Roteiro dos escritores em Coimbra

Seguindo os passos dos escritores que viveram na cidade portuguesa em um roteiro para um ou dois dias.

Roteiros Literarios
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9 min readJan 26, 2022

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por Andréia Martins

O Largo da Portagem, em Coimbra

P ara os fãs de literatura e história, a cidade de Coimbra, em Portugal, é parada obrigatória. Seja por causa da Universidade de Coimbra, a mais antiga do país e uma das mais antigas da Europa, ou da Biblioteca Joanina, que pertence à universidade e é reconhecida com uma das mais originais e espetaculares bibliotecas barrocas europeias (a biblioteca vai ganhar um texto só dela). A cidade guarda também memórias de muitos escritores que lá nasceram ou por lá passaram. A lista inclui nomes como Camilo Pessanha (coimbrense), Eça de Queirós, Miguel Torga, António Nobre, entre outros.

Abaixo, você confere um roteiro para repetir os passos dos escritores e cujo trajeto permite a visita a outros pontos importantes da cidade. Pode ser feito em um dia — caso você não entre em todos os museus do caminho e comece a caminhada cedo — ou em dois, caso queria explorar com mais calma a cidade e entrar em um ou outro museu. Vale sempre conferir se os museus estão abertos nos horários informados. Prontos?

Quero mostrar-te Coimbra. Hás-de gostar. Partamos.
Dá-me o teu braço e vem daí comigo, vamos!”

por António Nobre, Carta a Manoel

LARGO DA PORTAGEM

O início do nosso roteiro. O largo é rodeado por prédios antigos e cafés. É parada fácil para quem chega de comboio à cidade, a poucos passos da estação seguindo o rio. Era ali no largo que ficava o consultório médico de Adolfo Correia da Rocha (1907–1995), mais conhecido como Miguel Torga, um dos mais influentes poetas portugueses do século 20. Torga era presença habitual nos cafés Central e Arcádia, ambos já extintos (hoje, há outro café na cidade com o nome Central, mas não é o mesmo), que ficavam no largo.

O Café Arcádia, na baixa em Coimbra

O autor foi indicado várias vezes ao Prémio Nobel. Nascido em São Martinho de Anta, Vila Real, viveu (moro na freguesia de Olivais) e morreu em Coimbra. Publicou mais de 50 obras entre romances, contos e poemas. Ele passou a usar o codinome a partir do livro A Terceira Voz (1934). As criticas ao regime franquista espanhol contidas no livro O Quarto Dias, levaram-no à prisão em 1940.

Torga tinha um hábito curioso: não dava autógrafos e nem oferecia livros a ninguém, tudo para que o leitor fosse livre para escolher. Bem antes de iniciar sua carreira literária, em 1920, aos 13 anos, ele viajou ao Brasil para trabalhar em uma fazenda de café de um tio, em Minas Gerais. Ficou no país por cinco anos, até regressar a Portugal.

Próximo da Ponte de Santa Clara, foi inaugurado, a 12 de agosto de 2007, (dia do centenário do nascimento do poeta) o Memorial Miguel Torga, obra conjunta do arquiteto José Bandeirinha e do escultor António Olaio. É constituído por uma passadeira em xisto que culmina com a palavra Torga esculpida em pedra. Na grade foi gravado o poema Memória:

De todos os cilícios, um, apenas, me foi grato sofrer
Cinquenta anos de desassossego
A ver correr, serenas,
As águas do Mondego”

PARQUE DR. MANUEL BRAGA

Seguindo pela avenida Emídio Navarro, um pouquinho mais a frente, à sua direita, você vai encontrar o parque. Além do espaço verde, ali foram colocados bustos em homenagem aos escritores Florbela Espanca (1894–1930), António Arnaut (1936–2018), Antero de Quental (1842–1891) e Manuel Alegre.

Obra em homenagem a Florbela Espanca, feita pelo escultor Armando Martinez

JARDIM BOTÂNICO

O Jardim Botânico de Coimbra foi criado em 1772, durante a Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra. É, desde então, um dos espaços verdes mais importantes da cidade, e por onde passaram vários autores no seu tempo de universitários. Torga cita o jardim no livro A criação do Mundo (O Terceiro Dia).

