As rotas de Elias Canetti no livro A Língua Absolvida
O autor retrata suas primeiras recordações, desde o seu nascimento, em Ruschuk, ao fim da adolescência, em Zurique.
Esta é a primeira de uma série de quatro postagens sobre os livros autobiográficos do escritor búlgaro, Elias Canetti, premiado com o Nobel de Literatura em 1981. Cada uma das publicações tratará de uma obra específica: “A língua absolvida”, de 1905 a 1921; “Uma luz em meu ouvido”, de 1921 a 1931; “O jogo dos olhos”, de 1931 a 1937; e “Festa sob as bombas”, de 1939 a 1949.
por Leonardo de Lucas
Elias Canetti é um autor que traz no bojo de sua história boa parte dos problemas do século 20, principalmente em sua primeira metade. Da infância à fase adulta, vivencia os grandes traumas que quase destruíram por completo as bases da civilização europeia.
É contemporâneo de quatro conflitos que lhe dizem respeito: a Guerra dos Bálcãs, entre 1912 e 1913; a Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918; a Guerra Civil Espanhola, de 1936 a 1939; e a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945.
Apesar de nascer numa região distante dos centros de decisão político-econômicos, é levado, por conta de contextos variados, a morar em algumas das principais cidades europeias. Está em Viena quando a Primeira Guerra Mundial começa.
Vê Lênin em Zurique meses antes de seu embarque no trem que o levaria de volta à Rússia para comandar a Revolução de 1917. Em Frankfurt, vive o drama da hiperinflação alemã dos anos 20. Sente, em Londres, o impacto dos bombardeios nazistas nos primeiros anos da Segunda Guerra.
O primeiro livro a ser apresentado se chama A Língua Absolvida. Nele, são retratadas as primeiras lembranças e recordações do escritor. A autobiografia narra o período que vai do seu nascimento, em Ruschuk, ao fim da sua adolescência, em Zurique.
É a fase das descobertas, do conhecimento das palavras, das brincadeiras de criança, dos pavores e dos medos infantis, das inquietações sobre a vida e a morte, dos primeiros escritos e do início das reflexões sobre o mundo.
RUSCHUK (RUSE): 1905–1911
É numa cidade situada no nordeste da Bulgária, às margens do rio Danúbio, que Elias Canetti vem ao mundo. Seus familiares paternos estavam na Turquia antes de se estabelecerem nessas terras, na metade do século 19.
Mas a origem dos antepassados remete a um lugar mais distante: à Espanha. Sefardita é o termo utilizado para designar os descendentes de judeus originários da Península Ibérica.
No bairro onde vivia, a maioria era de sefarditas. Judeus tidos como orgulhosos, consideravam-se diferentes dos outros por sua origem hispânica e por seus hábitos refinados. Também eram considerados os mais prósperos e europeus de toda a Bulgária.
Os filhos dos ricos comerciantes eram enviados a Viena para estudar ou mesmo para consultar médicos. A língua que falavam era o ladino, idioma semelhante ao espanhol.
A cidade e a própria família têm uma conexão especial com o fio condutor do livro autobiográfico: a multiculturalidade linguística. É daí que vem o encanto de Canetti com as palavras, com os idiomas e seus diferentes sentidos.
Esse lugar geográfico e afetivo semeia a curiosidade e a imaginação do escritor. Posteriormente, o autor transforma essas experiências em histórias e em estudos sobre os grupos humanos.
Num passeio normal pela Ruschuk do autor podia-se topar com turcos, albaneses, gregos, armênios, e búlgaros, é claro. Mas era no ambiente familiar que essa diversidade impressionava. Sua família falava o ladino, sua língua materna; a ama de leite era romena; o idioma dos empregados domésticos era o búlgaro; a melhor amiga da mãe era russa; e os pais do escritor se comunicavam entre si em alemão. Além disso, uma vez por semana um grupo de ciganos se acomodava no pátio da habitação.
Canetti nasceu em 25 de julho de 1905, na casa número 13 da ulitsa General Gurko. A autobiografia remete a muitas passagens importantes da infância vividas nesse local. Na memória brotam brincadeiras e traquinagens no pátio e no quintal, festejos judaicos de vários tipos e histórias de terror repletas de vampiros e de lobisomens.
Também há outros eventos descritos como o nascimento do irmão e um incêndio na casa de uma vizinha (acontecimento que será marcante para seus estudos posteriores: as manifestações das multidões).
Infelizmente, na casa não há qualquer placa sobre o nascimento do escritor. Até alguns anos atrás, ela estava abandonada. Tal fato reflete um pouco do esquecimento a que o legado de Canetti foi submetido. A cidade (e a própria Bulgária) por décadas não fez questão de homenagear ou de mencionar seu filho mais ilustre.
