Em memória de Luiz Gama

A história por trás do primeiro monumento dedicado a um homem negro em São Paulo.

Roteiros Literarios
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12 min readAug 22, 2022

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por Leonardo de Lucas

Monumento a Luiz Gama, em São Paulo | Foto: Ana Ottoni

Quem passa numa das pontas do Largo do Arouche, nas proximidades do tradicional Mercado das Flores, no centro de São Paulo, é recebido por um busto imponente de bronze, de olhar fixo ao horizonte. O homem ali representado tem uma importância crucial para a atualidade. Advogado, jurista, jornalista, poeta e escritor, sua atuação mais importante recai sobre o direito mais fundamental de todos: o da liberdade. Sua voz, defensora de uma sociedade mais justa, plural e igualitária ecoa pelos debates públicos país afora e atravessa os séculos emancipando corpos e mentes.

Se Luiz Gama (1830–1882) tivesse nascido numa nação central do hemisfério norte, certamente seria um personagem retratado por gerações em diversos filmes, séries e livros mundialmente conhecidos. Sua história inclui episódios impressionantes: é filho de uma liderança negra de origem africana, Luiza Mahin; foi escravizado e vendido quando criança pelo pai, fidalgo português; aos 17 anos se tornou um autodidata; conseguiu sua liberdade e,
depois de se formar advogado, atuou pela libertação de mais de 500 pessoas escravizadas.

Gama não viveu para ver o fim da instituição mais fundamental do Império e basilar da sociabilidade nacional por quase quatro séculos, mas seu empenho abolicionista semeou parte significativa das lutas que se consolidariam na sua sepultura. Apesar de sistematicamente apagada, na esteira eugenista das primeiras décadas da república, e ressignificada pela figura da Princesa Isabel a mobilização do movimento negro foi crucial para o fim da escravidão.

Luiz Gama (Biblioteca Nacional)

Em parte, como resultado desse cenário de estagnação e até de retrocesso que simboliza essa res nada pública, estamental e racista do pós-abolição — dominada pelas oligarquias agrárias do sudeste — um grupo de intelectuais, no fim dos anos 1920 cria um jornal voltado para o público de origem negra e por meio dele lança uma campanha para construir um monumento, o primeiro de São Paulo, dedicado a honrar a memória de um homem de pele escura.

Na edição de primeiro de setembro de 1929 do Progresso, o articulista Eugênio da Costa argumenta, lançando um desabafo: “Só nós pretos não temos ainda numa praça um homem que na mudez do bronze fale sobre o valor do negro”. Ao final, o manifesto conclamava os leitores e o povo em geral a aderir à empreitada: “A herma de Luiz Gama urge que levantemos! Pretos! Nossos irmãos, atiremos, resolutos, hoje, na voragem da luta, certos,
porém, que é a véspera de uma reconfortante luta!”.

A publicação tornou-se peça importante da imprensa negra paulista. Por suas páginas, veiculavam-se notícias sobre assuntos do cotidiano, mercado de trabalho, educação, vida social, religião, memória da escravidão, ícones afrodiaspóricos e o estado da arte das lutas raciais pelo mundo. Pelo periódico também circulava a organização e a articulação de eventos político-
culturais centrados em reuniões sociais, solenidades, comemorações de efemérides abolicionistas, palestras, sendo de grande destaque a campanha pela construção da estátua.

Ainda em setembro de 1929, Lino Guedes, o editor do Progresso, convidou os
colaboradores jornalistas e escritores para formar a Comissão Pró-Herma a Luiz Gama. Entre as primeiras medidas estavam o envio à prefeitura da capital do requerimento solicitando que se designasse um largo ou uma praça pública e o lançamento da campanha de arrecadação de fundos para a realização do monumento, estabelecendo festivais, concertos, bailes, eventos
desportivos e outras atividades coletivas.

A mobilização logo envolveu outros jornais, associações e grupos não só de São Paulo, mas também do interior, como de Campinas, Piracicaba, Botucatu, Jundiaí e até mesmo Uberaba, em Minas Gerais, e Salvador, na Bahia, terra natal do escritor e advogado. O movimento, apesar da liderança dos negros paulistanos, englobou e aglutinou em seu esforço homens e mulheres, negros e brancos, crianças e adultos, privilegiados e subalternos, autoridades e cidadãos comuns, tendo cada vez mais abrangência e representatividade.

