O Caminho do Sertão: pelas veredas de Guimarães Rosa

Roteiros Literarios
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8 min readNov 10, 2019

por Maria Fernanda Moraes

Nonada. É a primeira palavra que aparece em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e, ao longo das mais de seiscentas páginas, soma mais seis ocorrências. Antes de fechar o livro ela aparece de novo, na penúltima linha da última página.

Nonada é “coisa sem importância, um quase nada” e sai da boca de um jagunço e vai ganhando significado enigmático, assim como muitas outras palavras do livro: se mostra hora coloquial e quase banal, hora estranha e enigmática.

Esta tensão entre o corriqueiro, o popular, o cotidiano por um lado e o estranho, o enigmático, o hermético, por outro lado, é também uma característica do romance todo.

Além disso, Nonada é também o antônimo ao último sinal gráfico do livro, que é o símbolo do infinito. Assim, o movimento da trama e das ideias de certa maneira vai do quase nada ao infinito.

Ler Guimarães é sempre uma viagem muito grande. Grande Sertão: Veredas pega o leitor pela mão e o convida, literalmente, para um roteiro literário pelo interior das Minas Gerais, uma caminhada. O projeto O Caminho do Sertão aproveitou esse universo roseano e concretizou essa travessia.

O Caminho do Sertão é um grupo que percorre anualmente a pé parte do caminho realizado por Riobaldo, personagem central do livro Grande Sertão: Veredas.

Oferece uma imersão no universo de Guimarães Rosa, na literatura, na geografia, nos saberes e fazeres dos habitantes dos vales dos rios Urucuia e Carinhanha, no noroeste e norte de Minas Gerais.

Na edição de 2016 que aconteceu em julho, a jornada bateu os 160km, pelos vales dos rios Urucuia e Carinhanha, percorrida a pé durante 7 dias. Saiu de Sagarana (distrito pertencente a Arinos/MG) e foi ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas (Chapada Gaúcha/MG).

É uma jornada literária “de Sagarana ao Grande Sertão: Veredas” que leva os caminhantes desde sua primeira obra em prosa até a mais importante das obras de Rosa.

O esquema é simples: caminhada durante o dia, pouso à noite em pontos pré-selecionados, todo mundo em barraca. “Os pousos selecionados permeiam as rotas, nos mantendo em distâncias que medem entre 20 e 40 quilômetros uns dos outros”, contaram os organizadores.

“Nesses pousos, geralmente pequenas vilas, e/ou fazendinhas, organizamos uma dinâmica de camping, onde posterior à caminhada do dia cada caminhante monta sua barraca e a desmonta na manhã do dia seguinte (por volta de 4h). Nestes pousos há uma estrutura organizada de alimentação, banhos e interações variadas. Ah! Os caminhantes não levam suas mochilas e barracas nas costas, há transportes específicos para elas, que seguem diretamente para os pousos”.

Paulo Silva Jr. participou da caminhada em 2015 e conversei com ele para investigar um pouco mais sobre a relação da obra durante a andança, queria saber como Guimarães aparecia por lá.

“O itinerário é mais simbólico”, ele contou. “E a partir daí, Guimarães Rosa vai surgindo nessas imagens — o buriti, a vereda, o Vão Dos Buracos. Vai surgindo também com a contação de história, em rodas de conversa, com ouvir aquelas pessoas falando. Também nas referências todas, os idealizadores do projeto são seguidores do Rosa, a literatura está ali na formação daquelas iniciativas locais. E, claro, na coisa pessoal dos caminhantes, muita gente lendo os livros, falando sobre a experiência da leitura, compartilhando interpretações (afinal é o dia todo andando e trocando ideia)”.

Também fiquei curiosa sobre o perfil de quem faz a caminhada. Ele conta: “Fiz grandes amigos lá, gente que está junta até agora em andanças e ideias por aí, e dos mais variados perfis.

Eu diria que o nome do Rosa está no centro de tudo, ao menos que de forma simbólica, então sinto que as pessoas (as que não conhecem a região, claro, que é a esmagadora maioria) vão com esse imaginário do Rosa. Então, a partir dessa imagem da literatura vai saindo um leque de assuntos que se cruzam ou circulam essa ideia central: as questões ambientais (preservação ambiental, direito à terra, direito à água, retorno ao campo, agricultura familiar, orgânicos, pancs), artísticas (literatura, cinema, fotografia, teatro, enfim, gente procurando reverberações desse sertão do Rosa) e em algum ponto espirituais (não tenho uma palavra melhor, mas diante de toda a vertigem causada pela obra e pelo imaginário de sertão tem uma onda, uma magia, um mistério no ambiente, né)”.

“Em comum, são todas pessoas que em algum momento se encontram numa certa falta de lugar no mundo, questionando educação formal, mercado de trabalho e seus derivados, afinal é gente a fim de tirar 10 dias da vida para andar pelo sertão, já tem um recorte de intenção aí, então acho que a proposta junta uma galera que tem essa abertura do encontro espontâneo”.

Ele continua: “Eu diria que, como fala o projeto, é um encontro sócioecoliterário. Tem a literatura — muito, não dá para não ter -, mas não é um encontro literário”.