Por conta dessa posição, e também pelo fato de o escritor ter sido um importante crítico do regime comunista implementado no país, seus livros só começaram a ser traduzidos para o búlgaro nos anos noventa.
Outra edificação intimamente relacionada ao passado de Canetti é a do nº 12 do bulevard Slavyanski. Trata-se do local onde ficava a loja de comércio do avô paterno. Lá se vendiam produtos coloniais por atacado.
O escritor recorda-se das cores, dos odores e das sensações táteis, quando mergulhava suas mãos nos sacos de grãos. Esse era seu prazer maior. Atualmente, o edifício é o Canetti Haus e funciona como um fórum para a cultura alternativa, sendo utilizado para concertos, performances e exposições de artes plásticas. É parte da Internationale Elias Canetti Gesellschat.
Fundada em 1992, a Sociedade Internacional é dedicada a pesquisar a obra do escritor, a promover a integração europeia e a participar na reconstrução de instituições sociais civis na Bulgária pós-comunista. Atua nas áreas da cultura, da educação e da pesquisa acadêmica.
Há também na cidade um instituto técnico, espécie de escola técnica, com o nome do escritor no nº 22 da ulitsa Borisova. Uma placa com sua face e seu nome escrito em alfabeto cirílico se destaca na entrada do prédio.
Em outro lado de Ruschuk, num edifício de arquitetura imponente e defronte a uma praça com ar europeu, no nº4 da pl. Svoboda, encontra-se a sede da Internationale Gesellschaft.
Nesse mesmo prédio, estão localizados o Elias Canetti Zentrum e a Österreich-Bibliothek Elias Canetti(biblioteca austríaca). Nos dois órgãos há instalações que são usadas para eventos e encontros internacionais de jovens e de estudantes: simpósios científicos, oficinas, exibição de filmes, fóruns de discussão e de leitura, entre outras atividades.
MANCHESTER: 1911–1913
De 1911 a 1913, Canetti viveu em Manchester, na Inglaterra, onde dois dos irmãos de sua mãe (Mathilde) já estavam confortavelmente instalados, dirigindo um próspero negócio. Após a morte de um dos irmãos, o pai do escritor, Jacques Canetti, foi chamado para se tornar sócio.
A cidade foi vista por Jacques como um paraíso de liberdade social e cultural depois de escapar da atmosfera familiar sufocante em Ruschuk.
O primeiro endereço na cidade foi na Burton Road nº 234.Nessa casa, o pequeno Elias leu seus primeiros livros, presentes frequentes do pai.
Entre os títulos de uma série para crianças, destacaram-se As mil e uma noites, Contos de Grimm, Robinson Crusoé, As viagens de Gulliver, Dom Quixote, Dante e Contos de Shakespeare. Depois de lê-los, tinha de fazer comentários em inglês. Em pouco tempo, o futuro escritor já tinha fluência na língua.
Canetti estudou numa escola próxima que ficava na Barlowmoor Road. Não há informações sobre a localização exata dela. O edifício também não existe mais. Sabe-se que ele ia estudar a pé e que a caminhada durava alguns minutos. Há atualmente um centro educacional para crianças especiais numa distância que condiz com os relatos do escritor. Sabe-se, também, que o local antigamente abrigava uma escola.
Nessa época, ocorre a pior tragédia para o pequeno Elias: seu pai morre. As circunstâncias desse evento, suas causas e os seus desdobramentos são investigados e analisados pelo filho por anos. A versão mais próxima da verdade só lhe é contatada por sua mãe quando ele já está adulto. Jacques é a paixão que o guiará por toda a vida. Como consequência do acontecido, o tio, irmão de Mathilde, tentou substituir o papel do pai e começou a influir na vida de Canetti. Para este, o tio Solomon Arditti era a encarnação de tudo aquilo que ele mais odiava.
Homem de negócios, que via com maus olhos tudo aquilo que não levasse o pequeno Elias a se envolver com o comércio, tratava a vida como uma eterna disputa entre concorrentes para conseguir o almejado lucro.
Mudam-se para a casa do tio, na Palatine Road nº 123, uma enorme casa branca, descrita no livro como um palácio. A rua é próxima da outra em que moravam e Canetti continua estudando na mesma escola. Interessante é a forma como o escritor elabora mentalmente esses períodos tão difíceis no processo imaginativo de uma criança.
Aliás, todo o A Língua Absolvida é composto de uma rica linguagem de mundo a partir de um ponto de vista infantil/adolescente. Nesse turbilhão, Elias se aproxima de Mathilde. Os dois se ajudam para manter as rotinas e seguir algum rumo na vida após aquela perda inestimável. A união de ambos, apesar dos pontos de atrito, será fundamental para a formação intelectual do pequeno Elias.
Pelo referencial materno, o autor reencontrará a força de seu pai, a paixão que o casal nutria pelo teatro e pelas artes em geral, e, o mais importante, o amor incondicional pelos livros, pelos personagens, pelas palavras e pelas línguas.
Em maio, a mãe decide que o melhor seria ir para Viena. O ar saudosista do Burgtheater e daquele que foi o melhor período da vida de Jacques e Mathilde poderia renovar as vontades e os ânimos da família. No caminho, passam por Londres, Paris e ficam alguns meses em Lausanne, na Suíça.
Lá, um gigantesco desafio se coloca a Canetti: ele tem de aprender alemão fluentemente em algumas semanas. Para isso, Mathilde impõe ao pequeno um método extremamente rígido e exaustivo de ensino. O medo de que Elias não fosse aceito por não falar adequadamente aterrorizava a mãe.
VIENA: 1913–1916
Em Viena, Canetti finalmente podia conhecer a fundo a língua secreta que seus pais se comunicavam. Além disso, em conjunto com as leituras de Shakespeare e de Schiller, sua mãe relembrava o passado, a paixão pelo teatro, o amor pelo Burgtheater, e isso se estendia até a madrugada. O pequeno Elias era tratado como adulto e isso o fazia amadurecer rapidamente. Moravam no segundo andar da casa nº5 na Josef-Gall-Gasse. Sua escola ficava próxima, às margens do canal Donaukanal.
O professor de Elias se impressionou com o alemão que o menino aprendera em três meses. Ao mesmo tempo, numa das vezes, na volta para casa, um colega o chamou com desprezo: “Jüdelach!”. Foi a primeira vez que Canetti foi insultado por ser judeu.
A Primeira Guerra chega e invade todos os âmbitos da vida social. O pequeno Elias presencia a forma como as ideologias da guerra eram propagadas nas escolas. Sem ter muita ideia, o jovem começa a reproduzir ofensas sobre os povos inimigos, principalmente os russos. É reprimido pela mãe, que o lembra de que sua melhor amiga era russa. Mathilde torna-se uma crítica voraz da guerra.
Nesse contexto de conflito, a família faz uma viagem a Ruschuk. Canetti tem contato direto com os problemas deixados pelo desfecho da guerra balcânica: destruição, alteração das fronteiras e aumento do ódio entre povos. Na volta, não recebem tratamento adequado na alfândega romena. Sua mãe atribui o comportamento ao fato de estarem portando passaportes turcos (maioria dos sefarditas conservava cidadania turca) e diz que se ela estivesse com o passaporte italiano da época de solteira a situação seria diferente.
No fim do inverno, Mathilde tem um colapso nervoso e fica internada no sanatório Elisabethpromenade. Com o agravamento da situação, ela pensa que o melhor é ir para Zurique, na Suíça. Depois de muito tentar, consegue sair do país com a ajuda de seu médico.
ZURIQUE: 1916–1921
Em 1916, mudam-se para Zurique e ocupam duas peças num apartamento no nº 68 da Scheuchzerstrasse. A avó materna e a irmã mais velha de Mathilde moram a poucos minutos de distância, na Ottikerstrasse.
Canetti estuda numa escola no distrito de Oberstrass. O contato com colegas e professores o faz aprender o dialeto falado no local. Sua mãe o recrimina por isso, dizendo que o havia ensinado o alemão puro. Depois de alguns meses, passam a morar no segundo andar de um prédio, nº 73, da mesma rua. A família atravessa momentos de economia com os gastos.
Em 1917, Elias frequenta a Kantonsschule Rämibühl, escola na Rämistrasse nº 58. No caminho, inventa histórias e as vai desenvolvendo mentalmente, sem prestar atenção no que acontecia ao redor.
Os irmãos pequenos são público cativo dos contos que Canetti imagina. Ficam ansiosos pela continuação das narrativas sobre heróis em combate, sobre conflitos entre exércitos. No final, todos ressuscitam.
Nas memórias sobre a escola, há muitas passagens sobre os professores, sobre os colegas e amigos, mas também há episódios de perseguição étnica e muito bullying sofrido pelo fato de ser judeu. A direção e os responsáveis faziam vista grossa aos repetidos ataques.
Os serões de leitura em Viena não voltaram. O trabalho doméstico e o cuidado com os três filhos desgastavam Mathilde. No fim da noite, ela se fixava na sala de estar, em sua poltrona, e lá permanecia lendo por horas a fio. Eram livros e mais livros de Strinberg.Tal autor foi recomendado por um médico, na época em que ela teve um colapso nervoso em Ruschuk. Essa leitura foi particularmente difícil por muitos anos. Era o dramaturgo sueco que Mathilde lia, quando soube da morte de Jacques.
Canetti via o clarão da luz por debaixo da porta do quarto. Nesse momento, ele retirava uma lanterna do bolso e lia escondido, embaixo da coberta. Após descoberto, sua mãe designa aos irmãos a tarefa de o vigiarem. O castigo foi duro, ele estava devorando vários títulos de Dickens naqueles momentos em que deveria estar dormindo.
A relação de Mathilde e de Canetti com os livros era intensa. Os dois se presenteavam com diversos exemplares. O jovem Elias ia frequentemente a uma livraria perto de casa para escolher os lançamentos que acreditava serem os que sua mãe queria ler. Para isso, economizava quase toda a sua mesada. A mãe também sempre o incentivava com temas e autores diferentes para que o filho não se limitasse aos mesmos livros.
As crises de Mathilde continuam e tal fato provoca uma mudança na vida da família. Elias passa a morar numa pensão com um grupo de mulheres. Os dois irmãos são enviados para Lausanne e a mãe fica internada num sanatório em Arosa. Esse cenário se estende por alguns anos.
Canetti torna-se o novo hóspede da Vila Yalta, na Seefeldstrasse. A pensão fica na região da Tiefenbrunnen, próxima da estação ferroviária com o mesmo nome e do lago Zürichsee. A Vila fora por muito tempo um internato de moças.
O jovem Elias é o único homem em meio a meninas da Holanda, da Suécia, da Inglaterra, da Bulgária e até do Brasil. Toda essa novidade tem grande impacto sobre a formação do escritor.
Ele começa a esboçar os primeiros escritos. Sua mãe estranha as cartas que o menino envia e pede que ele dê notícias concretas sobre sua vida. Mathilde estava farta de ler aquela “filogenia do espinafre”, modo irônico dispensado aos textos pretensamente científicos que Elias enviava.
Então, ele escreve à mãe uma peça, um drama inspirado no estilo de Schiller sobre a vida de Junius Brutos, primeiro cônsul da República Romana. Mathilde não dá muito interesse à obra e essas percepções negativas vão aumentando o distanciamento entre os dois. Na visão de Elias, a mãe duvidava de sua autenticidade e de seu caráter artístico.
Em 1921, Mathilde faz uma visita ao filho e diz que ele não pode mais ficar naquela pensão tendo aquela vida. A mãe questiona os interesses que Elias vinha buscando. Também critica certa prepotência que o filho demonstrava sem ter experiência suficiente sobre os dramas da vida. A conversa tem uma carga de ataques muito pesados e profundos.
Ela quer levar o filho para a Alemanha para que ele sinta o que é passar por dificuldades, o que é perder uma guerra: ter um choque de realidade com a inflação germânica. Isso soa ao jovem Canetti como uma penitência. Mathilde fala de ganhar dinheiro, de arrumar uma profissão prática, tudo aquilo que Elias não tinha contato.
Os anos felizes de Zurique estavam ficando para trás. A mudança já estava planejada e agora era a vez da expulsão do Paraíso. Os momentos até então vividos serão lembrados pelo escritor como os melhores de sua existência. Agora, novos desafios se colocam diante do jovem Elias. No turbilhão do início dos anos vinte, Frankfurt será sua nova morada.
Pois o fato incomparavelmente mais importante, mais excitante e mais especial daquele período foram os serões de leitura com minha mãe e as conversas que se seguiam. Já não consigo reproduzir essas conversas em detalhes, pois fazem parte de mim. Se existe uma substância espiritual que se recebe nos primeiros anos de vida, a que se refere constantemente e da qual nunca nos libertamos, então a minha foi aquela motivada pelas leituras com minha mãe. Eu estava imbuído de confiança cega em minha mãe; os personagens sobre os quais ela me fazia perguntas e depois me falava tornaram-se o meu mundo de tal forma que deles nunca mais consegui me separar. Pude tomar distância de qualquer influência posterior que recebi. Mas aqueles personagens formam comigo uma unidade compacta e indissolúvel. (…) Foram o pão e o sal de meus primeiros anos. São eles a verdadeira e secreta vida de meu intelecto”. — Canetti.
PARA LER
· A Língua Absolvida, Elias Canetti
· Uma Luz em Meu Ouvido, Elias Canetti
· Festa sob as Bombas, Elias Canetti