Antes do coronavírus, o teatro já tinha sido empurrado para “casa”

Mateus Araújo
Rubricas
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6 min readMay 3, 2020

Acompanho atento o desenrolar das alternativas às quais artistas de teatro (e outras linguagens também, mas vou me ater aqui ao teatro) têm recorrido para se manterem ativos, na medida do possível, neste período de isolamento social. YouTube, Instagram e Facebook tornaram-se palcos para espetáculos, e a impressão é de que a tecnologia — antes, dispositivo estético e narrativo tão presente em produções contemporâneas — “engoliu” a cena.

A impossibilidade óbvia de se apresentar espetáculo em uma sala “tradicional”, diante de um público “real”, interfere na mensagem, muda o código, impacta emissor e receptor. Colegas mais precipitados dizem que isso não é teatro — eu tendo a achar que é cedo para teorias herméticas e recusa conservadora. É verdade, porém, que desta vez a transformação se dá em dois campos extremamente fundamentais na arte da representação: a presença e a efemeridade. Mas daí não se pode ignorar o fato de a história já nos ter mostrado inúmeras mudanças, e seria essa mais uma(?).

Antes de teorizar, é preciso analisar subcamadas. Ao meu ver, o que a situação atual traz à evidência são as estruturas enferrujadas pelo desmonte anterior ao coronavírus. E é disso que precisamos tratar agora. A pandemia deve passar; resta-nos entender como estaremos depois dela.

No Brasil, o teatro veio minguando sua estrutura ao longo dos últimos anos, acompanhando a curva de investimento público no setor cultural. Se observarmos o traço gráfico referente ao orçamento e aos fomentos destinados às produções culturais no país, perceberemos uma dialética nas organizações de equipes de espetáculos e grupos artísticos, bem como turnês, temporadas e festivais de teatro.

Na virada do século, vivíamos a desestabilização econômica deixada pelo governo de Fernando Collor. Com a crise e a inflação, abruptos cortes nos investimentos esvaziaram o incentivo público à cultura e praticamente entregaram o patrocínio das artes às empresas privadas, por meio da isenção fiscal (em 1986, foi lançada a Lei Sarney, transformada, em 1991, em Lei Rouanet, e reformulada, em 2019, por Jair Bolsonaro, como Lei de Incentivo à Cultura 22 ).

Mesmo com a chegada de Fernando Henrique Cardoso à Presidência, em 1995, e a criação do Plano Real, a estrutura neoliberal deixou nas mãos das elites econômica e intelectual a escolha do que seria criado culturalmente no País. Quando não, os artistas passavam a depender do seu alinhamento ideológico com governantes para, desta forma, conseguirem subsídios diretos para suas criações.

Não é à toa que aquele foi um período dificultoso para o chamado teatro alternativo — muitos coletivos encerraram suas atividades, por falta de apoio. Outros organizaram movimentos como o Arte Contra Barbárie, em São Paulo, para reivindicar fomento.

Já na primeira década dos anos 2000, com o deslocamento da organização política brasileira para um campo à esquerda, passa a vigorar o projeto lulista que, apesar de um atendimento a interesses sociais contraditórios, apostou em ideais de democratização. De modo geral, nas políticas no setor cultural, propôs um abandono da visão elitista e discriminadora, norteando-se pela valorização da cultura no âmbito nacional correlacionada a mudanças nas leis de incentivo. Entre elas, a criação de critérios e editais pensados para melhor distribuição de recursos por todas as regiões, além da implantação do Sistema Nacional de Cultura, cujo objetivo era estabelecer ações permanentes do Estado através da gestão compartilhada entre as esferas municipal, estadual e federal.

