Eça avisa: se for a Sintra, não esqueça as queijadinhas

Autor destacou as famosas queijadas e os hotéis e palácios da cidade em Os Maias e ambientou lá o 1º romance policial português.

Roteiros Literarios
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7 min readOct 12, 2020

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por Andréia Martins

Fachada da Fábrica das Verdadeiras Queijadas da Sapa, em Sintra (Andréia Martins)

- Agora o que tu deves ver, Cruges, é o palácio. Isso é que tem originalidade e cachet! Não é verdade, Alencar?…

- Eu vos digo, filhos, começou o autor de Elvira, historicamente falando…

- E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.

- Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; é necessário não perder tempo; a caminho!

(Os Maias — Eça de Queirós)

Quando cheguei a Sintra, em 2017, a expectativa era para conhecer os famosos castelos e palácios antigos que a cidade portuguesa abriga. No entanto, ao sair da estação de trem me deparei com um burburinho em frente a um café. Achei que era devido ao calor — peguei dias com 30 e 32 graus em Lisboa — , no entanto, o motivo da fila era outro: as queijadinhas, famosas para muitos e, até então, desconhecidas por mim.

Ao entrar na Fábrica das Verdadeiras Queijadas da Sapa reparei em quadros com trechos de livros do escritor Eça de Queirós nas paredes. De tão famosas as queijadas e a cidade tinham entrado nas histórias de Eça. A viagem a Sintra ficava mais interessante.

As tradicionais queijadinhas e o salão da Fábrica das Verdadeiras Queijadas da Sapa

Em Os Maias, publicado em 1888, as queijadinhas são assunto entre os personagens e aparecem também em momentos divertidos da história — que se passa em Lisboa, mas tem trechos em Sintra.

Em um dos trechos, Cruges, músico amigo de Carlos da Maia, passeia por Sintra e se lembra que tem que levar queijadinhas para a mãe. Em outra parte, João da Ega, também amigo do protagonista, se encontra com Carlos da Maia e Maria Eduarda. De tão nervoso, derruba o pacote com queijadinhas e vê seu jantar despedaçado. Carlos também é lembrado durante sua passagem por Sintra a levar os doces — enquanto tenta achar a nova casa do amigo maestro — , trecho que está em um dos quadros do café. Outro livro, A Correspondência de Fradique Mendes (1900), também cita as queijadas da Sapa. O trecho também está memorizado com orgulho na parede do local. (veja abaixo)

Uma dica importante é não deixar para comprar as queijadas depois. Em meio a tantos passeios pela cidade, você pode encontrar a Fábrica fechada ou apenas esquecer mesmo, como Cruges, que só lembrou dos doces quando já voltava com o amigo para Lisboa.

“Com mil raios! — exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta, com um berro que emudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou o trintanário.

O break parara, todos olhavam suspensos; e, no vasto silêncio da charneca, sob a paz do luar, Cruges, sucumbido, exclamou:

- Esqueceram-me as queijadas!”

Ainda em Os Maias, relatos sobre os palácios não poderiam ficar de fora. O passeio dos amigos Carlos e Cruges rendem roteiros pela cidade histórica, como neste trecho sobe o Palácio da Pena:

“Subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta escura, coroada pelo castelo da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro” — (Os Maias).

O Palácio da Pena, em Sintra

O palácio em tons vermelho, amarelo e pastel é um dos pontos turísticos da cidade — talvez o principal — e traz representações das conquistar portuguesas. Fica no Monte da Lua, no alto da Serra de Sintra. Ou seja, toda a cidade e redondezas podem ser vistas de lá — assim como de quase todos os castelos e palácios que a cidade abriga: a Quinta da Regaleira (com um dos jardins mais bonitos do país e a famosa “torre invertida”, um longo poço), os palácios Nacional de Sintra, Monserrat, de Seteais, Valenças e o Nacional de Queluz, além do Castelo dos Mouros, um local com ares medievais e com uma das melhores vistas da cidade. O Palácio de Seteais, inclusive, foi palco da gravação da série brasileira Os Maias. Hoje, o local abriga um hotel de luxo.

E por falar em hotel, o Nunes e o Lawrence aparecem também no livro. Desses dois, apenas o segundo permanece aberto. Ali circulou boa parte da nata da sociedade e dos intelectuais portugueses nos tempos áureos.