Como me ensina um amigo de Caminho do Sertão, o Gabão, eu acho que é a literatura enquanto mediação. No limite, essas pessoas não se reuniriam para andar até um buriti ou uma vereda no noroeste de Minas. Então a literatura taí, a arte nos movimentos, mediando essa nossa conversa, por exemplo”.

“Agora, existe todo um cenário político local de militância social e cultural que acabam também sendo apresentados. A folia de reis, por exemplo, é uma grande influência e eixo do debate — o caminho poderia ser visto como festa popular, também. Não é uma roda de conversa nem um grupo de leitura ou vivência do Rosa, é também esse encontro com esse lugar que é o sertão mineiro”.

Eu, que sou grande fã do livro e do Rosa, não poderia terminar a conversa sem a pergunta do milhão pro Paulo, né. E aí, essa tal de Nonada, como fica nisso tudo? Passou a ter outro significado depois dessa travessia?

“Não sou especialista, nem grande leitor do Rosa, muito menos estudo o assunto para valer, mas diria que o que faz da literatura dele uma coisa única são exatamente essas tensões em que ele consegue ser ao mesmo tempo simples e enigmático. É o nonada e o infinito. O grande livro brasileiro e um dos que mais carregam o peso do ‘difícil’ é definido por seu autor como um ‘monólogo dum jagunço’. Aí que está, o nível de complexidade da narrativa refletindo na simplicidade de você ouvir um homem do campo contando uma história.

“Então acho que sim, a caminhada me ajudou a pensar em outras coisas a respeito dessa desimportância. E o grande efeito de estar lá vale, primeiro, por ser um escritor onde o espaço é muito importante, as pessoas estudam a terra do Rosa, ele forjou um lugar e há uma série de pequenos lugares em Minas Gerais com suas narrativas de pertencimento sobre o tema (lembrei de um debate entre o José Miguel Wisnik e Dieter Heidemann porque disseram que tanto Rosa quanto Drummond revelaram que o primeiro estalo literário que tiveram foi numa aula de geografia, e o Rosa, um tarado por mapas e referências especiais, vai lá e faz esse livro labiríntico); segundo, é conhecer esse lugar que não só foi forjado pelo Rosa como também vive sob mediação do Rosa sem necessariamente ter lido a obra! Essa é uma pira, porque é uma região em que o Rosa está vivo, dando nome para a estrada, para o encontro dos povos, reunindo caminhantes, enfim, ele é um agente social e cultural do lugar; mas claro que não é um livro fácil para todo mundo sair lendo”.

No meio dessas ideias todas, também vale pensar na função intrínseca de um roteiro literário como esses.

Acho que a grande experiência é sacar a literatura como mediadora e, mais, agente de um lugar. É criar relações que se dão em torno disso. Se na vida criamos vínculos majoritariamente por influência geográfica, familiar, de trabalho ou de ambiente escolar, aqui o vínculo entre os caminhantes vai se dar pela literatura. Acho que isso é a coisa mais impressionante que me rendeu vivenciar literatura na pele, exatamente o fato de poder ver o mundo e estabelecer relações a partir daí. E, por fim, ter mesmo que de forma efêmera e talvez micro a literatura enquanto protagonista, a arte como fim de estar vivo, definitivamente”.

QUEM FAZ O CAMINHO

O Caminho do Sertão é realizado pela Agência de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Vale do Rio Urucuia com apoio da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, em parceria com o Instituto Cultural e Ambiental Rosa e Sertão, o Centro de Referência em Tecnologias Sociais do Sertão (Cresertão), a Cooperativa de Agricultura Familiar Sustentável com base na Economia Solidária (Copabase), a Central Veredas e a equipe ECOS do Caminho do Sertão.

A organização da caminhada contou que o projeto nasceu ao longo do ano de 2013 (a primeira turma saiu em 2014) e a ideia foi anunciada oficialmente dentro da programação do Festival Sagarana, um festival de arte e cultura sertanejas produzido na Vila de Sagarana — Arinos/MG). Sua organização foi pensada e gerida por entidades que trabalham o desenvolvimento social e a agricultura familiar na região noroeste do Estado.

COMO FUNCIONA

Todo ano, o Caminho divulga o edital no site, uns dois meses antes da data de saída. Em 2016, foram aprovados 70 caminhantes. Além de preencher a ficha de inscrição, os candidatos precisam enviar uma justificativa, contando porque querem fazer a caminhada e qual seu envolvimento com aquilo.

Durante a organização da terceira edição d’Caminho cerca de 10 pessoas se envolveram na coordenação, mas a produção geral, juntamente com parceiros de diversas regiões do país, e claro da região, somaram mais de 30 pessoas responsáveis pela execução do projeto.

Muitos destes parceiros se envolvem no mundo literário como curiosos, outros amantes, e boa parte de pessoas que de fato, vivem à dinâmica do sertão, literatura vívida. Na coordenação geral, efetivamente todos mantém uma aproximação com a literatura roseana.

PARA LER

· Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (Editora Nova Fronteira)

· Sagarana, de João Guimarães Rosa (Editora Nova Fronteira)

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