Real Gabinete Português: uma ponte entre dois mundos no centro do Rio

A história de uma das mais bonitas salas de leitura do país localizada no coração da capital carioca.

Roteiros Literarios
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7 min readSep 5, 2022

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por Andréia Martins

Quem visita as cidades do Rio de Janeiro e de Salvador tem a chance de conhecer duas salas de leitura que estão entre as mais bonitas do país: o Gabinete Português de Leitura. Esses gabinetes foram criados no século 19 com o objetivo de manter viva a cultura portuguesa no Brasil, já que muitos imigrantes viviam aqui. A seguir, você conhece a história do prédio erguido no Rio de Janeiro, ícone cultural e arquitetônico da cidade.

Salão Biblioteca e a fachada do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro

se passavam 15 anos desde a independência do Brasil. Eram os anos trinta do século 19, e o Rio de Janeiro abrigava uma ainda não muito numerosa colônia de portugueses. Mas em maio de 1837, um grupo de 43 emigrantes portugueses — a maioria composta de comerciantes da praça e outros que haviam sido perseguidos em Portugal pelo absolutismo— reuniu-se na casa do advogado António José Coelho Lousada no nº 20 da antiga rua Direita (hoje rua Primeiro de Março) para concretizar uma vontade: fundar um centro associativo que lhes possibilitasse “isolarem-se na doce recordação das coisas da pátria e na ilustração do espírito, pela leitura sã dos bons autores e dos periódicos da época”.

A diretoria, ali eleita, desde logo corroborou a principal finalidade da agremiação e tratou de organizar catálogos que servissem para a encomenda de livros, adquiriu manuscritos raros, obteve obras de autores portugueses, assinou três periódicos de Lisboa, dois do Porto, dois de Londres, dois de França e um de Buenos Aires, “todos, dos que costumam trazer mais amplas e verídicas notícias comerciais, e políticas”. Subscreveu ainda todos os jornais brasileiros que então se publicavam. Assim, o Gabinete Português de Leitura (GPL) do Rio de Janeiro conseguiu formar a sua livraria; em 1860, o local já contava com cerca de 33.000 volumes e, 20 anos depois, rondava os 50 mil exemplares. Esse contexto fez com que o local, em 1880, fosse considerado a mais importante biblioteca do Brasil, depois da Pública do Rio de Janeiro.

“… a sociedade instituída em 1837 sob o nome de Gabinete Português de Leitura (…) é uma associação particular, regida por seus estatutos e pela lei das sociedades civis, que tem por fim promover a instrução entre os seus associados e não associados com a organização e manutenção de uma livraria de caracter literário e científico, em obras impressas ou manuscritas, sobre quaisquer assuntos e em diversos idiomas. A sociedade realiza também, com o mesmo objetivo, preleções ou conferências, em sessões públicas, e poderá, ainda, promover a impressão, à sua custa, das obras que lhe sejam ofertadas por seus autores e a reimpressão das que, por se terem esgotado as anteriores edições, haja conveniência em publicar de novo e sem ferir direitos de quem quer que seja”.

- Real Gabinete Português de Leitura. Resumo histórico, 1940

OBRAS EXPOSTAS NO REAL GABINETE PORTUGUÊS, NO RIO (ROTEIROS LITERÁRIOS)

O Gabinete teve a sua primeira sede no sobrado do nºo 83 da rua de S. Pedro e, em 1842, foi transferido para a rua da Quitanda, onde ocupou um “belo prédio de três pavimentos, de fachada azulejada e beiral de telhas de canal esmaltadas em Alcobaça”. No entanto, o acervo não parava de crescer e, em 1850, a diretoria viu-se obrigada a procurar uma nova casa, desta vez na rua dos Beneditinos. A realidade não mudou. A partir de 1861 a diretoria entendeu que precisaria construir um prédio próprio para acomodar os livros e cumprir com os objetivos da instituição. Só em 1871, compraram o prédio onde funcionava o Hotel São Pedro, na rua da Lampadosa, atual Luís de Camões, então “bairro das artes e dos estudos”, para erguer ali a sede do GPL.

Hoje, o prédio está localizado na rua Luís de Camões, nº 30, está cercado pela Praça da República, a estação Central do Brasil, o bairro de Santa Teresa e a há poucos passos do Café Imperial e da Confeitaria Colombo, dois lugares muito frequentados por escritores na cidade.