Pernambuco é um nítido exemplo dessa conjuntura — e vou citá-lo pela familiaridade que tenho com essa história. A projeção da arte local (sobretudo a música e o cinema) foi decisiva para pressionar, nos anos 2000, o governo do estado a reestruturar o fomento público cultural, focando em investimentos nos mecanismos de produção e nas verbas do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura). Entre 2007 e 2013, a verba do Funcultura saltou de R$ 4 milhões para R$ 33,5 milhões (“piso” estabelecido em lei estadual, sendo R$ 22 milhões divididos para 11 linguagens e outros R$ 11,5 milhões para o audiovisual).

Foi justamente nesse ínterim que surgiram no estado inúmeros novos grupos de teatro, fortaleceram-se festivais (criados, inclusive, apartados do governo) e, o que é mais salutar, desenvolveram-se poéticas e estéticas cênicas de forte expressão na cena cultural brasileira.

É aqui que volto ao raciocínio inicial desse texto. Tratava-se do topo da curva do teatro nacional (no sentido mais agregador da expressão) com efervescente atividade da economia criativa no Brasil. Algo que logo voltaria ao declínio, a partir de 2013, com as séries de crise financeira e política, e, de certo modo, a desarticulação de boa parte da política cultural — em esferas federativa e local.

Regressamos à centralidade sudestina do dinheiro, e o reflexo, rapidamente, se traduziu no palco. Entre 2013 e 2015, especialmente, no Recife, passamos a rever cenas mais vazias de artistas: solos, monólogos, cenários mais simples, equipes reduzidas ficaram mais frequentes. Sem grana e sem força, os festivais públicos, como o Recife do Teatro Nacional (organizado pela Prefeitura da cidade)— referência no Brasil para circulação de companhias — foi esgotado e desarticulado em seu propósito.

Quem tentou produzir de forma independente se viu encurralado. Recife não conseguiu até hoje reformular seu Sistema de Incentivo à Cultura para captação direta e, inevitavelmente, a política de fomento recai exclusivamente sobre o Funcultura, obrigando artistas a se moldarem a um ciclo vicioso involuntário.

Se falta estofo para criar, também faltam lugares para se apresentar. Os teatros sucateados do Recife têm impeditivo de pautas, e o que restou aos artistas foi abrirem as portas das próprias casas para apresentar seus espetáculos. “Inovação” estética proveniente do jeitinho nosso de se sustentar. Nesse caso, a estranheza do novo não deve estar apartada do significado da ausência de um Estado efetivo.

Com a chegada da extrema direita ao poder nacional, o abismo da desigualdade ganhou uma dimensão ainda maior do que antes. A perseguição às artes e a inércia proposital da articulação de Brasília no âmbito cultural desorientaram por completo quaisquer tentativas de reestruturação da economia criativa no Brasil.

Hoje quando vejo as lives de “teatro em casa” — compreensíveis no período de quarentena — percebo que antes de “romantizar” o desalento de agora, é preciso estar atento às crises de antes. O vírus que obriga atualmente o teatro ser encapsulado pela tecnologia tem um predecessor, também cruel, que vem matando aos poucos.

Num ensaio recém-publicado em e-book, o sociólogo Boaventura Sousa Santos atenta para uma normalidade da exceção, que justifica pela “crise” macro os desajustes capilarizados em inúmeras estruturas. “A crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas sociais (saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos salários. E, assim, impede que se perguntem as verdadeiras causas da crise”, exemplifica. “O objetivo da crise permanente é não ser resolvida. Mas qual é o objetivo desse objetivo?”.

Quando um colega se apressa para preconizar a morte do teatro ou a inexistência de um teatro no ambiente online, e encerra sua crítica neste ponto estético canônico, esvai-se a discussão ali. Mais: quando esse colega constrói sua ideia a partir do mirante privilegiado ao sul do País, ignora completamente a realidade mais ampla dos Brasis.

Agora passageira, a crise vem precedida de uma construção duradoura e permanente. Ausências que empurraram para a rua o teatro e, se não estivermos atentos, deixarão os artistas na quarentena.

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Mateus Araújo
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Jornalista. Repórter do TAB UOL. Mestre em Artes pela Unesp e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro