Canaã: o lugar utópico e ponto de partida do pré-modernismo

Livro de Graça Aranha que tem como cenário Santa Leopoldina (ES) abordou a difícil realidade dos primeiros imigrantes no Brasil

Roteiros Literarios
roteirosliterarios
9 min readFeb 17, 2022

--

por Andréia Martins

Centro de Santa Leopoldina, no Espírito Santo, e a capa do livro Canaã, de Graça Aranha

O maranhense Graça Aranha (1869–1931) não é dos nomes mais badalados da literatura brasileira. Responsável pela abertura da Semana de Arte Moderna de 1922, é autor de um livro considerado o marco do pré-modernismo no Brasil, Canaã, e protagonizou um momento de rebeldia dentro da ABL (Academia Brasileira de Letras), o que gerou o rompimento total de relação entre academia e autor.

Nascido em São Luís (MA) em família nobre, Graça deixou a capital maranhense para estudar no Recife e depois, em 1886, viajou para o sul do país onde passou a se dedicar ao trabalho de advogado, ao magistério e à magistratura. Anos depois, foi para Porto do Cachoeiro (ES) atuar como juiz municipal. Foi na cidade, hoje chamada de Santa Leopoldina, que ele levantou material para o livro que publicaria com sucesso em 1902, inspirado em um fato verídico.

A cidade possuía uma comunidade alemã significativa, e Aranha fez parte do julgamento de uma jovem imigrante acusada do assassinato do filho recém-nascido. No livro, a história ganhou nuances mais dramáticas.

A ré foi materializada na personagem Maria Perutz. Filha de imigrantes, ela trabalha para a família Kraus, se envolve com o filho do patrão e engravida. Sozinha e sem apoio, ela dá à luz no meio do mato e vê o bebê ser devorado por porcos selvagens. Acusada de matar seu filho, ela é presa em Porto do Cachoeiro e resgatada por Milkau, amigo e também imigrante, que foge com ela para Canaã.

O advogado, diplomata e escritor maranhense Graça Aranha

O livro aborda temas como a vida do imigrante, a luta para se adaptar e se fixar em terras brasileiras, os preconceitos e o racismo e apresenta os diferentes pontos de vista de Milkau e Lentz (jovem alemão e também imigrante) sobre as expectativas de viver em um novo lugar. Na história, acompanhamos o otimista Milkau levar uma rasteira da realidade e perder a esperança em tudo o que antes acreditou.

Por essas características e por seu valor documental, o romance se destaca como o marco inicial do Pré-Modernismo, fase da literatura brasileira cuja principal proposta é a “redescoberta do Brasil” retratando o cotidiano de forma mais fiel à realidade e denunciando os problemas sociais (miséria, abismos sociais, conflitos). O período que vai até 1922 teve autores como Lima Barreto, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e o poeta Augusto dos Anjos.

A seguir, você vai conhecer um pouco mais da cidade que inspirou a história de Aranha e foi uma das portas de entrada dos imigrantes europeus no país.

Milkau cavalgava molemente o cansado cavalo que alugara para ir do Queimado à cidade do Porto do Cachoeiro, no Espírito Santo. Os seus olhos de imigrante pasciam na doce redondeza do panorama. Nessa região a terra exprime uma harmonia perfeita no conjunto das coisas: nem o rio é largo e monstruoso, precipitando-se como espantosa torrente, nem a terra se compõe de grandes montanhas, dessas que enterram a cabeça nas nuvens e fascinam e atraem como inspiradoras de cultos tenebrosos, convidando à morte como um tentador abrigo… O Santa Maria é um pequeno filho das alturas, ligeiro em seu começo, depois embaraçado ao longo do trecho por pedras que o encachoeiram, e das quais se livra num terrível esforço, mugindo de dor, para alcançar enfim sua velocidade ardente e alegre. Escapa-se então por entre uma floresta sem grandezas, insinua-se no seio de colinas torneadas e brandas, que parece entregarem-se complacentes àquela risonha e úmida loucura… Elas por sua vez se alteiam graciosas, vestidas de uma relva curva que suave lhes desce pelos flancos, como túnica fulva, envolvendo-as numa carícia quente e infinita. A solidão formada pelo rio e pelos morros era naquele glorioso momento luminosa e calma. Sobre ela não pairava a menor angústia de terror”. | Canaã, Graça Aranha