O plano inicial era inaugurar o monumento no primeiro centenário de seu nascimento, em 21 de junho de 1930. Com os recursos inicialmente levantados, foi possível contratar o jovem escultor Yolando Mallozzi, ainda desconhecido, que aceitou entusiasmado a encomenda. Tudo corria bem, até chegar um pedido da imprensa baiana para alterar a data. Em atenção à
requisição dos conterrâneos de Gama, a Comissão decidiu transferir a festividade para o dia de seu falecimento, 24 de agosto.

Quando chegou a vez da mídia tradicional veicular a empreitada dos jornalistas do Progresso, esta tratou logo de distingui-la em mais de um aspecto de outra campanha que corria em paralelo, a da estátua de Ruy Barbosa. Primeiro, chamando Luiz Gama de “simples soldado do
abolicionismo”, enquanto que o outro era qualificado como “não há termo de comparação”. Em segundo lugar, destacava a diferença entre os grupos e classes sociais que organizavam as campanhas: de um lado a imprensa negra e do outro o Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

A reportagem citada é do Diário Nacional, publicada em 12 de março, e representa, de algum modo, essa perspectiva de apagamento e de ressignificação das lutas abolicionistas. Barbosa, a despeito de seus feitos e méritos, esteve por trás de um dos episódios mais controversos da
recém instaurada república: a queima dos arquivos da escravidão, em 1891. Tal ato parece explicitar o desejo de escamotear o passado ou mesmo de reinventá-lo, como no trecho do Hino à República, composto um ano antes: “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”.

Além disso, a publicação se esquece que Gama teve papel de liderança em rodas intelectuais e de juristas liberais e abolicionistas de São Paulo nos anos 1860, que incluíam José Bonifácio, o moço; Lins de Vasconcelos; Américo de Campos; e o próprio Ruy Barbosa, que na mesma época colaborou em jornal fundado por Gama, o Radical Paulistano. É indiscutível a notoriedade e a importância do filho de Luiza Mahin em seu próprio tempo, fato esse facilmente comprovado pelo seu velório e enterro — o maior já visto — acompanhado nas ruas por nada menos do que dez por cento da população da então provinciana capital paulista.

O relato mais conhecido sobre o acontecimento foi escrito pelo amigo e participante do cortejo Raul Pompeia, autor de O Ateneu. Publicado sob o título de Última página da vida de um grande homem, o texto descreve em detalhes a grandiosidade da comoção pública com comerciantes fechando os estabelecimentos, bandeiras a meio mastro, dezenas de carruagens, bandas de música, inúmeros discursos e milhares de pessoas que seguiam e acompanhavam tudo até mesmo do alto de árvores. Na capela do Cemitério da Consolação acumulavam-se coroas de flores de diversas organizações sociais, incluindo clubes recreativos, jornais, lojas maçônicas, associações de comerciantes e a academia de direito.

Enquanto a Comissão Pró-Herma Luiz Gama lutava para garantir um lugar mais central para o monumento e ainda enfrentaria muitos percalços até a sua realização, a estátua de Ruy Barbosa foi inaugurada sem maiores dificuldades em 1930, nas proximidades do Teatro Municipal. Mas, mesmo com as indefinições de ordem material e burocrática, os organizadores do Progresso mantiveram a ideia de celebrar o centenário do nascimento de Gama em São
Paulo e organizaram uma série de atividades comemorativas.

Logo cedo, teve missa na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
Depois, houve uma caminhada em direção ao túmulo, no Cemitério da Consolação. À noite, realizou-se uma conferência sobre Luiz Gama, no teatro Apolo, com algumas palestras e apresentações de artistas e banda de músicos da Guarda Civil. Por fim, no dia seguinte, ocorreu um curioso jogo de futebol promovido pelo Clube Atlético Brasil entre negros e brancos com a presença da grande estrela do momento, Arthur Friedenreich (“El Tigre”).

O tempo passou rápido e o mês de agosto chegou sem a menor possibilidade de se ver a realização da estátua. Já se sabia, ao menos, que o espaço indicado pela Comissão havia sido aprovado: o Largo do Arouche. Na edição do dia 20, o Progresso comunicava que mais uma vez a inauguração seria adiada, dessa vez, por conta do atraso na aprovação do projeto pela comissão julgadora da prefeitura. O texto ainda propunha uma nova data comemorativa: 28 de
setembro, data da assinatura da Lei do Ventre Livre.

