Um revolucionário em cena — 150 anos de Stanislávski

Em 2013, nos 150 anos de Stanislávski, o Jornal do Commercio publicou esta série de reportagem — em três dias — sobre a vida e a obra do encenador russo que revolucionou os palcos mundiais com seu método de formação. Resgato aqui os textos.

Mateus Araújo
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10 min readMar 11, 2020

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Por Mateus Araújo*

Teatro russo, início da segunda metade do século 19: um “Fausto” (obra de Goethe) montado em apenas oito ensaios. Uma fórmula engessada de trejeitos, cenários e vozes. Atores artificiais, preparação mínima e interpretação exagerada. Teatro russo, metade do século 20: uma cena visceral, um ator mergulhado no personagem, orgânico, mutável. Um nome e um sistema com a força de seu sobrenome foram responsáveis por uma grande revolução no palco, nas coxias e na plateia. Há 150 anos, nascia Constantin Stanislávski (1863–1938), um homem que pensou décadas à sua frente e que mudou a maneira de se fazer teatro a partir de então.

Constantin Serguêievitch Alexêiev (o sobrenome famoso só é adotado depois) nasceu numa família que respeitava a arte. Ele era um dos dez filhos de um bem-sucedido comerciante do setor têxtil e de uma renomada atriz francesa. Àquela época, a Rússia ainda era considerada atrasada culturalmente em relação ao resto da Europa. Em torno do Czar vivia a aristocracia e a cólera da desigualdade em um País essencialmente rural. A arte russa passou a buscar retratar a realidade social, com críticas ferrenhas ao poder da época.

Dentro de casa, na sala em que o seu pai construiu para ser palco das apresentações artísticas da própria família, o futuro encenador russo assumia a figura de ator e de “crítico”. No primeiro dos seus tantos cadernos de anotações (a ponta do novelo de uma grande teoria que futuramente marcaria o teatro moderno), aos 14 anos, em 1877, Stanislávski registrou com detalhes a estrutura e o caminhar das interpretações daquela noite. No chamado Circo Alexêiev havia palco, camarins e ateliês para a criação dos figurinos e cenários. Naquele dia, Stanislávski (apenas no elenco), o pai, os irmãos, os amigos e a governanta encenam os vaudevilles A provinciana, Qual das duas, O velho matemático e A xícara de chá (primeiro ato), conforme esmiúça a pesquisadora Elena Polyakova, no livro Stanislávski, inédito em português.

POR UM TEATRO — Em uma das análises sobre as apresentações na abertura da sala de teatro de casa, o ator fez uma análise severa de sua própria interpretação. “No papel do Matemático, atuei friamente, sem ânimo, sem habilidade, mesmo se eu não estava pior que os outros, também não demonstrei talento algum. O público disse que não consegui fazer o papel”. Para a pesquisadora russa Elena Vassina, formada na Universidade Estatal de Moscou (MGU) e professora de Letras da USP, já naquele momento Constantin se revela o pensador instigado e provocado pelo papel do ator.

“O impressionante é que Stanislávski, desde adolescente, mostra sua capacidade de autoanálise, reflexão crítica e o desejo de aprimoramento, ou seja, aquelas características que vão motivar seus futuros estudos de trabalho de ator”, afirma Vassina. “É difícil separar diferentes facetas do talento de Stanislávski. A meu ver, é justamente a síntese de seu talento de ator, de encenador, de teórico teatral e de pedagogo que cria a sua genial personalidade artística.”

Uma agulha que roça a ferida incessantemente. Era assim que Stanislávski se sentia em relação à maneira com a qual os atores guiavam seus papeis enrijecidos num abecê de formas vulgares e clichês. Para ele, o teatro da Rússia, em geral, vivia composto por quadros ruins e impostações vocais limitadas pelos hábitos da declamação. Era preciso romper com o corpo adestrado do ator, com os sentimentos delineados de forma rígida — era aquela coisa: ou é triste, ou feliz, ou sorri, ou chora.

Stanislávski observava atentamente as interpretações dos grandes atores e atrizes da sua época, como a da atriz Maria Yermolova, de quem era admirador. Para ele, sua conterrânea era dona de um norteamento cênico diferente do imperante até então, mas (por falta de uma sistematização do processo) frequentemente submissa a momentos de inspiração. Havia uma angústia provocadora no menino rico que só pensava em teatro, que clamava por expressividade e, sobretudo, verdade, em cena: “Deus meu! — exclamava em mim a voz da dúvida — será que os artistas do palco estão condenados a servir e transmitir eternamente só o grosseiramente real?”, escreveu em uma das suas anotações.

Essa inquietude, somada à análise e ao detalhamento de tudo que via e de tudo que buscava desconstruir no palco, o levou a desenvolver, em décadas de trabalho, a maior teoria do teatro moderno: um realismo cênico que prezava pelo natural. A partir dos cadernos de anotações que desfiavam passo a passo o processo de preparação do ator na construção do personagem, Stanislávski criou um sistema que faz do ofício do ator uma obra de arte complexa e completa, uma estruturação não só física, mas, sobretudo, erguida no inconsciente e nas memórias sentimentais do intérprete.