PENEDO DA SAUDADE

Segundo a lenda, foi ali, inicialmente um simples miradouro, que D. Pedro se refugiou para chorar a morte da amada D. Inês de Castro — talvez a mais famosa (e trágica) história de amor portuguesa. É um dos locais mais românticos da cidade. Hoje, por entre a vegetação, pequenos lagos e cascatas, existem placas com poemas que relembram os tempos estudantis e há o Retiro dos Poetas, onde se encontram várias efígies de autores portugueses famosos, entre eles Eça de Queirós (1845–1900) e António Nobre (1867–1900).

  • Endereço: Avenida Doutor Marnoco e Sousa
O busto de Eça de Queirós e as placas com trechos de poemas

CASA MUNICIPAL DA CULTURA

Espaço com várias valências, integra a Biblioteca Municipal com uma vasta coleção de obras literárias. No exterior, podemos apreciar um mural intitulado Cidade dos Poetas, onde se encontram placas com as assinaturas de vários autores contemporâneos portugueses ligados a Coimbra, como Eugénio de Andrade, Afonso Duarte, Vitorino Nemésio, Manuel Alegre, Ruben A., Joaquim Namorado, Fernando Assis Pacheco e Miguel Torga.

  • Endereço: R. Pedro Monteiro 64

CASA-MUSEU MIGUEL TORGA

A fachada da casa e Torga em frente

Residência do médico Adolfo Rocha, que usava o nome Miguel Torga como pseudônimo, desde 1953 até 1995 (ano em que falece) projetada pelo arquiteto Valdez. Abriu ao público no dia 12 de agosto de 2007, dia do centenário do nascimento do escritor.

Torga destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios. Estão na casa algumas primeiras edições da sua obra e manuscritos, objetos pessoais e peças de arte (pintura, cerâmica, arte sacra).

  • Endereço: Praceta Fernando Pesssoa, nº 3
  • Horário e contato: 2ª a 6ª feira: 14h30–18h00. Tel.: +351 239.781.345
A parte interna da casa, com mobiliários e livros que foram de Torga

Curiosidade: perto do museu há um monumento sem autor identificado que homenageia o poeta e escritor Fernando Pessoa (1888–1935). O conjunto é constituído por um muro curvilíneo tendo de cada lado dois bancos de pedra. De um lado do muro surgem, em bronze, dados biográficos do poeta e um medalhão com rosto de Pessoa, e do lado oposto pode ler-se um dos versos mais conhecidos de sua obra: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

JARDIM DA SEREIA

Próximo da entrada principal há um busto de Camilo Pessanha (1867–1926), de autoria do escultor Cabral Antunes. O monumento foi inaugurado em 1967, por ocasião do primeiro centenário do nascimento do poeta conimbricense. Pessanha foi aluno da universidade, publicando poemas e outros escritos em revistas e jornais. Assumiu-se, gradualmente, como uma das figuras cimeiras do simbolismo português, um movimento literário intrinsecamente ligado à noção de decadência e ao pessimismo.

Do jardim, cruze a Praça da República, ponto boêmio da cidade. Aqui é boa ideia parar em um café ou bar para um pausa depois da caminhada.

AV. SÁ DA BANDEIRA

Obelisco em homenagem a Camões em Coimbra

Continuando o trajeto, na avenida encontramos referências a vários autores portugueses, entre eles Gil Vicente (c. 1465 — c. 1536), Padre António Vieira (1608–1697) e Luís de Camões (1524–1580).

Uma delas é o Teatro Académico de Gil Vicente. Autor de uma vasta obra teatral, Vicente apresentou ao rei D. João III, em Coimbra, a peça Comédia Sobre a Divisa da Cidade de Coimbra, em 1527, um texto de louvor à cidade. Ainda, ao final da avenida está uma estátua em homenagem a Camões, transferida para lá depois de passar anos no largo da universidade.

RUA DAS FLORES

Localizada na Alta de Coimbra, a rua foi residência de escritores e palco de alguns dos momentos mais marcantes da literatura portuguesa do século 20. Ali viveu José Régio (1901–1969), nos tempos de estudante. Morou numa pensão no nº 37, conhecida como “Chateau Rose”:

A pensão […] que suponho lá estar ainda senão como pensão, república ou casa particular, era um prédio alto — três andares -, muito estreito, quase enviezado, com duas janelas de frente, em guilhotina, claro está, e pouco fundo, espécie de torre por onde trepava uma escada, de degraus carunchosos, que era preciso subir com muita cautela, tal a sua inclinação”

(João Gaspar Simões, José Régio e a História do Movimento da presença).

No endereço viveu também o escritor Carlos de Oliveira, filho de portugueses emigrados no Brasil, que estudou em Coimbra onde conviveu com João José Cochofel, Fernando Namora entre outros, despertando para a escrita neo-realista.

TORRE DE ANTO

A Torre de Anto que já serviu de moradia no final do séc.19

A torre de origem medieval integrada na antiga muralha de Coimbra foi convertida em moradia nos final do século 19. Ao longo dos tempos ela sofreu diversas modificações, remodelaram-se e rasgaram-se novas janelas, mas o seu aspecto atual não é muito diferente daquela época.

O poeta António Nobre foi um dos moradores do local no final do século 19, enquanto frequentava a faculdade de Direito.

Atualmente, a Torre de Anto acolhe o Núcleo da Guitarra e do Fado de Coimbra que integra o Museu Municipal de Coimbra.

RUA DO LOUREIRO, 12

No número 12 da rua do Loureiro fica a casa onde viveu Eça de Queirós. A rua vizinha, São Salvador, faz também parte dos roteiros queirosianos na Alta Coimbra: no nº16 ele alugou seu último quarto enquanto universitário.

Prédio onde Eça viveu no final da universidade

CASA DA ESCRITA

O palacete quinhentista foi casa de João José Cochofel (1919–1982), poeta e ensaísta neorrealista português. A casa, conhecida como Casa do Arco, fica na rua Doutor João Jacinto e foi adquirida em 1883 aos Viscondes do Espinhal, pelo bisavô do autor. Em 2003, o imóvel foi adquirido pela Câmara Municipal de Coimbra com o intuito de criar a Casa da Escrita. O local passou por uma reforma e foi aberto ao público em 2010.

Cochofel está profundamente ligado à renovação da cultura portuguesa no que ela significa de empenhamento social e político, de militância cívica e afirmação ideológica, de busca de uma identidade coletiva. Foi na residência que nasceu o movimento do Neo-Realismo, sendo o espaço onde durante anos ele se reuniu com nomes maiores da literatura, das artes e do pensamento político como Fernando Namora, Carlos Oliveira, Maria Barroso, Eduardo Lourenço, Miguel Torga, entre outros.

Fachada e sala para eventos na Casa da Escrita

Hoje, a casa pretende recriar esse ambiente de criação literária, produção cultural, livre pensamento e debate de ideias. Possui livraria, biblioteca, salão de eventos, salas de trabalho do segundo andar e um espaço residencial para acomodar escritores portugueses e estrangeiros que ali queiram permanecer durante o processo criativo.

  • Endereço: Rua Dr. João Jacinto, 8

RUA FERREIRA BORGES

O calçadão da Ferreira Borges

Nosso roteiro termina na rua Ferreira Borges, uma das mais emblemáticas e históricas artérias da cidade quer ao nível de atividades econômicas ou de movimentos intelectuais. Foi ali, no nº 70 que nasceu o poeta Eugénio de Castro (1869–1944), um dos fundadores da revista Os Insubmissos e que colaborou também na revista Boémia Nova, ambas seguidoras do Simbolismo Francês. Castro foi, tal como Camilo Pessanha, um dos grandes representantes do simbolismo português.

Ali, aproveite para sentar e tomar um café e experimentar os doces de Coimbra. Você estará a poucos passos do Largo da Portagem, onde o roteiro começou.

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