Dom Quixote em Barcelona

A cidade espanhola aparece apenas no final da história, mas é responsável por apresentar o mar ao cavaleiro-errante.

Roteiros Literarios
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6 min readDec 19, 2014

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por Carolina Cunha

Em Barcelona, na Espanha, a arte está em todo lugar. Sua vibrante cena cultural, o passado medieval, a arquitetura de inspiração modernista ou as obras de Gaudí e Joan Miró, entre outras atrações, fazem da capital da Catalunha um dos principais destinos turísticos da Europa.

A beleza do local também impressionou Dom Quixote, o protagonista do livro O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha. Publicado em 1605, o clássico do autor espanhol Miguel de Cervantes (1547–1616) é considerado o primeiro romance moderno e um dos livros mais importantes da literatura mundial.

Foi em Barcelona que Dom Quixote viu o mar pela primeira vez. A cidade aparece apenas no final do Livro II, depois que o fidalgo luta contra moinhos de vento e se aventura pelas estradas da Espanha, sempre com a cabeça nas nuvens.

Dom Quixote chega a Barcelona na véspera do dia de São João (hoje, é a maior festa do ano na cidade, celebrada com enormes fogueiras e rojões no final de junho). O “cavaleiro errante” entrou na cidade pelo portão de uma antiga muralha, próximo à praia de Barceloneta e que ainda existia naquela época. Ao chegar, é visto como um excêntrico desvairado, sendo chamado por um catalão de “o doido mais engraçado que existe”.

Quando viram o mar, Dom Quixote e Sancho notaram que as águas sossegadas do Mediterrâneo pareciam gerar uma alegria súbita a toda a gente. Os dois também gostaram dos barcos que ostentavam bandeiras tremulando com o vento. Cervantes ainda coloca a dupla para dar uma volta em uma galé e observar no mar um conflito armado entre navios mouros e cristãos.

Dom Quixote descreveu Barcelona como um “arquivo da cortesia, albergue dos estrangeiros, hospital dos pobres, pátria dos valentes, vingança dos ofendidos e grata correspondência de firmes amizades, única em situação e formosura”.

Estenderam D. Quixote e Sancho a vista por todos os lados, viram o mar, que até então nunca tinham visto, e pareceu-lhes imenso e espaçosíssimo, muito maior que as lagoas de Ruidera, que tinham na Mancha. Viram as galés varadas na praia, que estavam cheias de flâmulas e galhardetes, que tremulavam ao vento e varriam as águas. Dentro delas soavam clarins, trombetas e charamelas que, ao perto e ao longe, enchiam os ares de suaves e belicosos lamentos. Principiaram a mover-se e a fazer como que umas escaramuças navais nas sossegadas águas, correspondendo-lhes, quase do mesmo modo, infinitos cavaleiros, que saíam da cidade montados em formosos cavalos e com vistosas galas. Os soldados das galés disparavam muitos canhões, a que respondiam os que estavam nas muralhas e fortes da cidade; e a grossa artilharia, com temeroso estrondo, rompia os ares, respondendo-lhe os canhões de maior calibre das galeras.

(Trecho do livro Dom Quixote de La Mancha)

PRAIA DE BARCELONETA

A praia de Barceloneta é uma das mais movimentadas da cidade, sendo a mais próxima do centro e da Cidade Velha. Aqui a pedida é pegar um solzinho, ver o pôr do sol ou comer frutos do mar nos diversos restaurantes que existem por ali.

O local teria sido o cenário de uma cena clássica do livro: o duelo de lanças entre Dom Quixote e o Cavaleiro da Branca Lua.

Em uma manhã, ao caminhar pela costa, Dom Quixote encontra o Cavaleiro da Branca Lua, que o desafia. Se perdesse a peleja, Dom Quixote teria que se refugiar em casa por um ano para recobrir a razão, esquecendo-se das aventuras de cavaleiro andante.

DOM QUIXOTE E A CIDADE VELHA

Transformado em duplex, o apartamento no bairro de Born teria hospedado Cervantes durante o tempo em que o autor passou em Barcelona. A data da estadia, no entanto, não é certa (Divulgação)

A entrada da antiga muralha, por onde Dom Quixote chegou na cidade, era próxima de onde hoje se encontra a Faculdade Náutica de Barcelona, no número 18 da praça Pla de Palau, ao lado do prédio Palau de Mar.

Um bom jeito de sentir o clima da Barcelona de Cervantes é andar a pé pelas ruelas labirínticas do bairro Gótico, o mais antigo da cidade, construído sob as muralhas romanas e que abriga pontos turísticos como a Catedral de Barcelona e o Mercado de Santa Catarina.

O El Call é o antigo quarteirão judeu da capital catalã e nele se encontra uma das primeiras sinagogas da Europa. No livro, Dom Quixote deseja passear pela cidade a pé e no caminho é surpreendido ao ver escrito numa porta “aqui se imprimem livros”.

O personagem entrou no local e viu tipógrafos trabalhando na impressão de um livro que falava de um tal “Dom Quixote Avellaneda”, uma referência irônica que Cervantes faz à versão apócrifa real do Livro I (sim, naquela época o livro fez tanto sucesso que fizeram uma versão falsa das continuações das aventuras do cavaleiro andante).

É entre os números 14 a 16 da rua do Call que ficava a antiga oficina de tipografia de Sebastián de Comelles, considerada a que Dom Quixote visitou. Apesar de não existir mais, o edifício possui uma fachada com desenhos do século 18 referentes ao comércio de livros.

Outro ponto de interesse é a passagem d’En Perot lo Lladre, homenagem ao famoso bandido catalão Perot Rocaguinarda, popularmente conhecido como “Perot lo Lladre”, uma espécie de Robin Hood local. Conta a lenda que ele se escondia nessa passagem durante suas visitas à cidade.

No livro, o pistoleiro catalão Roque Guinart (versão ficcionalizada de Perot) conhece Dom Quixote e Sancho em uma estrada e os guia por caminhos secretos até Barcelona.

Saiba mais sobre a rota turística Quixote e Cervantes em Barcelona

O APARTAMENTO DE CERVANTES

Cervantes viveu seus últimos anos de vida em Madri, mas trabalhou como militar e fez diversas viagens, tendo passado por Barcelona.

A cidade que o autor espanhol conheceu ainda era um cenário medieval, com ruas estreitas e muralhas, combinada com a agitação própria de uma cidade portuária. A maior riqueza estava ao leste. Naquela época, o porto de Barcelona era um dos mais poderosos da Península Ibérica, sendo alvo frequente de ataques de piratas.

A poucos metros do bairro Gótico, situado no 3º andar de um edifício do século 16, no número 2 do passeig de Colom, em Born, está o apartamento onde Miguel de Cervantes teria se hospedado durante a estadia em Barcelona.

O imóvel foi listado pela UNESCO como patrimônio artístico do gótico catalão e está aberto para aluguel para temporadas. De suas janelas, o visitante é presenteado com a bela vista para o mar Mediterrâneo.

No bairro Gótico, ainda podemos ver belas casa nobres e palácios do século 12, muito bem preservados. É provável que Cervantes tenha se inspirado nestas construções quando escreveu sobre a “grande e principal casa “ de Antonio Moreno, o anfitrião dos protagonistas da história na passagem pela cidade.

PARA LER

  • Dom Quixote de La Mancha volume 1 e 2

Originally published at http://novo.roteirosliterarios.com.br on December 19, 2014.

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