Na época da construção, uma questão deu trabalho e atrasou um pouco a obra: as desavenças para a escolha do projeto arquitetônico do local. Por fim, foi escolhido o projeto do arquiteto português Rafael da Silva Castro, o qual possuía traços neomanuelinos e evocava a epopéia de Camões, além de ser inspirado no Mosteiro dos Jerônimos e na Torre de Belém, ambos em Lisboa. As pedras usadas na edificação vieram de navio de Portugal e são as mesmas pedras usadas na construção dos edifícios lisboetas. Mais nacionalista que isso, impossível. Mas essa sempre foi a ideia inicial.

Apesar de todo o imbróglio, aproveitando as comemorações do tricentenário da morte de Camões, no dia 10 de junho de 1880 foi lançada, pelo Imperador, a pedra fundamental do edifício. O ato contou com a presença das autoridades e de muitos convidados. Em 1884, o exterior do prédio já se encontrava concluído e coberto.

Dentro de um programa que norteou a construção do edifício, deviam ser representados o infante D. Henrique, Luís de Camões (foto ao lado), Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. O artista encarregou-se ainda de esculturar, para a fachada, quatro medalhões que representassem Fernão Lopes, Gil Vicente, Alexandre Herculano e Garrett. Os dois últimos encontram-se insculpidos no portal da entrada, como se fossem os “guardiões eternos daquele templo do saber humano”. As atenções, depois de 1884, voltaram-se para o interior do prédio: acabamentos, colunas, os varandins e as estantes destinadas a abrigar o espólio literário acumulado ao longo de 50 anos.

O Gabinete Português de Leitura foi oficialmente inaugurado em 22 de dezembro de 1887, mais de quatro anos depois da data inicialmente prevista. O prédio manuelino, que os portugueses radicados no Rio de Janeiro ali deixaram como padrão da sua nacionalidade e como sucessão histórica do seu valor, custou cerca de 600:000$000 réis. No Brasil, além do Real Gabinete, os principais edifícios neomanuelinos são o Gabinete Português de Leitura de Salvador e o Centro Português de Santos.

O GPL hoje

Em 1906, um decreto assinado por D. Carlos concedeu o título de Real Gabinete Português de Leitura, seis anos depois do local ter sido transformado em biblioteca, ou seja, todos agora podiam frequentar e desfrutar do acervo.

Nos anos seguintes, a instituição passou por dificuldades financeiras com a saída dos mecenas. As despesas passaram a ser rateadas pelas diretorias e só muito depois o governo português, durante alguns anos, no antigo regime, concedeu um subsídio de cerca de 50 contos de reis para amenizar a crise que ameaçava a instituição. Começaram a realizar cursos também, para ajudar nos gastos.

Hoje, as principais atividades do GPL são a biblioteca e o Centro de Estudos. Em 1935, o governo português outorgou ao Gabinete o estatuto de Depósito legal da Biblioteca Nacional de Lisboa. De todas as obras que são publicadas em Portugal, o Real Gabinete recebe um exemplar, tornando-se, assim, a biblioteca com o maior acervo português fora de Portugal, inteiramente informatizado e da ordem de 350 mil volumes.

Entre as obras mais raras da biblioteca podemos citar a edição prínceps de Os Lusíadas, de 1572, que pertenceu à Companhia de Jesus; as Ordenações de Dom Manuel, por Jacob Cromberger, editadas em 1521; os Capitolos de Cortes e Leys que sobre alguns delles fizeram, editados em 1539; A verdadeira informaçam das terras do Preste Joam, segundo vio e escreveo ho padre Francisco Alvarez, de 1540. Possui ainda manuscritos autografados dos livros Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco e do Dicionário da Língua Tupy, de Gonçalves Dias.

Já o Centro de Estudos realiza cursos, conferências, palestras, congressos e demais atividades para promover o intercâmbio e a colaboração com universidades e institutos culturais e artísticos do país e do exterior. Dentro desse núcleo também funciona o Polo de Pesquisa Luso-Brasileiras, criado pela professora Gilda Santos em 2001, e que reúne cerca de 60 professores e pesquisadores.

Mais informações para visitar o Real Gabinete você encontra no site (clique aqui).

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