Estátua de Luiz da Gama, em São Paulo

No dia do falecimento de Gama, a Comissão mais uma vez celebrou a efeméride. Assistida por grande número de pessoas, delegações de associações e representantes da imprensa, uma missa de graças foi conduzida na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Ainda na manhã do dia 24, uma procissão percorreu a cidade, sendo liderada pelas lojas maçônicas fundadas pelo escritor. Em frente ao túmulo do abolicionista, muitas flores foram depositadas pelos participantes. Por fim, Lino Guedes, editor do Progresso, proferiu uma conferência sobre a biografia do homenageado na Rádio Educadora Paulista.

Após meses e meses de análises, o parecer dos engenheiros sobre os méritos do monumento recomendava alterações artísticas no pedestal. Foi sugerida uma abordagem menos contemporânea, que melhor se adequaria ao local designado, a parte ajardinada do largo. Acontece que essa já era a segunda alteração na base do busto requisitada ao escultor pelos técnicos municipais. Na visão deles, havia uma desarmonia entre a herma de modelagem
clássica e a sustentação de caráter essencialmente moderno.

Faltavam dezoito dias para a data alvitrada. Com as alterações feitas às pressas, é apenas em 27 de setembro, na véspera da inauguração sugerida pela Comissão, que o prefeito devolve à Câmara o requerimento, solicitando que a casa parlamentar aprovasse a permissão para sua construção. No dia seguinte, a publicação do Progresso não indicou nenhum outro marco no calendário de lutas negras e passou a centrar todos os seus esforços na arrecadação dos fundos necessários.

No mês seguinte, um movimento eclodiria por todo o país e traria mais apreensão sobre o futuro da homenagem: era a Revolução de 1930. Em meio à turbulência vivenciada na capital, o jornal deixou de circular por um tempo, voltando em novembro com um editorial mais destemido e esperançoso: “o grande movimento armado, que deu novos rumos políticos ao Brasil, não foi o bastante para impedir nossos passos”.

Com a acomodação das novas forças políticas, a Comissão tratou de reativar a mobilização junto à burocracia municipal. No entanto, mais um grande empecilho se colocava à autorização do projeto: pela força do golpe federal, o legislativo fora fechado. A ação gerou duas consequências inesperadas e danosas. A primeira foi o fim do trâmite da construção do monumento. E a segunda, ainda pior, era que, sem a casa parlamentar, não havia meio de requisitar os cinco contos de réis anteriormente assegurados.

Mas o rearranjo do poder, menos oligárquico e mais propenso a algumas mudanças, estreitou os canais de diálogo e negociação. O interventor federal nomeado por Getúlio Vargas para São Paulo prometeu receber os membros da Comissão para discutir as reivindicações. Daí em diante, a causa ganhou um novo alento e, no início do ano seguinte, o novo prefeito assinou um decreto autorizando a instalação da estátua. “Fica autorizada a colocação da herma de Luiz Gama, na parte alta do Largo do Arouche, de conformidade com o projeto apresentado pela Comissão Pró-Herma deste grande abolicionista”.

A conversa com o poder público também incluiu os cinco contos de réis prometidos anteriormente pela Câmara. Todavia, num encontro com os membros da Comissão, o chefe do executivo municipal argumentou sobre a impossibilidade de se dispor da quantia para custear a obra. Comprometeu-se, entretanto, em conceder o Teatro Municipal para a realização de festivais, patrocinados pelas altas autoridades do Estado, em benefício da construção do monumento.

Com essa iniciativa, a luta por imortalizar a memória de Luiz Gama ganhou penetração nos setores mais privilegiados da sociedade. Os eventos, que incluíam apresentações de artistas negros, discursos e palestras tiveram muita visibilidade e cobertura jornalística. Essa, conforme fala proferida pelo professor Mello Netto da Faculdade de Direito de São Paulo, era a “maior consagração que se poderia prestar à memória […] daquele que fez de toda a sua existência um lábaro a cuja sombra amiga se abrigavam os desprotegidos da sorte”.

Em consequência, a campanha foi ganhando novas adesões de diversas agremiações sociais, seja de clubes acadêmicos, de clubes recreativos, ou até de organizações ligadas ao movimento operário. Sendo que cada um deles fez também eventos próprios que reverteram parte ou toda a verba arrecadada para o apoio ao monumento. As mulheres negras organizadas também promoveram um baile no salão Itália Fausta e uma joalheria ofereceu uma peça à Comissão para ser sorteada entre os que comparecem ao evento. O “Quadro de damas” do Grupo Carnavalesco Campos Elyseos também fez um grande festival artístico que levantou o montante para a confecção do pedestal de granito.

