Biblioteca Élfica encerra atividades

Notório portal de pirataria fecha as portas

Thiago Rosa
RPG Notícias
9 min readMar 29, 2019

--

Lúcio* abriu o browser do celular quase sem pensar. Num ato mecânico, digitou um endereço gravado em sua memória: bibliotecaelfica.com.

A imagem, porém, o atordoou. Em vez do costumeiro fundo preto com letras coloridas, com toda a cara da internet dos anos 90, ele encontrou um anúncio impactante. A página, que antes lhe garantia acesso gratuito (e ilegal) a um vasto acervo de livros de RPG, anunciava o fim de suas atividades. A Biblioteca através da qual havia obtido o Livro do Jogador de D&D 5e, traduzido por fãs, estava fechada. Lúcio se sentiu extremamente triste, imediatamente indo conversar com seus amigos. “Ficamos sem acreditar”, ele me confidenciou.

*Esse nome foi alterado para preservar a privacidade da nossa fonte.

Imagem da página Joga o D20

O que era a Biblioteca Élfica?

A Biblioteca Élfica foi criada para resgatar relíquias do RPG nacional. É um prazer divulgar o nosso querido hobby para novatos e resgatar a memória de jogadores saudosistas.
— O Bibliotecário

A Biblioteca Élfica era uma página destinada a compartilhar conteúdo de RPG. Embora o texto indique que ela fosse voltada a resgatar “relíquias do RPG nacional” (i.e., material fora de circulação) a maior parte do seu acervo consistia de material em circulação atualmente, além de conteúdo estrangeiro traduzido por fãs. Essa distribuição era gratuita, o que garantiu à Biblioteca a lealdade e boa vontade de uma legião de fãs. O mesmo não pode ser dito de sua relação com as editoras, que precisam pagar caro para produzir o material que a Biblioteca disponibilizava a sua revelia.

Diferente de outros portais de pirataria de RPG no Brasil, a Biblioteca Élfica removia do seu acervo links para conteúdo publicado no país mediante pedidos dos donos dos direitos. Embora isso possa inicialmente ser interpretado como um ato moral de apoio ao mercado formal, a realidade é menos aprazível. Os títulos continuavam listados e, caso alguém quisesse, bastava pedir em privado para receber o link para download. Aparentemente, a intenção era se proteger de processos.

Eles fingem que tiram seu material e o liberam de forma privada em quem entra em contato, são mais espertos talvez, mais dissimulados. Sabem que faziam algo errado, só eram espertos suficiente para não ficar batendo de frente.
— Fernando Del Angeles, editor de Savage Worlds da Retropunk

O administrador da Biblioteca Élfica tomou cuidado para manter sua anonimidade. Uma busca whois do domínio apenas indica que ele foi registrado em 2015. Apesar da notoriedade da página entre fãs, o Bibliotecário se manteve misterioso — provavelmente por estar ciente da ilegalidade da sua atividade.

Pirataria, mercado e desigualdade

O debate sobre pirataria é extremamente complexo e cheio de nuances. Infelizmente, especialmente na atual zeitgeist brasileira superpolarizada, ele costuma ser reduzido a dois lados binários. Ou você é contra a pirataria ou é a favor dela. Nenhuma das duas posições faz muito sentido.

A pirataria é uma prática ilegal. Argumenta-se frequentemente que seria ilegal somente em caso de lucro, mas isso é uma interpretação equivocada da lei. O lucro configura apenas um agravante, sendo que o uso de uma obra sem autorização (exceto nas condições pré-estabelecidas da lei, que excluem reprodução completa) é crime com pena de até 1 ano de reclusão. Ainda existe o lado de infração civil, permitindo que o dono dos direitos cobre uma indenização.

A defesa da pirataria costuma andar de mãos dadas com a oposição ao conceito de propriedade intelectual e o anseio por democratização da informação. São ideias muito bonitas na teoria; dificilmente você vai achar alguém que discorde do conceito. Atrelá-las a uma prática criminosa, porém, dificulta imensamente a promoção das mesmas. Essa é uma lição que já foi aprendida, por exemplo, por proponentes da descriminalização da maconha. O debate avançou muito desde que ele foi afastado do tráfico de drogas. Talvez seja uma lição que a galera da liberdade da informação poderia aprender.

Num mundo perfeito, todos teriam acesso gratuito a informação e entretenimento. Infelizmente, não vivemos em um mundo perfeito. Inclusive, dentro do nosso sistema econômico, as previsões são de que ele se torne mais imperfeito em breve. Em 2015, foi projetado que 55% dos empregos existentes até o momento seriam extintos até o ano que vem. A precarização do emprego é um fenômeno em escala global; a tendência é pagar cada vez menos por cada vez mais trabalho. Algumas áreas resistem como possibilidades de emprego mesmo diante da automatização cada vez maior. A área criativa, incluindo RPG, é uma delas… pelo menos por enquanto.

Cada vez mais autores de RPG se voltam para o hobby como única fonte de renda não por uma escolha, mas como uma última tentativa desesperada de sobreviver. Esse fenômeno ainda é muito raro no Brasil, devido ao tamanho do nosso mercado, mas acompanhamos recentemente uma faísca das suas consequências quando a comunidade de autores reagiu negativamente ao financiamento coletivo de Critical Role.

Ao mesmo tempo, aqui no Brasil, a desigualdade social é acachapante. Inclusive, em 2018, ela aumentou pela primeira vez em 15 anos. Quando nossos principais lançamentos físicos de RPG flutuam na faixa de R$150 e o salário mínimo é de R$954, é fácil entender o apelo da pirataria.

Apesar do alto valor de alguns lançamentos, seria injusto dizer que as editoras não se esforçam para propor alternativas. O 3D&T, da Jambô Editora, um dos jogos mais populares e duradouros do país, tem a versão digital de seu livro básico disponível de forma gratuita faz anos. O mesmo vale para o Old Dragon da Redbox Editora. Grupos independentes, como o Lampião Game Studio, oferecem vastas quantidades de material de graça.

A versão digital de 3D&T é gratuita

Uma atenção especial deve ser dadas às versões digitais dos livros mais caros. Elas alcançam preços muito inferiores aos das versões impressas, às vezes até mesmo 1/5 do valor. Compare esse valor com aquele praticado em outros livros digitais no Brasil, normalmente entre 50% e 100% do valor de capa dos livros impressos. Esses últimos valores se alinham com os praticados na DriveThruRPG americana. Ou seja, os livros digitais de RPG brasileiros são vendidos abaixo do preço de mercado por todas as métricas disponíveis.

Sobre pirataria no RPG: gostaria que tudo pudesse ser produzido e distribuído gratuitamente. Como não vivemos em um mundo ideal, faço o que posso para dar a conteúdo gratuito o mesmo tratamento que dou ao que não é.
Não vou ir atrás ativamente de pirataria e pirateiros pra derrubar porque no puedo, estou gordita y cansadita.
Mas o que é bizarro é o nível de baixaria a que algumas discussões chegam.
— Eva Andrade, editora-chefe da Aster Editora

Muito se fala para sobre pirataria servir como propaganda para aumentar o alcance de produtos. Entretanto, nas nossas conversas com fãs da Biblioteca durante a elaboração desse artigo, não observamos esse fenômeno. Além da maioria se concentrar em D&D sem interesse em outros sistemas, os que demonstraram esse interesse já o tinham antes do acesso ao conteúdo da Biblioteca. É importante perceber, porém, que nossa amostragem não foi grande o bastante para ser estatisticamente relevante.

Já ouvia falar do Chamado de Cthulhu antes do site. Gosto muito do insólito.

— Lúcio*

Sem fins lucrativos

Como mencionamos antes, o Bibliotecário afirmava que o acervo era mantido sem fins lucrativos. O site contava, porém, com vários métodos de monetização na forma de anúncios. A renda desses anúncios seria, teoricamente, usada exclusivamente para pagar custos de hospedagem e de uma conta no Mediafire, com todo o excedente destinado à caridade World Food Programme.

Entre esses anúncios, haviam aqueles atrelados a visualizações na página principal, parcerias com lojas e anúncios via adfly. Determinar a renda advinda dos dois últimos tipos simplesmente não é possível sem a colaboração do dono do domínio. Porém, o valor dos anúncios na página principal — os que precisam apenas ser vistos — pode ser aproximado, embora ainda não possa ser calculado com precisão. Anúncios desse tipo pagam entre 0.10$RPM e 10$RPM, uma variação enorme. Vamos considerar o valor mais baixo, de 0.10$RPM. Para irmos adiante, precisamos dos dados de tráfego da Biblioteca.

Anúncios da página em meados de janeiro, cortesia da Wayback Machine

O tráfego da Biblioteca Élfica, mesmo depois de encerrar suas atividades, é invejável. De acordo com o SimilarWeb, a página conta com mais de um milhão de acessos — isso depois de uma queda de 20% em relação ao mês anterior. No mesmo período de tempo, a RedeRPG (o blog de RPG com mais acessos no país, de acordo com o ranking RPGista de blogs) obteve metade desse valor. Com um milhão de de acessos e 0.10$RPM, chegamos a um valor aproximado de 100 dólares recebidos apenas por esse tipo de anúncio.

A conta mais poderosa no MegaUpload custa US$50, apesar de descontos frequentemente baixarem esse valor para 25. A hospedagem e a manutenção do domínio custam muito menos que isso, especialmente considerando que o único conteúdo armazenado no domínio de fato era texto. Dessa forma, a renda obtida dos anúncios seria mais do que suficiente para arcar com todas as despesas.

O trabalho de aplicar monetização de links no adfly não é exatamente rápido ou simples, mas o serviço é extremamente popular em círculos de legalidade duvidosa. Cada um dos links do MegaUpload da Biblioteca Élfica ficava por trás de um encurtamento do adfly, exibindo novos anúncios e gerando mais renda.

Considerando que os anúncios da página principal já pagam as despesas com sobra, o Bibliotecário devia estar muito engajado na luta contra a fome mundial para ter essa trabalheira.

O que levou ao fim da Biblioteca?

Tentamos contato direto com o Bibliotecário pelas redes sociais mas não tivemos resposta. Durante a elaboração desse artigo, fomos contatados no Twitter por uma fonte próxima dele, que nos informou os motivos para o fim das atividades da página. Infelizmente, nossa fonte insistiu para que isso não fosse informado ao público. Tentamos, porém, reunir informações sobre as diversas hipóteses levantadas por terceiros. Tirem suas próprias conclusões.

Conversamos com vários representantes de editoras de RPG, tanto do Brasil quanto do exterior, a respeito de alguma ação deles contra a Biblioteca Élfica. Embora tenham confirmado atrito e ameaças de processos no passado, nenhuma das pessoas com quem falamos sabia de nada feito em relação ao portal recentemente. O próprio Bibliotecário mencionou, em diversas situações, que sua decisão não tinha ligação com nenhuma editora de RPG.

Contato da página Joga o D20 com o Bibliotecário

Isso não impediu que os fãs da Biblioteca elegessem as editoras como as culpadas pelo fim do portal. As diversas teorias de conspiração incluíram um acordo em conjunto para processar, ameaças de violência física, influência do D&D Beyond e até um suborno para que o Bibliotecário tirasse seu portal do ar. Não encontramos evidência da veracidade de nenhuma dessas afirmações.

A própria notoriedade da Biblioteca pode ter influenciado seu fim. Conversamos a respeito disso com um blogueiro de RPG brasileiro, entusiasta da informação livre, que preferiu se manter anônimo.

Olha, o que eu aprendi é que não se linka site pirata em lugares com muito fluxo. Eu via muita gente colando o link da Biblioteca Élfica por aí de maneira distraída, como se nada fosse. Isso aumenta o tráfego nestes sites e as chances de alguém com interesse nos direitos das obras disponibilizadas ali encontrar a página aumentam consideravelmente. E uma vez que ele tenha conhecimento do site, acabou, babau. Ele vai tomar as devidas providências para o fechamento da página. Não tem por que ele não fazer isso. Só o fato de todos falarem do site abertamente já era um problema na minha opinião. Agora, eu vi a “nota oficial” do site dizendo que ele fechou por motivos alheios a esta questão. Se não foi isso não consigo imaginar o que foi.
— Blogueiro Misterioso X*

Alma Negra, o pirata

O legado élfico

O fim da Biblioteca Élfica foi lembrado com tristeza por várias páginas de RPG nas redes sociais, incluindo Roll Cast RPG, RPG.com e Mestre do Jogo. Houve tanta comoção no grupo Pensando D&D, um dos maiores do país, que os tópicos sobre o assunto tiveram que ser trancados e/ou deletados.

A tristeza de alguns fãs

Fora do D&D, ninguém é Leal e Bom ou Caótico e Mau. Ao longo de 6 anos, a Biblioteca Élfica construiu uma comunidade, introduziu jogadores ao RPG, ganhou uma bela grana em cima do trabalho dos outros e quebrou uma cacetada de leis. É inegável que ela teve um forte impacto no cenário brasileiro de RPG, seja esse impacto positivo ou negativo.

Saiba mais

Para uma discussão mais extensa sobre a ilegalidade da pirataria, clique aqui.

Para nosso artigo sobre o financiamento coletivo de Critical Role, clique aqui.

Para uma discussão informal sobre monetização via adfly (em inglês), clique aqui.

--

--

Thiago Rosa
RPG Notícias

Redator e game designer na Jambô Editora. Autor de Karyu Densetsu.