O Memorial Heine no Bronx, em Nova York

A história da fonte em homenagem ao poeta alemão que ão vingou em sua terra natal e acabou inaugurada na cidade norte-americana.

Roteiros Literarios
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9 min readMar 17, 2021

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por Leonardo de Lucas*

O poeta alemão Heinrich Heine (WikiCommons)

Em 1897, no ano do centenário de nascimento do poeta alemão Heinrich Heine (1797–1856), estava programada a inauguração de uma grandiosa e imponente fonte na sua cidade natal, Düsseldorf, inspirada em um de seus escritos mais conhecidos, Die Lore-Ley (Lorelei). Por conta de diversas manobras e manifestações antissemitas e nacionalistas, o monumento foi apresentado ao público apenas dois anos depois, no outro lado do Atlântico, a seis mil quilômetros de distância do ponto original, no bairro do Bronx, em Nova York. Neste post, o Roteiros Literários traz um pouco da história por trás dessa mudança de planos.

Memorial dedicado ao poeta Heinrich Heine na cidade norte-americana

Muitas vezes, as estátuas e os monumentos tornam-se representações perdidas no tempo e no espaço, herméticas para a maioria dos transeuntes. No entanto, nem por isso, pode-se dizer que estejam alheias aos conflitos de interesses da luta política. O caso do Memorial Heine ilustra bem isso. A ideia inicial do projeto remonta aos anos 1880, época em que o Império Alemão, recém-unificado, buscava na literatura e nas artes nomes e obras que constituíssem o espírito da nação. Homenagens a Goethe e Schiller, por exemplo, se proliferavam por todo o território. Heine também era um nome notório entre o panteão dos grandes poetas de língua germânica.

Na cidade natal de Heinrich Heine, Düsseldorf, é formado, em 1887, um comitê para a construção de um monumento em memória ao escritor. Poetas e artistas se empenham para a realização do projeto. Outros centros urbanos também criam organizações próprias como forma de apoio. A imperatriz austro-húngara Elizabeth (Sissi), admiradora do autor, se une ao esforço e promete considerável soma em dinheiro, 50.000 marcos, se o escultor berlinense Ernest Herter estiver no comando da obra. Um ano após, o conselho da cidade decide erguer o memorial.

As opções para o local a ser escolhido geraram debates e dividiram as pessoas. Os primeiros esboços do escultor também separaram os que preferiam a figura de Heine, caso da imperatriz, dos que achavam mais adequada uma fonte que simbolizasse o seu poema Lorelei, situação da maioria da população. Conforme o tempo foi passando, o impasse se agravava e a tensão só aumentava. A questão de fundo e que foi se tornando cada vez mais central dizia respeito às posições políticas do poeta.

O autor de Lorelei não era exatamente o que o Reich alemão queria exaltar: crítico à religião e ao antigo regime prussiano, foi censurado e banido; viveu boa parte da vida na França, país que admirava pela liberdade de expressão e pela agitação popular; engajou-se nos movimentos políticos e sociais de ideal socialista, que se estabeleceram como desdobramento da Revolução Francesa. Para piorar, Heine ainda tinha origem judaica.

A ideia da fonte, que prestava homenagem ao poema e não ao poeta, atenuava a conexão com o legado engajado de Heine; até porque, no fim das contas, Lorelei dizia respeito a uma lenda alemã. Já a figura do autor em um pedestal poderia ser interpretada como um reconhecimento de suas inspirações revolucionárias. Enquanto parecia haver acomodação e desfecho para o impasse, outros problemas foram aparecendo.

Logo no início dos primeiros esboços de Herter, algumas forças que se consideravam genuinamente germânicas começaram a se organizar na oposição ao monumento, independente da escolha a ser representada. Primeiro vieram os panfletos que eram distribuídos entre populares levantando dúvidas sobre o homenageado. Depois um pastor publicou “Por que não queremos um monumento a Heine”, caracterizando o poeta como oponente da igreja e do cristianismo.

Daí em diante, as manifestações foram só crescendo. Os “estudantes patrióticos” da Universidade de Bonn exaltaram o processo de unificação, fruto de um grande movimento nacional cristão-alemão no qual não havia lugar para o autor de Lorelei. Jornais conservadores de grande circulação das principais metrópoles condenavam as comparações entre Goethe e Heine, outros, de tiragem menor e de viés antissemita, acusavam o poeta de não ser suficientemente alemão.

Em 1888, após a decisão do conselho municipal de Düsseldorf pela construção do monumento, os ataques chegaram ao ápice com a distribuição de um panfleto intitulado: “O que você acha de Heine? Uma confissão”. Nele o autor afirmava que esse memorial seria um pilar de vergonha para o povo alemão. Com forte apelo simbólico, patriótico e xenófobo, fazia também menções à importância do sangue teutônico e dizia que Heine era um judeu por completo, que não era alemão, que era o protótipo do judaísmo degenerado e moderno.

Ainda que jornais em Berlim, Frankfurt e Viena apoiassem o projeto, a tendência contrária foi ganhando voz e obteve uma grande vitória quando a Imperatriz Elisabeth retirou o seu apoio e o dinheiro prometido, levando o financiamento do memorial quase a estaca zero. Como as doações públicas não tinham conseguido arrecadar muito, o próprio Herter saiu angariando apoio e contribuições entre professores e escritores proeminentes. No entanto, a limitação de recursos levou o conselho a mudar a proposta, o material e o escultor.

Depois de anos de disputas, em 1893, numa manobra burocrática, a prefeitura alegou o vencimento da licença de construção e no mesmo espaço aprovou o estabelecimento de um memorial à Guerra Franco-Prussiana, último capítulo da unificação alemã. Após a derrota triunfal da obra de Herter, outras cidades como Frankfurt e Mainz se mobiliaram para receber o monumento. Mesmo com o apoio do prefeito desta última, as forças conservadoras se organizaram novamente e as mesmas táticas foram utilizadas para desmoralizar o homenageado.

Quando tudo parecia perdido, um jornal de Mainz relata que um grupo de alemães importantes de Nova York estava arrecadando dinheiro para levar o monumento até lá. Herter até chegou a receber um pedido oficial da cidade. E o lugar escolhido não poderia ser melhor: na entrada do Central Park, na esquina 5ª Avenida com a Rua 59. A ideia dos germano-americanos era, além de tudo, passar uma forte mensagem à terra natal sobre o equivoco na recusa à estátua. Se o velho continente não reconhecia o valor de celebrar o poeta, o novo mundo daria a sua redenção.

Por um ano e meio tudo correu bem, até a National Sculpture Society rejeitar o pedido sem muita justificação, dizendo que a obra era “fraca, seca e convencional”. Aos administradores do parque chegaram informações de que o memorial não teria passado por nenhum teste de valor artístico. O jornal Times, que até então estava apoiando o projeto, descreveu-o como um exemplo de mediocridade acadêmica que não merecia estar num espaço tão nobre.

Os admiradores de Heine passaram então a procurar por opções em outros bairros. No início de 1896, membros do Partido Democrata apresentaram o projeto direto à prefeitura, que o aprovou sem especificar o lugar. Porém, por influência dos republicanos, foi aprovada uma lei que determinava que em casos como esse uma comissão de arte deveria ser constituída. Dois anos mais tarde, com alguns percalços burocráticos e disputas políticas, a escultura de mármore finalmente teria um pedaço de chão para se alojar, no então Parque Franz Sigel (atual Kilmer Park), no bairro do Bronx.

Em 8 de julho de 1899, com a presença de Ernst Herter e perante um público de quase seis mil pessoas, foi inaugurado o Memorial Heinrich Heine. O escultor destacou que o poeta, tachado de antipatriota e não-alemão em sua terra, unia agora os seus irmãos germânicos no exterior em um compromisso comum. Na multidão houve quem mencionasse a mente pequena daqueles que continuavam a atacar Heine em seu país natal. Detalhe, nenhuma flâmula do império alemão foi vista na cerimônia, ao passo que a fonte era adornada com duas bandeiras americanas.

Após tantas idas e vindas, o último episódio dessa história ganhava um final honroso. Pouco mais de cem anos após o nascimento de Heine, havia do outro lado do Atlântico uma celebração a altura do seu legado. Só se esqueceram de combinar com os novos vizinhos. A fonte com personagens femininas (sereias) começou a levantar outras polêmicas. Mulheres da Associação Cristã descreveram o memorial como indecente, um espetáculo pornográfico. Atos de vandalismo com picareta retiraram os dois braços de uma das sereias e, um tempo depois, outra ação arrancou a cabeça.

Em 1940, a fonte foi movida para a extremidade norte do parque. Duas décadas mais tarde, as cabeças voltaram a ser cortadas e pichações se tornaram comuns. Nos anos setenta, a estátua foi considerada a mais destruída e deteriorada de Nova York. Curiosamente, um dentista da cidade natal do poeta, Düsseldorf, vinha nas férias para remover os rabiscos e desenhos; ficou conhecido como o “purificador de Heine”.

No final dos anos 1980, planos para restaurar o memorial e transferi-lo ao outro lado da praça, local em que foi apresentado publicamente, ganharam força. Organizações sociais, do município e até do governo da Alemanha se envolveram para arrecadar valores e possibilitar a renovação das instalações da fonte. Dessa vez não houve tanta polêmica, mas o processo também demorou alguns anos para ganhar corpo.

Assim, exatamente cem anos depois, em 8 de julho de 1999, houve a segunda inauguração do monumento. A estátua viu o bairro se transformar, acompanhou a edificação e, décadas depois, a demolição do velho estádio dos yankees, e mais recentemente notou que um novo Yankee Stadium foi construído nos arredores. Ao que tudo indica, o mito de Lorelei encontrou a sua paz, sustentado pelas três sereias de sua base e pela herança de Heine. Hoje, o brilho do mármore revitalizado representa a mudança que se operou durante todas essas décadas em solo germânico.

A história entalhada naquela pedra é a do país que não deu crédito financeiro, cultural e institucional para a sua confecção e exposição. Mas é também a de uma nação que, a exemplo do dentista reparador das depredações, renasceu transformada das próprias cinzas de ódio e intolerância.

Foi somente em 1913 que o escritor recebeu um monumento em sua homenagem numa cidade alemã, em Frankfurt. Em sua terra natal, Düsseldorf, uma segunda tentativa de construir um memorial surgiu em 1931, mas, dois anos depois, com a chegada de Hitler ao poder, foi esquecida.

O nome de Heine foi praticamente banido pela segunda vez em solo teutônico. Já no ano da ascensão dos nazistas, 1933, em 10 de maio, livros do poeta foram queimados em Berlim. É dele um trecho muito conhecido, parte da tragédia Almansor, de 1820, e que se tornaria símbolo diante do Holocausto: “Aquilo foi somente um prelúdio; onde se queimam livros, queimam-se no final também pessoas”.

O poema Lorelei ficou muito popular após ser musicado por Friedrich Silcher. Não havia como o III Reich simplesmente censurar uma canção que estava na boca do povo. Então, estrategicamente, excluíram o nome de Heine, deixando no lugar a informação de que se tratava de obra de autor desconhecido.

Há atualmente dezenas de estátuas de Heinrich Heine em solo alemão e outros países. Sua poesia lírica foi musicada por compositores notáveis como Robert Schumann, Franz Schubert, Felix Mendelssohn, Brahms e Richard Wagner.

Sua literatura foi traduzida para o português por escritores do cânone brasileiro da envergadura de Machado de Assis, Gonçalves Dias e Manuel Bandeira. Castro Alves, por exemplo, foi inspirado pelo seu texto Das Sklavenschiff (Navio de escravos), que retrata a condição terrível de uma embarcação aportada no Rio de Janeiro, para escrever o famoso poema O navio negreiro (tragédia no mar).

SOBRE O MEMORIAL

A fonte fica atualmente cercada por flores e há ainda uma grade preta que talvez seja o motivo de sua preservação. Há um pedestal, com a figura de Lorelei no alto, em destaque, que ergue-se olhando para baixo, como se olhasse para os mares do horizonte. Como no poema de Heine, ela penteia os cabelos. Na base da estátua, fazendo a conexão com as águas, estão três sereias, uma em cada ponta do suporte: Poesia, Sátira e Melancolia. Na parte frontal da estrutura de sustentação, há um relevo de Heine em perfil.

*Todas as informações citadas no texto foram retiradas das seguintes publicações: “Strum und Drang over a Memorial to Heinrich Heine” de Christopher Gray (New York Times); “Der Kampf um des erste Heine-Denkmal” de Dietrich Schubert; e da página do Wikipedia sobre o memorial.

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