Em julho de 1931, o escultor Yolando Mallozzi entrega o busto em gesso à fundição e finalmente o corpo imortalizado no bronze ganha forma. A figura de Gama retratada parece uma síntese das diferentes fotografias conhecidas do escritor. O filho de Luiza Mahin está em atitude de tribuno, em postura solene, com sua casaca adornada por uma gravata de laço. Seus traços e sua barba característica foram cuidadosamente entalhados, mantendo um estilo clássico que também realçasse sua etnia.

A cada edição, o jornal Progresso noticiava o empenho e as conquistas advindas da campanha coletiva, sem se esquecer, no entanto, de articular os movimentos necessários para os próximos passos. Sobre a data de inauguração, a publicação adotou uma postura de cautela, sem anunciar nada antes da hora. O dia veio num feriado nacional que comemora um golpe militar travestido de movimento popular: a Proclamação da República. Era, enfim, lançada a pedra fundamental da herma em 15 de novembro de 1931.

A data parece ser estranha por não ter nenhum simbolismo aparente com o movimento negro. Todavia, o homenageado naquela praça pública, o homem filho de uma mãe de origem nagô que foi escravizado ainda criança, que se libertou e que atuou pela emancipação de centenas de pessoas era um republicano. Ou melhor, Luiz Gama era herdeiro do que de mais subversivo e universal havia da tradição do iluminismo. Sua ação nos jornais, na poesia e nos tribunais moveu-se para a realização de fato desses ideais.

Se a ruptura com a monarquia se estabeleceu por meio de um motim na caserna que instaurou um regime autoritário, oligárquico e excludente, tendo um desfecho muito diverso daquele pelo qual o escritor lutava, ao menos simbólica e momentaneamente, o ideal republicano de Gama esteve representado naquele evento matutino, no lado ajardinado da praça. Dessa vez, os principais meios de comunicação estavam presentes e a solenidade do evento encabeçado por organizações negras foi capa e destaque.

No dia seguinte, a primeira página de A Gazeta dizia: “Foi lançada ontem a primeira pedra da herma que os pretos de São Paulo mandaram erguer para perpetuar a memória do grande abolicionista”. Já o editorial do Progresso fazia menção ao acontecimento, destacando o poder da luta organizada como “expressão viva e eloquente de uma nova compreensão do negro”; que a mobilização fosse um “marco de uma nova consciência da Raça”. “Hoje, ante o feito de um grupo de homens humildes, mais do que nunca se impõe a união de todos os pretos […] [para] combatermos o inimigo comum do preconceito — a fim de salvaguardar os direitos que conquistamos em maio de [18]88, assegurando assim as prerrogativas nossas de povo livre”.

Num domingo, em 22 de novembro de 1931, a campanha chegava ao exitoso fim, tendo a memória de Gama imortalizada no bronze numa das principais praças de São Paulo. Estava inaugurado o busto. Assim como no lançamento da pedra fundamental, a presença dos principais jornais foi grande, repercutindo as entidades e autoridades municipais e estaduais presentes e os discursos proferidos. À frente da base que sustentava a estátua, no corpo do remodelado pedestal de granito, os dizeres: “A Luiz Gama. Por iniciativa do Progresso, homenagem dos pretos do Brasil”.

Como parte das festividades, houve missa cantada na Igreja dos Remédios, cortejos, que tinham como ponto de chegada e de partida o busto de Gama, e, à noite, no Theatro Boa Vista, teve apresentação de um concerto e longos discursos e palestras sobre a vida de Gama. Pela primeira vez, fez-se uma marcha que se tornaria tradicional nos anos seguintes, realizada por entidades do movimento negro em datas de luta: a que partiria do monumento e iria até o túmulo no Cemitério da Consolação.

Ao longo da década de 1930, a herma converteu-se num ponto de referência para as diversas associações de representatividade negra. Muitos coletivos realizaram ações no entorno da estátua: palestras, discursos, caminhadas, e até mesmo corridas. Assim foi com a Frente Negra Brasileira, com o Clube Negro de Cultura Social, com a Legião Negra e muitas outras.

PARA LER

Primeiras trovas burlescas de Getulino, Luiz Gama
Liberdade (1880–1882), Luiz Gama — Obras Completas
Democracia, Luiz Gama — Obras Completas

Lições de resistência, Ligia Fonseca Ferreira

O texto apresentado se utiliza de informações e imagens dos projetos de escultura extraídos dos artigos acadêmicos: “A aurora de um grande feito: a herma a Luiz Gama”, de Petrônio Domingues, e “Um retumbante Orfeu de Carapinha no centro de São Paulo: a luta pela construção do monumento a Luiz Gama”, de Lúcia Klück Stumpf e Júlio César de Oliveira Vellozo.

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