Rotina — O Décimo Quinto Dia

Guto Castro
Rotina
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12 min readJul 14, 2017

São Paulo, Brasil, 10 de abril de 2005

“No primeiro dia da semana, tendo-nos reunido a fim de partir o pão, Paulo, que havia de sair no dia seguinte, falava com eles, e prolongou o seu discurso até a meia-noite.” At 20, 7

Já faz mais de uma semana desde a última vez que lhe escrevi contando dos meus dias rotineiros. O tempo voa, os dias viram horas e as horas viram minutos. E, nesse processo de downsizing que a dimensão tempo tem sofrido, os minutos simplesmente desaparecem no meio da repetição dos nossos atos de recriar o cotidiano. Continuei indo e vindo na mesma morosidade, pagando mais uma semana de academia sem freqüentá-la e seguindo fascinado com cada segundo desta vida que vivo. Essa mesma vida só é entendida quando vista de um retrovisor e a cada dia que releio e revivo minha rotina, menos rotineira ela fica, e mais compreensível se torna. É preciso viver o futuro para entender o passado. E, entender o passado é fundamental para viver bem o futuro. Vixi! Desse jeito nunca vamos viver bem, pois o passado não pode ser alterado e o futuro precisa tornar-se passado.

Você deve ter notado meu caro, que nos meus relatos corriqueiros, falo do dia de hoje começando no dia anterior. Tomei emprestada a forma judaica de contar o tempo, começando a contar-lhe do meu dia nas vésperas do mesmo, a intenção foi esclarecer os antecedentes, contextualizar o ocorrido e situar-lhe na história.

De tal forma, este décimo quinto dia começa no final do décimo quarto dia, um sábado, logo após a aula. Eu, no meu Celta limpinho — pois o Pálio havia sofrido uma pequena avaria devido a uma vala que surgiu no meio do caminho de volta, um sol alaranjado, imponente e dissolvente começava a pôr-se na cidade de São Paulo. Atravessando a ponte Jaguaré, sob o rio Pinheiros, apreciava de longe aquela bola de fogo que parecia querer morrer e talvez se apagar por detrás dos prédios da Zona Oeste.

Tudo isso visto de longe, com um fundo sonoro adequado até que poderia ser uma bonita vista dos prédios que margeiam o rio. Aquela combinação lembrou-me de Chicago, com algumas diferenças básicas como as pontes de metal sobre o rio Chicago ao invés das pontes de concreto pichadas do rio Pinheiros, os barcos de turistas com restaurantes, música e dança da cidade dos ventos se opunham às dragas e espumas de poluição sobre o rio da Zona Sul da paulicéia desvairada. Andava a pé de um lado a outro do rio Chicago, passava admirando os edifícios mais belos do mundo, em São Paulo eu passava de carro e quando conseguia desviar os olhos dos outdoors que tampavam a visão eu quase que podia admirar um ou outro edifício.

Ia rumo ao centro da cidade onde Doryana teimava em morar. Doryana é uma amiga que não tem esse nome, mas ganhou este apelido por ter sido uma experiência inédita da Embrapa: uma mistura da memória inconstante de Dory (Procurando Nemo) e a eterna felicidade non-sense de Polyana com seu jogo do contente, onde sempre encontra uma razão para achar o que há de bom até mesmo a pior das situações. Uma otimista por natureza. Dizem que quando criança, ela e a irmã ganharam presentes de Natal. A irmã ganhara uma bicicleta e começou a chorar, pessimista que era reclamava que os pais não gostavam dela, que queriam que ela fosse andar de bicicleta e se machucasse, dizendo que coisas horríveis poderiam acontecer. Doryana ganhara, imagine só, uma caixa grande, cheia de estrume de cavalo. Abriu a caixa, aquele fedor invadiu a sala, Doryana quase não se continha de tanta alegria. Saiu saltitante, olhando por todos os lados, por trás da cortina, embaixo da cama, na garagem. Um sorriso que não cabia no rosto. Perguntava a todos que encontrava: “Você viu meu cavalo por aí?”.

Doryana e eu fomos então para a Zona Norte da cidade. Uma cidade como São Paulo faz com que suas Zonas e até bairros tenham características e perfis próprios. As zonas Norte e Oeste, por serem menores, explicitam de tal forma isto — que é possível distinguir seus moradores pelo jeito de falar, de andar, de vestir, de viver. A Zona Norte para eles é uma outra cidade, uma outra nação.

Os limites deste país são claramente definidos a Oeste e a Leste — de um lado a Serra da Cantareira, do outro o Rio Tietê. Ao Norte fica a cidade de Guarulhos que avança rumo ao Tucuruvi e Jaçanã — uma região de guerra de fronteiras. E ao Sul os bairros do Limão e da Casa Verde tentam limitar a influência da Freguesia do Ó que ninguém sabe se é Zona Norte ou Zona Oeste. O morador deste quadrilátero é muito bairrista, quase xenófobo. Só saem do bairro se for por situação de vida ou morte (emprego, por exemplo). No máximo se aventuram atravessar o rio e ir até a Penha ou ao Tatuapé para comprar sal. Se o mundo se reúne na Expo Center Norte e no Parque do Anhembi é porque somos o centro do mundo mesmo, pensam eles que mais parecem ter uma cultura de influência sino-argentina do que ítalo-germânica. Desde o começo da desativação do Carandiru, uma mancha no passado imaculado nortista, eles passaram a achar que também são a Suíça brasileira, pois não teriam mais delinqüentes em seus espaços.

Passando pelos postos da alfândega e da imigração que ficam logo depois da ponte da Vila Maria fiquei com medo dos fiscais daquele bairro, minhas aulas de tupi tinham sido muito fracas e já não sabia mais falar “sou da Zona Sul, e vim visitar um amigo” em tupi, muito menos em guarani. Eu sabia falar algumas coisas como “Tucuruvi, Carandiru, Jaçanã, Tietê, Cantareira, Mandaqui” e outros nomes indígenas associados à região. Mas daí a formar frases com sujeito, verbo e predicado seria demais. E se eles fossem como aqueles do Ipiranga que só falam a língua nativa? Graças a Tupã não eram. Até que falavam razoavelmente o português ensinado por Anchieta. Os moradores deste pequeno país são tudo isso, mas são excepcionalmente bons, talvez influência dos povos nativos. Apesar de terem toda a certeza de que vivem no melhor lugar do mundo, eles se compadecem dos outros moradores da cidade e se sujeitam a ir trabalhar nos outros bairros, não por dinheiro e sim para disseminar a cultura superior da Zona Norte.

Já estávamos os três no carro: eu, Doryana e a Umbelioxidil Progressive Brush — Umbi para os íntimos. Umbi é uma engenheira química, que poderia até morar na Zona Norte, mas, incumbida de sua missão de espalhar a cultura ZN pelo mundo, mudou sua base para o começo da Zona Sul e trabalha em uma fábrica de cosméticos no extremo Sul da Zona Sul, lá no D do ABC.

Umbi era a única que conhecia os caminhos tortuosos, tanto os escuros, escusos e esburacados que nos levariam da Zona Norte para a Rodovia Aírton Sena (ex-trabalhadores) assim como as acarpetadas faixas da rodovia Aírton Sena que nos levavam até Mogi.

Iríamos para uma chácara em Mogi. Estranhamente Mogi tinha ficado pra trás e Umbi só dizia: “Siga as placas Bertioga — Melhor Opção”! Eu já não sabia mais o que era praia e o que era campo, Bertioga pra mim era praia, podia até ser a melhor opção — como diziam as placas, mas haviam me chamado para um fim de semana no campo e não naquele lugar cheio de areia, óleo, algas e gente metida. Quase chegando na areia Umbi gritou ‘Vire à esquerda aqui!! Já!” Freei o carro e quase que somente em cima das duas rodas do lado direito fiz um retorno completo, cantando pneus e deixando uma marca negra no asfalto novinho. Chegamos então à casa de campo da família Frugal.

Meu primeiro contato com a família Frugal faz muitos anos, em Passárgada. Quando vim para São Paulo fui apresentado aos demais membros da família: o pai, a mãe e a irmã Frugal. São pessoas calmas, modestas, companheiras, realmente frugais, daquelas que realmente se adaptam ao sobrenome. E, por conseguinte, possuíam uma rede de contato excepcionalmente do bem. Quando reunidos, chamávamos a nós mesmos, frugalmente, de “A Turma do Bem.”

Já estavam todos lá, inclusive o convidado mais importante: o pão. Afinal fomos até lá para partir e repartir o pão. O senhor Frugal possuía uma fama de ser um padeiro de mão cheia. Diziam que ele fazia um pão no forno à lenha que era simplesmente augusto. Eu confesso que já havia até experimentado o tal pão em outras ocasiões. Porém aquela história de que o pão era feito por aquele senhor franzino, risonho, calado e acolhedor pra mim era lenda, lorota, bravata das bravas!

Pior que não era! Melhor dizendo, ainda bem que não era mentira. Era o velhinho mesmo que fazia o pão. Quando cheguei, a filha Frugal fingia estar ajudando e o pai Frugal fingia que ela não estava atrapalhando muito, essas coisas de pai. A primeira fornada saiu alguns minutos depois. Um delicioso pão de batata recheado de queijo e presunto. Não durou nem um minuto. Mesmo estando quente e sendo impossível de se sentir o sabor, engolíamos o pão sem nem sequer respirar. O pão desapareceu aos olhos de todos. Mas, desta vez, todos sabiam para onde tinha ido, para os nossos estômagos.

A razão principal daquele encontro era de fato o pão. Até criamos uma desculpa de que era para comemorar o aniversário do Anísio, marido da Frugal filha. E, ele, ingenuamente, acreditou. Chamamos até a mãe do coitado para parecer mais real a história e ela se deslocou junto com seu marido gigante de Passárgada até Mogi para comer o pão.

Saiu outra fornada e junto o Anísio trouxe uma Fanta Uva falsificada, uma tal de Vita Uva. Ele dizia que era idêntica, mas custava a metade do preço. O troço era intragável, eu então sem nem pensar duas vezes, já articulei a expulsão dele do nosso clube de admiradores da amiga Fanta Uva. Expulso por unanimidade. Persona non grata no clube.

Infelizmente, a Umbi, desavisada e com seu jeito Alice-no-país-das-maravilhas de ser, foi bebendo o refrigerante genérico. Achou estranho no início, mas foi colocando pra dentro. Um copo, dois, três, quando vimos ela estava bebendo no gargalo da garrafa PET de dois litros. Começou então a falar alto, gritar, falar palavrões, subiu na mesa e dançar I Will Survive, It´s Raining Man e YMCA, uma baixaria.

Após dançar trezentas e dezenove vezes começou a acalmar-se. Parecia até que aquela Vita Uva era feita de Êxtase com Red Bull! Ficou então no pé da Geralda (a.k.a. Gê), que estava trabalhando nos EUA e voltava para terras tupiniquins a cada quinze dias, trazendo sempre umas muambas para nós: dois pacotes de M&M’s de Manteiga de Amendoim. Umbi insistia em saber como Gê fazia para atravessar o Rio Grande, queria saber se, caso ela treinasse todo dia no Tietê estaria pronta para ir nadando da Cidade do México até Miami, pelo Rio Grande. Que conhecimento profundo de geografia norte-americana! Antes que começasse a pensar em tomar emprestada a balsa do Elian (aquele menino de Cuba) nós a fizemos deitar e dormir com alguns comprimidos de lexotan (uns quinze). Espero que alguém a tenha trazido de volta, pois nem me lembrei dela na hora de vir embora e talvez ela esteja dormindo até hoje.

Depois que nos livramos da Umbi, comemos novas fornadas do pão e da pizza, o velho Frugal fazia pizza também! Eu mesmo fui colher Manjericão. Pasme você. É uma folha de uma árvore e não o tronco, nem a flor. Aprendi isso depois de acabar com uns três pés de Manjericão. Uma Fanta Uva original, gelada, trincando, apareceu e nos deliciamos com ela, dividindo igualmente aqueles dois litros de néctar dos deuses.

Uma fornada do pão, desta vez em uma nova versão, recheado com goiabada e queijo, saiu. Tentei comer e o recheio, como uma lava vulcânica, queimava minha língua e garganta. Comi outro pedaço para me vingar e meus dedos ficaram com queimadura de segundo grau. Teimosamente engoli um terceiro pedaço, queimando boca, esôfago e estomago e todo o sistema digestivo, mas deixando claro praquele pãozinho doce quem mandava ali.

Dormir foi outra aventura. Nove pessoas em uma senzala que ficava a uns cem metros da Casa Grande, onde repousavam os Frugais e agregados. Ali dividiríamos três beliches e alguns colchões. Quando cheguei o que sobrava pra mim era uma vaga no beliche, na parte superior. Claro que não tinha escadinha ou coisa parecida.

Tentei subir sem acordar ninguém, mas para uma pessoa muito acima do peso e com os ligamentos do joelho rompidos, subir em um beliche não é a coisa mais trivial que existe. Tentei de frente, de costas, apoiando o braço, pulando com a perna boa, e de outras mil maneiras. Meia hora depois ainda estava ali, no chão e com todos do quarto rindo. Subi então nas costas do que estava na cama de baixo, ele gritou e levantou-se um pouco para reclamar, foi o suficiente para içar-me para o pavimento superior.

Adormeci. De manhã, galinhas, porcos, passarinhos e essas coisas chatas que encontramos na roça faziam seus barulhos e tive de me levantar, pensando em fazer uma galinhada e uma feijoada.

O quarto ainda escuro, janelas e portas fechadas. Desci cuidadosamente para não acordar ninguém, fui até o banheiro sorrateiramente, abri cuidadosamente a torneira tendo a perspicácia de colocar a mão antes de a água gelada atingir a louça da pia — impedindo assim um barulho desnecessário. Levantei bem devagar a tampa do vaso sanitário, fiz xixi afiadamente mirando de lado, sem acertar na água. Até mesmo a descarga saiu silenciosamente.

Peguei minha roupa tateando no escuro, me troquei, abri a porta tentando impedir que a claridade entrasse e acordasse os dorminhocos. Fechei a porta atrás de mim, devagar, sem fazer um barulho sequer.

À mesa, com as xícaras usadas, migalhas de pão, e guardanapos sujos e amassados estavam todos sentados e conversando. Só eu estava dormindo ainda. A churrasqueira já estava acesa e a carne assando. Claro que fingi que sabia que estavam todos acordados e fui logo pegando um pão recheado de goiabada e queijo. Colocando-o quase inteiro na boca, notei que estava muito mais quente que na noite anterior e que novamente não sentiria o gosto, apenas o calor e o crescer das bolhas de queimadura na língua. Desisto desse pão.

Uma vez que a desculpa oficial da nossa ida ao campo era o aniversário do Anísio, fui preparar a festa. Doryana havia levado alguns balões e eu os enchi cuidadosamente com água para acertar no aniversariante. Enchi somente uns quarenta balões.

Não é fácil esconder quarenta balões de alguém. O Anísio, com seus quase dois metros de altura, viu de longe aquele arsenal. Ficava escondido atrás da mãe. Era uma cena no mínimo estranha. Um homem de dois metros de altura, com medo de água, escondendo-se atrás de uma velhinha de um metro e meio. Não se afastava da senhora de jeito nenhum. Não poderíamos molhar a coitada. E se ela pegasse uma pneumonia? Ficaríamos com a consciência pesada. Fomos para o plano B: Uma guerra de balões. Havíamos explodido uns três balões quando o Anísio, vangloriando-se por ter escapado ileso, foi até a Casa Grande para buscar mais uma Fanta Uva que escondia em algum lugar ultra-hiper-secreto. Mas ele teria de voltar algum dia.

Fizemos uma escala e cada um ficava de tocaia por quinze minutos, e, quando ele aparecesse a frase secreta seria dita e todos atacaríamos. Após umas duas horas, o Anísio tomou coragem e saiu da Casa Grande. A Sula paraguaia e seu marido francês, ambos moradores da ZN, estavam de tocaia e disseram a frase secreta bem alto: “Ele saiu gente!”. Trinta e sete balões voaram contra o Anísio. Alguns balões acertavam a barriga enorme do homem e voltavam, outros ricocheteavam no cabeção e estouravam no chão. Mas pelo menos uns cinco foram certeiros e cumprimos nossa missão.

O churrasqueiro mor era o homem mais temido da DP da ZN. Com um facão em uma mão, o espeto na outra, uma pistola no peito e um grampo na pochete, ninguém se atrevia a dizer que o churrasco estava sem sal e duro. Sempre que ele perguntava algo a resposta era um unânime “delicioso”, ou ainda um “maravilhoso”, “divino”, ”fantástico”, ”quero mais”. Ainda bem que o senhor Frugal estava por perto e tomava conta de um ou outro espeto, estes nós comíamos e devorávamos com fervor. A esposa do churrasqueiro, uma senhora já, em um momento de partilha até declarou que não agüentava mais. Havia perdido vinte e três quilos no último ano, desde quando o marido resolvera ser Chef de cozinha. Na última vez em que ela tentou tocar em um pacote de miojo ficou detida e incomunicável por duas semanas. E, se por acaso aquela senhora deixasse comida no prato, tinha de fazer 50 flexões e comer o dobro do que deixara. Tínhamos pena dela, mas as mulheres não eram tão exigentes como são hoje, casavam-se com qualquer um. E, depois, não tinham nade de ensinar culinária nas delegacias.

Pelo menos a sobremesa foi farta. Um bolinho e uma bola de sorvete para cada, com uma velinha em cada bolinho. Uma coisa muito meiga, digna do aniversariante. Quando chegou a hora de apagar a velinha, o churrasqueiro teve de usar a força para impedir que o Anísio apagasse a velhinha, ainda bem que havia várias velhinhas por perto e, enquanto ele decidia qual velhinha iria apagar, o churrasqueiro pode montar uma estratégia e negociar, com a arma na cabeça do aniversariante, para que apagasse apenas as velinhas dos bolinhos e não as velhinhas ali presentes.

Cantamos Parabéns, comemos o bolo, limpamos a senzala, demos um tapa na Casa Grande, destruímos outras árvores e nos despedimos com promessas de um novo encontro em breve, quem sabe dentro de dois ou três anos.

O sol já começava a perder seu brilho, aquela bola de fogo meio fugaz aparecia e sumia por entre as nuvens. Milhares de automóveis, cinzas e pretos voltavam para São Paulo. Vinha cada um com sua história, com sua rotina de fim-de-semana, e começavam a formar o rotineiro engarrafamento de fim de domingo, os que fugiram da rotina da cidade, rotineiramente voltavam para a rotina que os esperava logo em frente.

Originally published at gutopress.wordpress.com on July 14, 2017.

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