Personagem para seu jogo: O Velho

A trágica história de um homem cansado

Glauco Lessa
RPG Notícias
7 min readApr 1, 2019

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A tarefa de criar personagens marcantes nem sempre é fácil. Para o jogador pode ser difícil sair dos clichês do gênero, enquanto para o mestre, ocupado em criar vários NPCs, pode ser bastante exaustivo.

Nesse texto, sugiro o background de um personagem que pode ser tanto um bom NPC para a campanha de um mestre, como um bom personagem para um jogador que quer um background pronto. A história do Velho aborda temas da mortalidade e velhice. Grandes arrependimentos marcam o personagem, e redenção é tudo o que ele busca antes de partir para sempre. Também é uma boa oportunidade para interpretar um personagem mais sábio e experiente, cheio de ensinamentos para passar aos mais jovens e despreparados.

Do nascimento até os 150 anos de idade

Desde que se lembra, Dante foi um escravo. Sua inaptidão física fez com que fosse usado como entretenimento artístico por seus senhores. Ao longo das décadas, Dante teve vários senhores para entreter. Embora expressasse a angústia e melancolia da escravidão em suas performances, ninguém se importava com elas. Apenas queriam dele as peças de humor e autodepreciação. Sua música e seus poemas sempre falaram da natureza e de toda a vida que havia sobre a face da terra — algo que ele mesmo nunca pôde ver de perto, apenas através de uma janela com barras.

Um dia, depois de guardar tanto rancor e inveja daqueles que podiam andar livremente neste mundo, alguém nas sombras ouviu o chamado da alma de Dante. Era uma bela mulher de cabelos ruivos, de corpo tão belo quanto a mais detalhada escultura, voz sublime e sorriso enigmático. Seu nome, dentre vários outros, era Lilith, a Lua Azul, Rainha da Noite e Maré do Dilúvio.

A oferta de Lilith era clara: em troca da alma e do comprometimento de Dante, seu talento artístico se tornaria mágico, impossível de ser ignorado, mesmo Dante sendo um escravo. “Terás nomes e títulos incontáveis, assim como eu”, foi o que ela prometera.

No dia seguinte, Dante cantou sobre os pássaros, flores e paisagens que jamais vira. Houve lágrima e catarse. Ao fim da última nota, um outro nobre o comprou de seu senhor e lhe concedeu liberdade, tamanha era a comoção que sentia pelo artista.

Dante, o Sumo Poeta, Rebento Exuberante e Lágrima Enclausurada seguiu uma carreira de grandes sucessos e conquistas em todas as civilizações conhecidas de seu tempo.

Seus antigos senhores e todos aqueles que conheceram Dante como escravo, desde o mais simples empregado até o próprio nobre que o libertou, morreram de forma misteriosa.

Esse era apenas o começo do preço a ser pago.

Dos 150 anos aos cinco séculos de idade

Lilith começou a cobrar sua parte da barganha. A princípio, Dante se sentia relutante em cumprir as tarefas que a mulher lhe dava, mas se sentia grato por tudo e em dívida com ela. A cada tarefa, mais violência era necessária e mais sangue era derramado.

Algo dentro de Dante passou a sentir prazer naquilo tudo, e depois de tanto sofrimento, o poeta conseguiu justificar para si mesmo as atrocidades que cometia. Ela já havia sofrido demais, e tudo de bom que vivia agora era merecido. Matar, torturar e destruir deixaram de ser um inconveniente para se tornar um grande passatempo.

Assim se seguiu por alguns séculos, dividido entre a glamourosa vida artística e as tarefas secretas de Lilith, até que Dante conheceu Beatriz em uma de suas viagens. A princípio, Dante a viu apenas como mais uma peça de carne para alimentar sua luxúria insaciável, no entanto, algo diferente aconteceu em seu coração. A camponesa humana, por volta de seus 24 anos, foi a única capaz de tocar a alma do poeta depois de tanta carnificina e homicídio, por razões desconhecidas até ao próprio Dante. Ao fim de sua estadia naquele vilarejo, tendo observado o caráter e beleza de Beatriz à distância, Dante já havia lhe tomado como sua musa platônica, poeta irremediável que era.

Continuou suas viagens e apresentações artísticas, e com elas, o já costumeiro rastro de sangue e sofrimento. Entretanto, algo dentro dele havia mudado, e seus hábitos perversos já não o satisfaziam; de fato, o causavam ojeriza e arrependimento profundos.

Decidiu voltar ao vilarejo onde Beatriz vivia. Estava disposto a abandonar tudo se pudesse vê-la só mais uma vez, mas ao chegar lá, todos estavam mortos, e o lugar estava completamente destruído. Lilith apareceu diante dele, assumindo a autoria do massacre e sua verdadeira aparência. Sua cabeça era completamente calva, suas unhas, longas e compridas. A pele era enrugada e se dobrava várias e várias vezes no abdome e nas laterais do tronco. Algumas partes do corpo expunham os músculos e os ossos, enquanto ela sorria com uma boca sem língua ou dentes.

“Lembre-se do seu devido lugar”, ela disse.

