O Museu Anna Seghers em Berlim

O apartamento onde a escritora viveu por quase 30 anos é hoje uma casa-museu aberta ao público.

Roteiros Literarios
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9 min readDec 7, 2021

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por Leonardo de Lucas**

A escritora alemã Anna Seghers, codinome usado por Netty Reiling

Em 2006, um monumento temporário de livros gigantes foi exposto na Unter den Linden, avenida principal de Berlim, como forma de apresentar a cultura alemã aos visitantes da Copa do Mundo de Futebol. Os nomes grafados nas lombadas dos volumes não chegavam a vinte e incluíam representantes de peso como Goethe, Lutero, Hegel e os irmãos Grimm. Apenas duas mulheres figuravam na homenagem: uma delas era a romancista Anna Seghers (1900–1983).

Seghers escreveu como ninguém sobre o sistema totalitário do nazismo, sobre o drama humano dos refugiados e sobre a atrocidade dos campos de concentração. Autora de origem judaica e de posições políticas contestatórias, foi duplamente perseguida, teve seus livros banidos/queimados e passou anos no exílio, primeiro na França e depois no México. Ao menos três de seus romances tornaram-se mundialmente conhecidos: A sétima cruz, Os mortos permanecem jovens e Em trânsito.

Desde 1985, o seu apartamento em Adlershof, ao sul de Berlim, tornou-se museu aberto ao público. Pouca coisa foi alterada e o ambiente ainda resguarda o aconchego literário que abrigou a escritora por quase três décadas. Neste roteiro, trazemos um pouco da história da escritora e da Casa Museu Anna Seghers.

Quem quer que passasse por baixo de sua pequena sacada frequentemente ouvia o barulho de sua máquina de escrever. Este foi o sexto endereço em que residiu desde que voltou do México, em abril de 1947. A cidade, recém-acordada do pesadelo megalomaníaco, reduzira-se à capital de um delírio sórdido enterrado e soterrado nos escombros. Seghers retornava a esse lugar maldito que a desterrou com a missão, que já levava a cabo no exílio, de reerguer a cultura alemã e de resgatar o que havia de melhor em seu passado.

Era o ano de 1955 e as tensões políticas da Guerra Fria já haviam formalmente dividido a Alemanha em duas. O prédio escolhido ficava fora dos domínios da Berlim Ocidental, no número 81 da então Volkswohlstrasse, atual Anna-Seghers-Strasse. Rodeada por tílias e outras árvores, a região em nada lembrava os grandes centros urbanos e constituía o ambiente perfeito para que Seghers trabalhasse sem ser perturbada. Mas a decisão de morar ali não era uma questão meramente geográfica e teria muitas implicações para o futuro da escritora.

Anna Seghers, homenagem ao pintor holandês Hercules Seghers, era o pseudônimo que Netty Reiling usava para assinar suas obras. Apesar do sucesso que seus romances faziam em outros países, principalmente nos Estados Unidos, seu nome era desconhecido do público alemão. Não seria por menos: seus escritos haviam sido banidos e queimados e, nessa altura, muitos nunca tinham sido publicados em solo germânico. Seghers, por meio de suas histórias, tocava fundo na ferida do nazismo, trazendo à tona a dor coletiva para que esta não fosse nunca esquecida.

O apartamento simples e pouco adornado localizado no terceiro e último pavimento fora ampliado para receber o marido, László Radványi, que estava no México, e os filhos, Pierre e Ruth, que estavam na França. A escritora já acumulava prêmios internacionais e até um filme hollywoodiano inspirado em um de seus livros. Os móveis permanecem os mesmos, muito pouco foi mudado: design sóbrio dos anos cinquenta preenchido com recordações principalmente da época em que viveu em terras mexicanas. São fotos, caracóis do mar, cerâmica e a reprodução de uma pintura de Diego Rivera.

A máquina de escrever Remington também veio dos tempos do exílio. Atualmente, encontra-se no escritório, mas Seghers a levava à sacada quando o tempo estava bom. De lá de cima, a contemplava a paisagem no horizonte. O lugar a lembrava a sensação de escrever durante seus cruzamentos de barco pelo Atlântico. Travessia: uma história de amor, por exemplo, começou a ser esboçado na volta de uma viagem ao Brasil (quando foi visitar Jorge Amado). Em uma carta a um amigo ela detalha que aquele espaço do seu lar era conhecido como “mastro”.

Mas há um item quase indispensável na maioria dos cômodos. Ao longo dos anos, estantes foram se proliferando pela moradia, subindo do chão ao teto, dividindo quartos e invadindo corredores. Dos quase dez mil livros colecionados, parte significativa veio de antes da partida como refugiada para a França, em 1933. São os exemplares mais raros e os de maior valor afetivo à escritora. Estão ainda catalogados com o seu nome de solteira, Netty Reiling, e representam o seu desenvolvimento como leitora arguta e voraz.

Os volumes desse período vão desde contos de fadas e lendas clássicas alemãs até textos mais técnicos sobre pintura holandesa e história da arte, de quando a escritora fez o doutorado em Heidelberg. Na literatura, há preciosidades como as publicações de Victor Hugo de 1840 e outras edições do século 19 de Friedrich Schiller e de Heinrich Heine encadernadas em couro vermelho. Somam-se a eles Fiodor Dostoievski, Liev Tolstoi, Heinrich von Kleist, Georg Büchner, Jean Racine, Louis Aragon, Émile Zola, Honoré de Balzac e Franz Kafka.

Esses livros têm história. Quando Seghers foi obrigada a sair da Alemanha, os seus pais levaram toda a coleção de Berlim a Mainz, onde residiam. Depois, foram despachados para Paris e lá ficaram por muitos anos. Em 1940, com a catástrofe da ocupação nazista se aproximando, a família teve de deixar tudo as pressas e os volumes ficaram para trás. O filho, Pierre, na época com quatorze anos, ainda conseguiu salvar algumas coisas que eles levaram consigo.

Acabada a guerra, Pierre volta à cidade luz para estudar e, por curiosidade, retorna a casa atrás de alguma lembrança desaparecida. Para seu espanto, os livros continuavam escondidos no porão, incólumes ao terror vivenciado naqueles anos. Eram tantos exemplares que o filho teve de deixá-los numa loja de móveis. De lá, eles só foram repatriados quando Seghers encontrou o apartamento em Adlershof, quase duas décadas depois. Os volumes retornavam a uma Berlim em reconstrução que, ao contrário da anterior, não mais queria bani-los ou incinerá-los.

Na sala de estar, onde Seghers recebia convidados e passava a maior parte do tempo, tudo parece estar em seu devido lugar, dando a impressão de que a qualquer momento a escritora regressará ao cômodo para buscar algo que esqueceu ao sair, como os óculos que estão sobre a mesa. Há um rádio, uma planta que dizem ser igualzinha a original, um enorme fogão de azulejos marrons de decoração, animais de cerâmica nas estantes que parecem proteger os livros. Nas paredes, encontram-se alguns papeis/documentos emoldurados.

Outra curiosidade pode passar despercebida aos visitantes mais ligeiros. Entre esses quadros pendurados, uma carta escrita a mão está em destaque. Não seria comum fazer de uma correspondência um item de exposição a não ser que fosse redigida por alguém especial e importante. Trata-se de um registro de outro alemão exilado, que cem anos antes viveu em Paris: Heinrich Heine. A mensagem é dirigida a sua mãe em Hamburgo. Mas o documento tem um valor ainda mais sentimental: foi um presente do pai de Seghers, negociante de antiguidades, que morreu em 1940.

Heine era talvez o poeta preferido de Seghers, não só pela qualidade lírica, mas também, pela vivência errante, fora do lugar e inconveniente aos poderosos de seu tempo. O autor de Tecelões da Silésia também foi um perseguido político, um banido de seu povo e de seu solo por suas ideias. No México, em sua homenagem, ela criou uma associação de exilados de origem germânica chamada de Heinrich Heine Club. A organização, que tinha centenas de membros, era parte do esforço da escritora de criar um fórum de discussão para resgatar o que de melhor havia na cultura alemã.

Placa na entrada do apartamento

Essa carta de um judeu asilado escapou do inferno nazista. Acompanhou a escritora em todos os seus momentos por mais precários, difíceis e instáveis que fossem. Foi à Suíça, aos Estados Unidos e ao México antes de voltar à Alemanha. Na parede do apartamento na Volkswohlstrasse, era uma inspiração, um incentivo e uma lembrança de resistência e sobrevivência. Em seu testamento, Seghers declarou que a carta deveria ser confiada à Staatsbibliothek zu Berlin, após a sua morte. Hoje, o documento que repousa na sala é uma cópia.

Na sala de trabalho do marido de Seghers, Lásló Radványi, há uma pequena exposição sobre a vida e obra de Anna Seghers, além do acervo de primeiras edições e exemplares em alemão e em língua estrangeira. Nos outros cômodos, encontram-se também livros e mais livros dos anos do exílio em Paris e na Cidade do México, assim como muitos volumes de publicações da Alemanha Oriental, como a coleção Marx-Engels, vendida a preços módicos na época. Alguns autores foram amigos da escritora e há dedicatórias e anotações.

Anna Seghers também foi fundamental na organização da resistência ao nazifascismo na Paris dos anos 1930. Junto com Heinrich Mann, Lion Feuchtwanger e Alfred Kantorowicz, a escritora teve papel ativo na Volksfront, coalização antifascista europeia, e contribuiu para as muitas ações desempenhadas pela organização, como, por exemplo: o Congresso Internacional de escritores em Defesa da Cultura e a Biblioteca Alemã da Liberdade. Seghers também foi membro editorial da Neue Deutsche Blätter, publicada em Praga, para os escritores exilados de língua alemã.

Desde o início, a autora esteve envolvida com a construção da República Democrática Alemã. Foi cofundadora da Academia de Artes e foi presidente da Associação de Escritores da RDA. Além disso, recebeu um doutorado honorário em Jena, em 1959, e, oito anos depois, foi indicada pela Alemanha Oriental a concorrer pelo Nobel de Literatura. Sua atuação muito alinhada aos interesses do partido rendeu críticas de intelectuais do lado capitalista do bloco e do mundo ocidental como um todo. Seghers manteve-se fiel ao projeto de construção de uma sociedade comunista até os últimos dias, mesmo que isso lhe custasse o silêncio sobre alguns dos episódios mais sombrios do regime.

Após a sua morte, em 1 de junho de 1983, a Academia de Artes converteu a sua moradia em memorial. Todo o patrimônio literário da escritora, assim como os bens e o próprio apartamento foram doados à instituição de Berlim e é cuidado por uma fundação específica. Por vontade de Seghers, os royalties que advém do seu trabalho são endereçados a jovens escritores alemães e latino-americanos. Por conta disso, todos os anos, no aniversário de nascimento da autora, em 19 de novembro, é concedido o Prêmio Anna Seghers. Em 2018, o escritor paulistano Julián Fuks foi agraciado com a honraria.

SERVIÇO

O Museu Anna Seghers só funciona às terças e quintas-feiras, das 10h00 às 16h00. As salas da escritora podem ser visitadas em incursões guiadas com até 4 pessoas e realizam-se às 10h00, 11h30, 13h00 e 14h30. O registro pessoal é necessário para todas as visitas guiadas, por e-mail em annaseghersmuseum@adk.de ou pelo telefone 030–6774725.

PARA LER

A sétima cruz, Anna Seghers

Em trânsito, Anna Seghers

Os mortos permanecem jovens, Anna Seghers

Travessia: uma história de amor, Anna Seghers

**Texto inspirado no episódio do podcast Clássicxs Sem Classe, de Juliana Brina, dedicado à autora e com informações sobre o apartamento extraídas do texto Die Wohnung der Seghers, de Klaus Bellin.

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