Hotel Lawrence, em Sintra

Inaugurado em 1764, o hotel Lawrence é o mais antigo da Península Ibérica. Foi hospedado lá, em 1809, que Lord Byron começou a escrever o poema A Peregrinação de Childe Harold, onde descreve a cidade como um “éden glorioso”. Eça também se hospedou lá — tanto ele como Byron dão nome às suítes, todas diferentes umas das outras. No menu, o hotel serve o bacalhau à Alencar, prato imortalizado em Os Maias, e o hotel ainda tem uma biblioteca e fica na mesma vila onde está o Museu Ferreira de Castro, dedicado ao autor e sobre o qual falaremos em outro post.

Já o hotel Nunes, propriedade de João Nunes, funcionou de 1864 a 1875 na Vila de Sintra, perto do Palácio Nacional de Sintra (rua Conselheiro Segurado). Em um passeio pela vila, Eça relata as impressões de Cruges sobre o Palácio:

“E foi o que mais lhe agradou — este maciço e silencioso palácio, sem florões e sem torres, patriarcalmente assentado entre o casario da vila, com as suas belas janelas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o vale aos pés, frondoso e fresco, e no alto as duas chaminés colossais, disformes, resumindo tudo, como se essa residência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que cada dia come todo um reino…” — (Os Maias)

Se for a Sintra, é bom preparar as pernas para as ladeiras, trilhas e longas caminhadas para conhecer a cidade. Há claro, opções mais confortáveis: os tuk-tuks que fazem todos os roteiros ou ajudam os visitantes a subir e a descer — como no meu caso — as ladeiras da cidade. Em Sintra, como já dizia Carlos da Maia, “é necessário não perder tempo; a caminho!”.

MAIS SINTRA POR EÇA

Sintra entrou também para a história da literatura portuguesa e, neste caso, não por causa das queijadas. Eça pregou uma peça na imprensa local com ajuda do amigo Ramalho Ortigão. Os dois publicaram cartas anônimas no jornal Diário de Notícias, entre os meses de julho e setembro de 1870, com uma história que terminava com uma morte. As cartas causaram tanto impacto que a polícia portuguesa até investigou o caso. Os leitores também levaram tudo a sério e enviavam cartas na tentativa de elucidar o caso. Era tudo ficção!

A história rendeu o livro O Mistério da Estrada de Sintra. O romance se tornou um marco na literatura portuguesa como o primeiro romance policial português, marcando ainda a primeira incursão de Eça na ficção literária, o primeiro livro de dois autores e, ainda, é nesse livro que o personagem Fradique Mendes, alter ego de Eça, é apresentado aos leitores pela primeira vez. Lugar de moradas ancestrais, Sintra a história é mais uma a envolver a cidade em enigmas familiares e lendas.

“A ausência do lenço, o desaparecimento da gravata, a colocação do fato, aquele cabelo louro, uma cova recentemente feita no travesseiro pela pressão de uma cabeça, tudo indicava a presença de alguém naquela casa durante a noite da catástrofe. Por consequência: impossibilidade de suicídio, verossimilhança de crime. O lenço achado, o cabelo, a disposição da casa, (evidentemente destinada a entrevistas íntimas) aquele luxo da sala, aquela escada velha, devastada, coberta comum tapete, a corda de seda que eu tinha sentido… tudo isto indicava a presença, a cumplicidade de uma mulher”.

(O Mistério da Estrada de Sintra — Eça/Ramalho)

Em tempo: Tragédia na Rua das Flores, endereço de Sintra próximo ao centro histórico da cidade, é para muitos um esboço do que seria Os Maias. Foi escrito quando Eça morava em Newcastle, entre 1877 e 1878. A obra permaneceu mais de cem anos entre os manuscritos inéditos do autor, sendo publicada postumamente em 1980.

COMO CHEGAR

Palácio de Seteais

Fica a 15 minutos do centro histórico se você topar a caminhada. Ao lado da Quinta da Regaleira.

Fábrica das Verdadeiras Queijadas da Sapa

Endereço: Volta do Duche, 12. Horários: de terça a domingo, das 09:00 às 19:00. Telefone: 219230493. Email: queijadas.sapa@netcabo.pt

Hotel Lawrence

Endereço: rua Consiglieri Pedroso, 38. Telefone: 21.910.5500

PARA LER

Os Maias, Eça de Queirós

A Correspondência de Fradique Mendes (1900), Eça de Queirós

O Mistério da Estrada de Sintra, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão

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