A primeira colônia capixaba

Não foi à toa que o tema da imigração inspirou o primeiro livro de Aranha. Em 1856 foi fundada a Colônia de Santa Leopoldina, situada às margens do rio Santa Maria da Vitória, para abrigar os primeiros imigrantes europeus que chegaram ao Brasil. Eles vinham da Suíça, da Alemanha, do Tirol, da Pomerânia (área entre a Alemanha e a Polônia onde vivia uma população alemã isolada) e da Itália.

Primeiro foram os colonos suíços, que instalaram a sede da colônia dentro da área demarcada, às margens do rio Santa Maria da Vitória, no lugar ainda hoje denominado Suíça. Em 1857, chegaram mais imigrantes da Alemanha, Luxemburgo e Pomerânia. Em 1877, data que se identifica como o fim da imigração austríaca, tem início a imigração alemã (mais forte) e italiana no Espírito Santo. Uma parte dos imigrantes se estabeleceu em Cachoeiro de Santa Leopoldina, mais abaixo de Suíça.

Pela facilidade de acesso à capital graças ao rio Santa Maria, foi o povoado que mais se desenvolveu. Na época do boom do café, antes da virada do século 19, a cidade chegou a ser o ponto comercial mais importante da região, melhorando a vida dos colonos. Os armazéns, onde concentravam-se as vendas de produtos e alimentos eram também pontos de interação social dos colonos, ampliados depois para as igrejas que foram construídas na cidade.

Santa Leopoldina hoje e antigamente

Na divisa entre Santa Leopoldina e Santa Maria de Jetibá (ex-Jequitibá, antigo distrito de Cachoeiro de Santa Leopoldina) é que está o Vale do Canaã. O local está situado entre os lagos das represas Suíça e Rio Bonito. Por lá há construções rurais típicas luso-brasileiras, embora seus moradores sejam de origem alemã. A paisagem é composta por matas, lavouras de hortaliças e pastagens. No livro, aos olhos de Milkau, o local ganha ares utópicos, de felicidade, amor, generosidade, e que aos poucos vai desmoronando frente à realidade de Maria.

Vê tu. Não há em Canaã lugar para morte. A terra dá o menos possível aos túmulos; eles escassos e raros na fralda da montanha, não apagam luz nem dão sombra sobre a vida, que os enlaça e domina na força do seu triunfo. | Canaã, Graça Aranha

O que fazer em Santa Leopoldina

Apelidada de “filha do sol e da água”, a cidade está localizada na região serrana do Espírito Santo e a 47 quilômetros da capital Vitória. A cidade ficou na história não apenas por ser cenário de livro: o lugar foi escolhido pelo imperador Dom Pedro 2º para iniciar sua viagem pelo estado.

A visita aconteceu em 28 de janeiro de 1860. Nessa época, toda a colônia tinha 1003 moradores, sendo 979 deles imigrantes europeus. A cidade que não havia se desenvolvido o bastante foi totalmente reformulada após essa visita, já que muitos relatos feitos ao imperador era sobre melhorias necessárias para a região e vida dos imigrantes.

Museu do Colono e rua do Comércio em Santa Leopoldina (Governo do ES)

Hoje, o que mais atrai turistas ao local são suas cachoeiras. Há cinco rotas turísticas: Circuito das Cachoeiras, Circuito dos Cemitérios, Rampa de Voo Livre, Circuito Gastronômico e Circuito Colônia Tirol. As duas quedas mais conhecidas são a Cachoeira da Fumaça e o Véu de Noiva. A cidade também é famosa por ter o melhor carnaval de rua da região serrana e ainda preserva construções arquitetônicas importantes, tendo 32 prédios tombados.

Há o Museu do Colono, construído em 1877 para abrigar a família austríaca Holzmeister, uma das primeiras a povoar Santa Leopoldina. Hoje o museu abriga móveis com características europeias e artigos de decoração do século 19, reproduzindo o ambiente residencial da família, com mobiliário, utensílios, objetos decorativos, obras de arte, livros, fotografias e documentos, em um acervo de mais de 600 peças.

Além disso, a cidade ainda abriga o Monumento ao Imigrante, construído em 1950 quando se comemorou o centenário da colonização europeia. O projeto do arquiteto Hélio Viana, tem no topo uma cruz de cimento armado — emblema que encorajou os imigrantes a enfrentarem situações difíceis.

Monumento ao Imigrante, em Santa Leopoldina
Monumento ao Imigrante, em Santa Leopoldina (ES)

Outros roteiros

  • Mirante do Vale Canaã: a 46 minutos de Santa Leopoldina está a cidade de Santa Tereza. Ali, na beira da estrada, você pode visitar o Mirante Vale Canaã, com uma vista panorâmica do vale. O local ainda conta com um obelisco onde está escrito um trecho do livro de Graça Aranha:
Obelisco no Mirante Vale do Canaã
  • Rota Imperial: Santa Leopoldina é parada essencial dentro da rota.
    A Rota Imperial é um caminho construído pela Coroa Portuguesa, por ordem de Dom João 6º. Ela foi oficialmente aberta em 1814 e concluída em 1816. Seu objetivo era ligar as cidades de Ouro Preto (MG) e Vitória (ES). No trajeto são identificadas as propriedades culturais e naturais de vários municípios. O ponto de partida é o Palácio Anchieta, em Vitória, passando por Santa Leopoldina e indo até Ouro Preto, ligando à Estrada Real.
  • Circuito das Três Santas: em 2021 o governo do Espírito Santo lançou o circuito para reforçar o turismo nas cidades de Santa Maria de Jetibá, Santa Leopoldina e Santa Teresa, todas já parte da Rota Imperial. Mais informações aqui.

Voltando a Graça, a ABL e a Semana de 1922

Aranha entrou para a recém-fundada ABL (Academia Brasileira de Letras) em 1897, convidado por Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Lúcio de Mendonça, como um de seus 40 fundadores. Ainda não tinha publicado nenhum livro, o que era uma das regras. Tal brecha deve-se ao fato de, naquele ano, a academia ainda estar em fase inicial. A ABL só entraria em funcionamento no ano seguinte.

Em 1921, já aposentado, ele ouve de Di Cavalcanti uma ideia para realizar uma exposição com artistas da época. O pintor carioca queria uma semana “de escândalos literários e artísticos”. Animado, Aranha articulou alguns encontros entre pessoas que poderiam ajudar na realização do evento, que culminaria na Semana de Arte Moderna de 1922. Ele, inclusive, foi encarregado de fazer a abertura do evento com a conferência A Emoção Estética na Arte Moderna (leia aqui trecho do discurso).

Dois anos depois, cometeu um ato de rebeldia — ou não — na ABL: em 19 de junho de 1924, ele leu na academia a conferência “O Espírito Moderno”, na qual o orador declarou: “A fundação da Academia foi um equívoco e foi um erro”, em razão do desacordo da entidade com suas ideia. Estava encerrada a relação entre academia e autor.

Além de Canaã, Aranha escreveu também a peça de teatro Malazarte (1911), ensaios, entre os quais A Estética da Vida (1920), Correspondência de Machado de Assis e Joaquim Nabuco (1923) e Futurismo. Manifesto de Marinetti e Seus Companheiros (1926) e o romance A Viagem Maravilhosa (1930), obra em que a opinião dos críticos da época se dividiu entre elogios e ataques. Morreu no Rio de Janeiro, em 26 de janeiro de 1931, deixando incompleta a autobiografia O Meu Próprio Romance.

Referências: Colônia Tirol — 150 anos de um povoado austríaco no Brasil (clique aqui para ler); IBGE: Santa Leopoldina; ABL e Observatório do Turismo ES; Os desdobramentos da paisagem em Canaã, de Graça Aranha.

--

--