Dante, então, percebeu que todo esse tempo nunca se tornara realmente livre. Foi embora sem proferir palavra, mas seu silêncio dizia tudo: nunca mais trabalharia para Lilith novamente.

Beatriz se foi sem nunca ter sabido da admiração do poeta e das consequências que sua bondade tiveram na vida dele. Nunca sequer conversaram. Apenas uma vez, acenaram um em direção ao outro, quando Dante estava partindo do vilarejo.

Dos cinco séculos aos atuais 853 anos

Escravos desde o nascimento como Dante raramente têm o privilégio de ter um nome. Vivem e morrem sendo tratados por apelidos ou substantivos comuns. O drow foi uma exceção por se tratar de um artista, por isso pôde escolher o próprio nome artístico. Esse era um grande motivo de orgulho para ele, e a primeira coisa que o poeta percebeu é que nomes são a raiz de toda a vaidade.

Já em sua meia-idade, o elfo passou a peregrinar sem destino em busca de respostas. Para isso, abandonou seu nome e todos os seus títulos e glórias. Passou a se apresentar apenas como Velho.

Cansado dos atalhos enganosos do pacto infernal, Velho passou a evitar o uso de suas habilidades de bruxo e buscou reaprender todo o seu ofício de bardo por conta própria, inspirando-se em sua musa, Beatriz. Lilith nunca lhe retirou suas habilidades nem o procurou novamente para forçá-lo a obedecê-la, mas toda vez que o Velho usava os poderes concedidos por ela, parte de sua essência se perdia para sempre. Essa era forma dela demonstrar que o Velho não era nada sem ela, e que mais cedo ou mais tarde ele voltaria.

O Velho nunca teve amigos, nem antes nem depois do pacto com Lilith. Agora que estava realmente livre, decidiu buscar naquilo que sempre mais admirou, a natureza e tudo que é vivo, a resposta para todas as perguntas. Por séculos, isolou-se em montanhas ermas, florestas fechadas e desertos escaldantes. Apesar de toda a culpa que carregava, viver humildemente em meio à criação divina lhe fez desenvolver uma nova capacidade mágica. A vida no mundo lhe dava uma segunda chance de resolver seu passado, já que ele mesmo também é a vida no mundo.

O Velho sabe que não possui mais tanto tempo de vida, e até se surpreende com o quanto pôde viver. Talvez seja por causa do pacto, talvez seja uma dádiva da terra, ele não tem como saber. Seu último e final objetivo é libertar sua alma de Lilith. Assim, quando sua hora chegar, quem sabe seu corpo possa retornar ao mundo que o criou e sua alma siga o caminho natural para os braços da morte.

Personalidade e aparência do Velho

O Velho é um elfo drow velho e decrépito. Quando está dormindo ou parado, pode ser facilmente confundido com um cadáver. No entanto, quando precisa agir, demonstra uma agilidade e força impossíveis para a idade que possui.

Usa roupas simples, basicamente trapos.

Sua personalidade, apesar de toda a tragédia que viveu, é bem-humorada e sacana. O Velho ainda manteve alguns dos excessos da sua vida de artista, sempre atento a mulheres bonitas e bebidas alcoólicas. No entanto, ele tem um controle muito maior desses prazeres do que teve durante o período sombrio de sua vida.

Nem sempre suas atitudes ficam claras num primeiro momento, principalmente quando ele recorre a algum método pouco convencional ou até moralmente duvidoso, mas depois todas essas atitudes se revelam bem intencionadas e parte de um raciocínio bem planejado.

O Velho em diferentes jogos

É possível adaptar a história do Velho nos pontos que você achar melhor, sinta-se livre para isso. Se ele não for drow, por exemplo, ele ainda pode ser de alguma outra raça que vive bastante, ou ter algum motivo especial para viver muito tempo (como o próprio pacto que ele fez). No entanto, a história combina mais com um personagem experiente. Tentar fazer o Velho como um personagem mecanicamente pouco experiente não vai refletir sua sabedoria e tempo de vida.

Em D&D 5E, Tormenta RPG ou Pathfinder, o Velho pode ser Bardo/Bruxo/Druida (ou qualquer outra combinação que passe a mesma ideia) de mais ou menos 15º nível. Em 3D&T Alpha, o Velho poderia ser feito com 12 pontos — 25 se você quiser fazê-lo como alguém muito poderoso, distribuindo em H e comprando várias vantagens mágicas e magias. Em GURPS, recomendo um personagem feito com pelo menos 250 pontos, vários deles investidos em IQ, Vontade e magias e perícias.

A forma de Lilith cobrar a dívida do Velho pode ser em perda de PVs quando usa suas magias. Essa perda pode variar de sistema a sistema, mas recomendo que seja pouco, para não penalizar tanto o personagem. Em jogos parecidos com D&D, pode ser 1d4 de dano, enquanto no 3D&T e no GURPS poderia ser a perda de 1 PV para cada vez que as habilidades do pacto forem usadas.

Gostou do Velho? Pretende usá-lo como NPC ou personagem jogador na sua mesa? Diz aí pra gente!

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Glauco Lessa
RPG Notícias

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.