Paulicéia Desvairada: cenas de SP nos versos de Mário de Andrade

No centenário do livro, os versos do escritor nos guiam pelas cenas da São Paulo de hoje.

Roteiros Literarios
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5 min readFeb 28, 2022

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Fotos: Jéssica Andrade

Capas (a primeira de Emiliano Di Cavalcanti) para o livro Paulicéia Desvairada

2 022 marca os 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922 e também o centenário de Paulicéia Desvairada, livro de Mário de Andrade considerado a primeira obra realmente de vanguarda do movimento Modernista.

O livro completo só seria publicado no final daquele ano. Nos versos, o autor explora suas experiências e relações com a cidade, apelidada de “paulicéia”, mescla deboches, ironias e constatações. Um dos poemas do livro — Ode ao Burguês — foi lido pelo autor durante a Semana de 1922, resultando em muitas vaias por parte da plateia.

Os versos fazem uma análise do provincianismo e da sociedade paulista do começo do século 20, quando a cidade passava por mudanças com aumento da população e a chegada de vários imigrantes. Anos mais tarde, na conferência O Movimento Modernista, o próprio Mário definiu o livro como "áspero de insulto, gargalhante de ironia".

Como São Paulo é cenário do livro, fizemos uma proposta diferente dessa vez: recortar a capital em imagens e inserir os versos do livro como legenda. Para isso chamamos a designer e pesquisadora Jéssica Andrade*, que trabalha com temas ligados a cidades/ rua e tem em São Paulo boa parte de seu objeto de pesquisa. Sobre as imagens, ela explica as escolhas:

“Fiz um exercício de abstração, li cada verso e me fixei em alguma palavra ou frase do verso para ser uma bússola para a escolha da foto. Achei por bem não pegar foto de celular e sim de pinhole (uma máquina fotográfica sem lente), para dar um ar quase onírico para os pensamentos do Mário”.

Abaixo, imagens da Paulicéia Desvairada, na versão 2022.

Profundo. Imundo meu coração…
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios…
Minha alma corcunda como a avenida São João… | Tristura

Alturas da Avenida. Bonde 3.
Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira
Sob o arlequinal do céu ouro-rosa-verde…
As sujidades implexas do urbanismo.
Filets de manuelino. Calvícies de Pensilvânia. | Domador

Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora…
Oh larguezas dos meus itinerários…
Estátuas de bronze nu correndo eternamente,
num parado desdém pelas velocidades… | Anhangabaú

Meu coração sente-se muito triste…
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
Dialoga um lamento com o vento… | Passagem n.º1

Os quarenta-graus das riquezas! O vento gela…
Abandonos! Ideais pálidos!
Perdidos os poetas, os moços, os loucos!
Nada de asas! nada de poesia! nada de alegria!
A bruma neva… Arlequinal!
Mas viva o Ideal! God save the poetry! | A Caçada

As casas adormecidas
parecem teatrais gestos dum explorador do polo
que o gelo parou no frio… |Paisagem nº2

A casa Kosmos não tem impermeáveis em liquidação…
Mas neste largo do Arouche
Posso abrir meu guarda-chuva paradoxal,
Este lírico plátano de rendas mar… |Paisagem nº3

Tenho os pés chagados nos espinhos das calçadas…
Higienópolis!… As Babilônias dos meus desejos baixos…
Casas nobres de estilo… Enriqueceres em tragédias…
Mas a noite é toda um véu-de-noiva ao luar! | Colloque Sentimental

Os caminhões rodando, as carroças rodando,
Rápidas as ruas se desenrolando,
Rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos…
E o largo coro de ouro das sacas de café!… | Paisagem nº 4

São Paulo! comoção de minha vida
Os meus amores são flores feitas de original!…
Arlequinal!… Trajes de losangos… Cinza e ouro…
Luz e bruma… Forno e inverno morno…
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes…
Perfumes de Paris… Arys!
Bofetadas líricas no Trianon… Algodoal!… | Inspiração

Os versos foram retirados dos poemas: Tristura, Domador, Anhangabaú, Paisagem nº1, A Caçada, Paisagem nº2, Paisagem nº3, Colloque Sentimental, Paisagem nº4 e Inspiração.

*** Jéssica Andrade (@jessicadesouzaandrade) formada em Letras com Bacharel em Edição (Mackenzie) e pós-graduada em Design Gráfico (FAAP). Atualmente, está dedicada à pesquisa em Antropologia Urbana, investigando de que maneira o cinema de rua ainda pode construir situações e experiências de sociabilidade entre o citadino e a rua. Desde 2016 atua no coletivo @derivas_urbanas, que usa a intervenção e a publicação como ferramentas para fomentar questões sobre: cidade, memória, corpo e paisagem. Ministra oficinas em Fábricas de Cultura e espaços culturais. Em 2019 realizou uma apresentação no Espaço Atea, na Cidade do México (ateacdmx) com a temática “Ciudades: Espacios en Relación”. Segue neste movimento pendular entre a universidade e os acontecimentos da rua e acredita na subversão e na necessidade de se caminhar por espaços outros, caminhar fora, caminhar dentro, caminhar no intermeio, caminhar com o outro; caminhar é preciso.

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