“Ele é o único ator e encenador que sistematiza, também de forma artística e literária, as diversas fases do trabalho criativo, técnico e ético do ator”, garante o ator, professor e encenador pernambucano João Denys. “Em termos sistemáticos, nenhum pensador do teatro foi mais longe e mais fundo. O sistema é um sistema de vida artística. Daí sua importância, permanência e vitalidade.” Ideias que foram reunidas em livros que hoje estão espalhados mundo afora como “bíblias” que formam direta ou indiretamente atores: O trabalho do ator sobre si mesmo parte 1: O trabalho sobre si mesmo no processo criador da vivência — diário de um ator, O trabalho do ator sobre si mesmo parte 2: O trabalho sobre si mesmo no processo criador da encenação — materiais para um livro, e O trabalho do ator dobre o papel — materiais para um livro. No Brasil, as obras são respectivamente “A preparação do ator”, “A construção da personagem” e “A criação de um papel”, traduzidas das versões norte-americanas.

Entre o épico e o dramático

Um mestre admirado e muitas vezes provocado pelo confronto. Constantin Stanislávski, além de um opositor a si mesmo — daqueles que faz e desfaz, pensa e repensa sua teoria — marcou não só a história do teatro mundial com seu revolucionário sistema de preparação do ator como também despertou pensamentos divergentes, seja por discípulos próximos ou de “antagonistas”.

Para facilitar o entendimento das teorias complexas das artes cênicas, no senso comum, costuma-se dizer que Brecht se opôs a Stanislávski. O que não é verdade, segundo o coordenador da Licenciatura em Artes Cênicas da UFPE, Luís Reis. “Brecht admirava o pensamento de Stanislávski, por ele ter criado um sistema preocupado com ator. Já existiam outras teorias, mas a de Stanislávski era feita por um ator que se perguntava porque mesmo os bons atores tinham momentos ruins.”

Como conta a pesquisadora e professora da USP Iná Camargo Costa, no artigo “Aproximação e distanciamento (O interesse de Brecht por Stanislávski)”, que compões o livro “Teatro Russo — Literatura e espetáculo”, Brecht tem contato com a obra de Stanislávski quando já estava no exílio, em 1933. Até então, o alemão estava envolvido com a perspectiva de uma revolução no seu país e com a sua própria revolução no teatro, que era combatida pelos veteranos do naturalismo.

Brecht se debruça em um teatro épico se contrapondo à cena dramática de Stanislávski. Em um famoso esquema didático brechtiano, são esmiuçadas as características cênicas que dividem o teatro em dois eixos: o épico e o dramático (este relacionado diretamente a Stanislávski).

A atriz Meryl Streep, no filme “A Dama de Ferro”

O teatro stanislavskiano fala de um ator que sente o personagem, enquanto Brecht mostra o personagem em cena. “Um ator treinado no método de Stanislávski vai tentar viver o personagem, sem possessão espírita. É ele (o ator) que vive o papel. Um exemplo é Meryl Streep (em “A Dama de Ferro”), que vai buscar uma faceta em si para viver a personagem. O ator brechtiano, sobretudo pela sua posição (política) na sociedade, vai mostrar o personagem à plateia, é como se dissesse ‘Olha, existe um personagem, ele está aqui, estou mostrando a vocês’”, explica Luís.

Na verdade, não há uma oposição, no sentido grosso da palavra, entre Brecht e Stanislávski. Há uma reformulação e readaptação de ideias. O teatrólogo russo, ao fundar o Teatro de Arte de Moscou (TAM), deu o pontapé inicial para os debates das ideias da arte cênica moderna. Todos os teóricos que vieram depois dele seguiram seus ideais, influenciados direta e até indiretamente, embora alguns tenham criado tensões. “Só os burros se contrapõem a Stanislávski. Estou exagerando ao dizer isso, claro”, garante o ator e diretor Marcondes Lima. “É que, mesmo Meierhold, Brecht e Grotowski, que aparentemente se opõem ao pensamento do russo, não foram contra ele.”

Brecht parte de Stanislávski, por exemplo, para criar a dramaturgia de Os fuzis da senhora Carrar e Mãe coragem. “Uma atriz brechtiana tem que se apropriar da teoria de Stanislávski”, diz Luís Reis. Segundo o professor, o ator de Brecht tem que ser um exímio ator, tem que ter toda a aproximação pessoal com personagem, para poder depois se afastar. Além disso, também como os stanislavskianos, ter disciplina, inquietude, preparação séria e valorizar o trabalho em grupo.

As divergências de pensamento que surgem em contraponto a Stanislávski precisam — segundo o dramaturgo, encenador e professor da UFPE João Denys — ser contextualizadas histórico e culturalmente. O TAM flertava com uma interpretação realista-naturalista, ainda embora não ficasse preso a esse estilo teatral. As pessoas que viam essa relação superficialmente passaram a creditar o sistema como apenas destinado ao naturalismo, “a tentativa absurda de copiar a vida, de reproduzi-la fielmente no palco”, explica João Denys.

“Logo, todos os encenadores que viam o teatro como uma forma poética antinaturalista se contrapunham, pelo menos a princípio, ao pensamento do encenador russo”, lembra Denys, que teve como uma das influências, para criar seu próprio método de direção, as ideias e experiências stanislavskianas.

Lições de Stanislávski no Brasil

“Quem manda no palco é o ator”. Essa máxima de Constantin Stanislávski é universal e atemporal. Mais de 120 anos depois da criação do seu Teatro de Arte de Moscou (TAM), sua teoria ainda lança reflexos decisivos no teatro, no cinema e na TV contemporâneos. No Brasil, vários grupos e artistas sofreram e ainda sofrem a sua influência.

A primeira alçada de voo para além dos limites russos das ideias stanislavskianas foi em 1905, quando o TAM saiu em excursão por Paris e Berlim e chamou a atenção dos dramaturgos e diretores dos Estados Unidos. Procuravam uma maneira eficaz de contornar os problemas de interpretação dos seus atores. Deste encanto e interesse, surge depois o Actors Studio, referência mundialmente como escola para o cinema hollywoodiano, por onde passaram nomes como James Dean, Marlon Brando, Marilyn Monroe, Meryl Streep e Al Pacino.

Foi na escola de Nova Iorque que o diretor brasileiro Augusto Boal teve um contato mais próximo com a adaptação americana do pensamento de Stanislávski. Entusiasmado pela maneira visceral de interpretação, Boal trouxe para o Brasil esse seu olhar, que foi moldado pelo Teatro Arena.

A onipresença de Stanislásvki acompanha a história das artes cênicas do País. No teatro nacional, outra referência forte com relação à utilização de marcas deixadas por ele são os trabalhos do diretor Antunes Filho, um dos principais encenadores da obra do dramaturgo Nelson Rodrigues. Influenciado pelo contato com os diretores estrangeiros que integraram a equipe do Teatro Brasileiro de Comédias, buscou referência para suas preparações.

“Do ponto de vista de Antunes, a constituição realista da cena é fator primordial, ainda que a forma estética pretendida para o espetáculo afaste-se completamente do realismo. Assim sendo, o sistema que ele estabeleceu ao longo de décadas de trabalho investigativo e criativo é tributário do sistema Stanislavski”, garante o crítico teatral Sebastião Milaré. No entanto, para mergulhar nos enredos rodriguianos erguidos no âmbito do inconsciente coletivo, o diretor, segundo Milaré, cria um método próprio, para dar conta da “lacuna” stanislavskiana cujas ideias enveredavam pela psicologia pessoal, freudiana. “Porém, na plataforma desse novo sistema está, inquestionavelmente, o de Stanislavski”, diz o crítico.

“O jardim das cerejeiras”, dirigido por Antonio Cadengue

Um encenador que também mergulha nos ensinamentos da preparação difundidos pelo Teatro de Arte de Moscou é o pernambucano Antonio Edson Cadengue. Em “O jardim das cerejeiras” (1990), com a Companhia Teatro de Seraphim, ele recorreu a livros do encenador russo para trabalhar com um número expressivo de atores jovens.

“Tive nesse momento o auxílio precioso de Alexina Crespo, que nos ajudou trabalhando individualmente alguns atores”, lembra Cadengue. “Aprofundei-me em diversas ocasiões na teoria de Stanislávski, seja como professor, seja como encenador, na releitura dele feita por Eugênio Kusnet, no seu livro O ator e o método, que precisa urgentemente ser mais lido, repensado e reformulado.”

Instigado pelas provocações do teatrólogo revolucionário, o Grupo Galpão — nome de destaque do teatro brasileiro — usa a teoria do TAM desde o princípio da sua formação, como uma espécie de balizador. “Sua pergunta fundamental é como o ator pode criar e manter um trabalho que seja vivo, provocador e que pulse no aqui e no agora do acontecimento teatral”, acredita o diretor da companhia mineira, Eduardo Moreira.

O Galpão já teve experiências fundamentais com o teatro russo, a partir do encontro com os diretores Anatoli Vassiliev e Iúri Alschitz, discípulos de Stanislávski. “São continuadores dessa extraordinária tradição russa de pedagogia e de transmissão do conhecimento teatral. Vassiliev nos abriu o caminho para o trabalho da ‘análise ativa’ que Stanislávski desenvolveu no estudo de uma peça e seus personagens. Isso foi fundamental na criação do nosso espetáculo Tio Vânia (aos que vierem depois de nós), com direção de Yara de Novaes. E Alschitz trouxe uma metodologia de treinamento para o ator que tem sido muito utilizada pelos atores do grupo.”

PDF das reportagens publicadas no Jornal do Commercio

*Reportagens publicadas Jornal do Commercio, no Recife, de 17 a 19 de janeiro de 2013.

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Mateus Araújo
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Jornalista. Repórter do TAB UOL. Mestre em Artes pela Unesp e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro