francesa, em 1793, na praça do mercado de Tübingen e que dançaram ao redor dela, como os jacobinos fizeram em Paris. Outra igualmente bem conhecida é a de que a Marselhesa era popular entre os bolsistas e que Schelling a traduziu para o alemão. Há ainda a de que no mosteiro era servido vinho no café da manhã e que nas paredes do convento era comum encontrar letras de canções da liberdade.

Tais lendas enriquecem as narrativas sobre os feitos daquela época, mas é pouco provável que tenham algum fundamento. Muitas vezes elas foram fruto de mal-entendidos e até de algum exagero. Em qualquer uma das situações, essas concepções se propagaram ao longo das gerações, envolvendo biógrafos e até mesmo contemporâneos dos jovens pensadores. No entanto, não é difícil imaginar os problemas que um grupo de estudantes curiosos e ávidos por novidades, que vivenciavam um momento revolucionário, poderia criar em uma instituição religiosa, numa época de poder absolutista.

Durante os anos que estiveram na Abadia, os três estudantes tomaram contato com boa parte do que havia de mais novo na literatura e na filosofia alemã da época. Dentre os autores e temas que mais influenciaram o grupo estão (além dos textos de Kant): o ressurgimento da filosofia platônica por autores germânicos, como Tennemann; o panteísmo e a releitura de Spinoza por Jacobi; mais ao final, as leituras das aulas em Jena de outra figura central no idealismo alemão: Johann Gottlieb Fichte.

Além desses escritos, parte significativa das influências que moldaram as ideias filosóficas e estéticas dos três jovens estudantes veio da própria interação entre eles. Hölderlin, por exemplo, exerceu muito impacto no pensamento de Schelling e de Hegel. As cartas que eles trocaram são muito expressivas a respeito da fertilidade e da vivacidade deste momento na cultura alemã. Somam-se a isso outras questões igualmente significativas, como as reflexões sobre as relações entre teologia e filosofia, que surgiram dos desdobramentos de temas da ordem do dia da Abadia.

Um texto encontrado somente no início do século 20, com conteúdo programático muito sintético, ilustra uma espécie de manifesto desses anos de Tübingen. O escrito recebeu o nome de O Mais Antigo Sistema do Idealismo Alemão. Nele há uma súmula sobre a realização do idealismo no mundo, sobre as possibilidades de uma filosofia da natureza, da liberdade do sujeito sem estar submetido a um Estado, e, na estética, a ideia da beleza unificando todos os outros campos. A autoria é desconhecida, a caligrafia parece ser de Hegel, mas acredita-se que os três tenham participado da redação entre 1796 e 1797.

Após os anos no mosteiro, Hölderlin, Hegel e Schelling tomam contato direto, cada um a sua maneira, com os principais representantes da cultura e do pensamento germânico: Friedrich Schiller, Johann Wolfgang von Goethe, Novalis, Friedrich Schlegel e Johann Gottlieb Fichte. É um momento único no pensamento, comparável, talvez, com os períodos mais férteis da Grécia Antiga. Entre 1790 e 1800, nesses dez anos, entre cidades como Weimar e Jena surgem muitos sistemas filosóficos e muitas novidades no plano da estética e da cultura.

Esse movimento de ampliação da razão, buscando a sua plenitude, é parte do espírito alemão da época. Mas não é um racionalismo estrito, mecânico e limitado, como o que vinha sendo gestado no século 18. Trata-se de pensar numa racionalidade diversificada, sem fixar-se num único caminho. O idealismo, portanto, vai explorar as diferentes formas de racionalidade que estavam sendo executadas pelos poetas e pelo próprio romantismo de uma forma original, mantendo uma relação crítica e ambivalente com relação à Revolução Francesa, ao Iluminismo e à religião.

SOBRE O MOSTEIRO

A Abadia Evangélica é a casa de estudos da Igreja Evangélica em Württemberg, com estreita ligação com a Universidade de Tübingen. Estudantes protestantes que aspiram ao cargo de pastor em Württemberg ou ao cargo de professor em escolas de ensino fundamental em Baden-Württemberg recebem uma bolsa de estudos por 9 semestres na forma de alimentação, acomodação e apoio acadêmico.

Durante séculos, a bolsa foi reservada apenas para estudantes do sexo masculino, mas desde 1969 as mulheres também são admitidas no atual centro de estudos da Igreja Evangélica de Württemberg. Elas agora representam a maioria dos 170 alunos.

É possível visitar os pátios internos e externos, assim como o antigo claustro e outros espaços mediante agendamento prévio: info@evstift.de ou pforte@evstift.de . Mais informações no site: www.evstift.de

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