Uma tarde entre as memórias de José Saramago

Nossa visita à Fundação José Saramago, casa em Lisboa que guarda livros, documentos e objetos do autor português.

Roteiros Literarios
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8 min readJun 18, 2020

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por Maria Fernanda Moraes

Fachada da Casa dos Bicos, onde está a Fundação José Saramago | Foto: Andréia Martins

por Maria Fernanda Moraes

L isboa respira Fernando Pessoa. Isso é posto e indiscutível. Mas uma cidade tão poética, não se restringe a apenas uma devoção e abre sempre espaço para mais paixões literárias. Por isso, desde 2012, quem passa pelas ruas da cidade tem um destino certo assinalado no roteiro: a Fundação José Saramago.

José Saramago (Fundação José Saramago)

Comigo não foi diferente. Estive na cidade em 2018. Sou do tipo de pessoa que gosta de planejar viagem, assinalar os lugares no mapa a serem visitados, dividi-los por dias e proximidade. Como me hospedei em Alfama, abri o mapa e vi que era possível sair de casa e caminhar a pé até a Fundação, que fica num casarão antigo à beira do Tejo.

A escolha foi acertada. Fiz uma caminhada rápida pelas ruas estreitas de Alfama, passei por uma espécie de miniporta que sinalizava a entrada/saída do bairro e voilà: já estava na calçada da Casa dos Bicos. A história da casa se funde com a história do bairro de Alfama, que antigamente era o bairro onde os pescadores humildes moravam.

Ao longo dos tempos a casa serviu a distintas funções, tanto privadas como públicas, sendo mesmo utilizada, durante algum tempo, como armazém de bacalhau. Outro ponto curioso é que no piso térreo da casa é possível visitar os vestígios de épocas passadas: um conjunto de estruturas que remonta às primeiras ocupações do espaço, ruínas da muralha fernandina, tanques romanos (cetárias) de base quadrangular, destinados à salga e conserva de peixes (o famoso garum), e restos de cerca moura.

No primeiro andar fica a exposição permanente chamada “A Semente e os Frutos”. Nas paredes, são exibidos os livros do autor em diversas edições e traduções nas mais variadas línguas. É bonito de se ver as paredes decoradas com capas belíssimas (e outras nem tanto). Há ainda muito recurso audiovisual com entrevistas e participações em programas de TV.

Particularmente, gostei muito das anotações. Me deu vontade de sair da exposição já escrevendo meu próprio diário. Ele anotava de tudo e sempre. É inspirador ver os manuscritos e os diários na caligrafia do autor.

Há ainda algum material inédito, pelo menos para nós, brasileiros, como publicações antigas que saíram em jornal. Gostei de uma “Carta para Josefa, minha avó”, publicada num jornal em 14 de março de 1968.

Além de fã de Saramago, confesso que também sempre acompanhei Pílar, a presidenta da Fundação e viúva do escritor. E qual foi a minha surpresa quando, em meio à visitação da exposição permanente, encontrei-a fazendo uma visita guiada com um grupo de amigos. Ela se dirigia ao grupo em espanhol apresentando cada fase do autor ali exposta. Inicialmente fique reticente se a abordaria ou não. Mas venci meu embaraço e resolvi falar com ela. Afinal, qual era a chance daquele encontro acontecer novamente?

Ela foi muito simpática, logo reconheceu que eu era brasileira, conversamos um bocado, tirei uma foto e agradeci. Ganhei meu dia!

DEGRAUS DÃO BOAS VINDAS

Fundação José Saramago | Foto: Andréia Martins

Logo que você entra na fundação dá de cara com frases com trechos de livros do autor escritas nos degraus que nos levavam aos andares superiores. De certa forma, estão li te dando dão boas vindas, como se Saramago estivesse te guiando por aquele passeio.

A atração principal é a exposição permanente sobre a vida e a obra do escritor. A fundação tem ainda uma biblioteca, espaço de trabalho para pesquisadores, um auditório com capacidade para 80 pessoas, destinado a atividades culturais e uma simpática lojinha com livros e souvenirs do autor.

Livros em diferentes idiomas expostos na Fundação José Saramago | Foto: Andréia Martins

A exposição reúne vários manuscritos, documentos, vídeos, primeiras edições e centenas de traduções em mais de quarenta línguas de seus livros (gosto sempre de ver capas dessas traduções, como os países vendem as histórias em diferentes lugares), e propõe um percurso tanto pela produção literária do autor como pelos seus contextos ideológicos e sociais.

Passamos pelos momentos de sua militância — comunista e ateu, não poupou a esquerda de críticas — , seu interesse em refletir sobre ética, justiça e democracia. Revendo sua obra fica claro que ele, o cidadão, e ele, o escritor, estavam no mesmo nível, no mesmo lugar. Como ele explica, no trecho de uma entrevista concedida em 1994, que está na exposição:

“Tenho muito cuidado em não transformar os meus romances em panfletos, apesar de ser marxista e comunista com cartão. Tenho umas ideias e não separo o escritor do cidadão das minhas preocupações. Acho que nós, os escritores, devemos voltar à rua, e ocupar de novo o espaço que antes tínhamos e agora é ocupado pela rádio, pela imprensa ou pela televisão. É preciso, além disso, fomentar o humanismo, o conhecimento de que milhares e milhares de pessoas não podem aproximar-se do desenvolvimento”.

O visitante tem acesso a anotações que depois viraram livros, entrevistas concedidas ao longo da vida, objetos pessoais como agendas, carteirinhas de bibliotecas. Há fotos com autores como o brasileiro Jorge Amado e o colombiano Gabriel García Márquez, entre outros. Está ali também a medalha do Nobel de Literatura, recebida em 1998, bem como o discurso feito na cerimônia. Em 8 de outubro daquele ano, Saramago se tornou o primeiro escritor da língua portuguesa a ganhar o prêmio.

Imagens de José Saramago que integram a exposição (Foto: Fundação José Saramago)
Carteira de usuário da Biblioteca Nacional de Lisboa exposta na Fundação José Saramago, de 1982; trecho sobre a história por trás do livro Memorial do Convento, de 1982, e a biblioteca da fundação| Foto: Andréia Martins

A exposição acaba com uma reprodução do escritório de Saramago, com a máquina de datilografia, óculos e caneta originais usados pelo escritor.

Reprodução do primeiro escritório de Saramago exposta na fundação | Foto: Andréia Martins

Quer dizer, o passeio acaba mesmo do lado de fora da casa. Em frente ao prédio está a oliveira que foi levada de Azinhaga, cidade natal de Saramago, para Lisboa. Aos pés dessa oliveira foram depositadas as cinzas do escritor no dia 18 de junho de 2011, um ano após a sua morte. Ao lado da árvore, lê-se:

“Mas não subiu para as estrelas se à terra pertencia”.

SARAMAGO E LISBOA

Filho e neto de camponeses, José Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, província do Ribatejo, no dia 16 de novembro de 1922 — embora o registo oficial mencione como data de nascimento o dia 18. Os seus pais emigraram para Lisboa quando ele não havia ainda completado dois anos. A capital portuguesa foi palco de grande parte das realizações do escritor.

Quando tive de recriar o espaço e o tempo de Lisboa onde Ricardo Reis viveria o seu último ano, sabia de antemão que não seriam coincidentes as duas noções do tempo e do lugar: a do adolescente tímido que fui, fechado na sua condição social, e a do poeta lúcido e genial que frequentava as mais altas regiões do espírito. A minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias me levaram a viver noutros ambientes, a memória que preferi guardar foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e de muito sentir, ainda rural nos costumes e na compreensão do mundo”.

Mas o espírito de Lisboa sobrevive, e é o espírito que faz eternas as cidades. Arrebatado por aquele louco amor e aquele divino entusiasmo que moram nos poetas, Camões escreveu um dia, falando de Lisboa: “…cidade que facilmente das outras é princesa”. Perdoemos-lhe o exagero. Basta que Lisboa seja simplesmente o que deve ser: culta, moderna, limpa, organizada — sem perder nada da sua alma. E se todas estas bondades acabarem por fazer dela uma rainha, pois que o seja. Na república que nós somos serão sempre bem-vindas rainhas assim”. — José Saramago, Palavras para uma Cidade

Saramago foi serralheiro mecânico, funcionário da saúde e da previdência social, tradutor, editor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, Terra do Pecado, em 1947, e só voltou a publicar em 1966. A partir de 1976 passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Casou com Pilar del Río em 1988 e em 1993 decidiu dividir seu tempo entre a sua casa em Lisboa e a ilha de Lanzarote, nas Canárias (Espanha). Foi lá que morreu no dia 18 de junho de 2010. Deixou um livro inacabado, “Alabardas, alabardas”, publicado postumamente em 2014.

SERVIÇO

Endereço: Rua dos Bacalhoeiros, 10

Horário de funcionamento: De segunda-feira a sábado das 10 às 18 horas (última entrada às 17:30)

Ingressos: A entrada custa 3 euros, mas a casa tem uma série de parcerias e outros preços. Consulte aqui.

PARA LER — JOSÉ SARAMAGO

Memorial do Convento (1982), (Companhia das Letras)
A Jangada de Pedra (1986), (Companhia das Letras)
O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), (Companhia das Letras)
Ensaio sobre a Cegueira (1995), (Companhia das Letras)
O Homem Duplicado (2002), (Companhia das Letras)
A Viagem do Elefante (2008), (Companhia das Letras)
Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas (2014), (Companhia das Letras)

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