São Paulo não é uma cidade

Bárbara Ariola
São Paulo não é uma cidade
5 min readMay 2, 2018
exposição de inauguração do Sesc 24 de Maio

A abertura da unidade do Sesc 24 de Maio, unidade que fica no coração do centro “velho” de São Paulo, contava com um letreiro luminoso com os dizeres do título deste texto. A exposição que aludia as questões políticas e sociais da cidade, assim como suas contradições, concluía bem a sua ideia junto a este letreiro. A frase final é que com todo seu caos, São Paulo não é uma cidade.

Eu fiz uma matéria eletiva na faculdade pra preencher as matérias que faltavam, mas aprendi um pouco sobre essa ideia. O conceito de cidade que surgiu no Renascimento era justamente a pré-concepção de um lugar para se viver. Arquitetos e estudiosos das humanidades, mas também dos números, se debruçaram a tentar entender quais eram as melhores formas e estruturas para que uma cidade existisse e pudesse abrigar todas as camadas sociais, a vida plural e o movimento de vai e vem. Muitas vezes essas ideias eram mais uma idealização do que uma prática propriamente dita, mas é desde aí que se começa o conceito de urbanismo para se pensar num espaço urbano com certas organizações, como suas ruas que se diferenciam de calçadas, o saneamento básico e o lugares centrais para concentração de pessoas.

Dando um pulo histórico, chegamos ao século XX, onde o filósofo tcheco Vilém Flusser — que morou 32 anos em São Paulo — , irá afirmar que a cidade não é uma cidade, e está mais para um conglomerado urbano ou um assentamento, devido sua falta de “civilidade”.

Cá entre nós, civilização é um conceito aqui já dado como evolucionista e bastante precário. Mas o que quero me ater é justamente que a cidade se torna um amontoado de reformas e displicência do Estado com seus processos. O boom urbano surge, a cidade só cresce, os migrantes chegam, as coisas vão mudando e as reformas de urbanidade são só estanca-buracos ou coisas paliativas para que tudo vá se encaixando. No final, nada se encaixa. Metrô tem poucas linhas e quilometragens, as principais avenidas e marginais são caóticas, e ainda há famílias que não tem onde viver.

Até que no dia 1 de Maio de 2018, um prédio envidraçado no Largo do Paissandu ocupado por cerca de 146 famílias pega fogo e desaba abaixo de modo assustador.

As ocupações não são novidade nesta cidade. Nunca foram. A população que não pode pagar um aluguel ou assumir uma burocracia, as pessoas mais pobres, os migrantes e imigrantes, _s transsexuais vivem nestas ocupações como forma de se ter um teto sob a cabeça para se proteger. O Estado pouco ou nada faz quanto à isso: se não é completamente indiferente à situação, assume a responsabilidade de fazer a intervenção de desocupação de modo grosseiro e violento. Fala-se sobre cadastro, aluguel-social, moradias, albergues e mais um monte de iniciativas que até então não se existia pró-atividade de divulgar e nem propaganda do governo. A verdade é que por trás das ocupações existe a especulação imobiliária, e se não há interesse, o assunto é relegado ATÉ QUE vá abaixo.

Por qualquer fonte que você busque, haverão informações de que o prédio: 1. É um antigo prédio da Polícia Federal e por consequência pertence à União 2. Tentaram leiloar e fracassou 3. Ofereceram ao município e a Universidade Federal de São Paulo e foi rejeitado por razões de já ser considerado uma área de risco, vulnerável a um desastre do tipo 4. Já havia laudos e processos que alertavam esses riscos feitos por urbanistas e sociedade civil. 5. Demolir um prédio não é tão simples assim e exigem custos que o Estado nem sempre quer arcar.

Um prédio inútil. Ocupado por pessoas também consideradas da mesma forma pelo Estado.

montagem retirada do portal UOL

Fica difícil fazer a equação sem pensar em uma intenção criminosa. Fica difícil também assimilar o conceito de cidade. Uma cidade que abriga, acolhe e tem dinâmica de funcionamento. Sabe-se que muitas cidades no Brasil são precárias, mais precárias ainda, tem fome, pessoas na rua e outras crises urbanas. Mas especialmente em SP é onde me sinto com essa sensação de que a cidade o tempo todo te expulsa. Pensando em cidade como organismo, São Paulo é aquele corpo que trabalha muito e já tem vários órgãos aniquilados pelo excesso. E a dor parece que não cessa justamente porque parte da opinião pública, mas principalmente daqueles que governam são extremamente vazias e displicentes. Como se o erro fosse de quem mora, de quem ocupa. Como se houvesse uma intenção malévola nas pessoas que ocupam somente para afrontar o Estado. Jamais se entende que pessoas que ocupam querem apenas…morar?

Devaneando ainda sobre minhas aulas na faculdade, lembro quando o professor usou uma cena do cotidiano para ilustrar o conceito de Banalidade do Mal que a filósofa Hannah Arendt usa na sua obra: o metrô lotado e absurdo de se respirar. A voz eletrônica que anuncia as estações, começa a falar em inglês por conta dos novos estrangeiros que iriam à cidade por conta da Copa do Mundo de 2014. Todos no vagão dão risada. A viagem segue.

Banalizamos o absurdo porque ele nos é frequente. Não é todo dia que um prédio cai, mas é todo dia que tem gente na rua, no frio, na necessidade e sabe-se lá as estatísticas dos índices de expectativa de vida das pessoas que vivem nessas condições. Pessoas essas consideradas “drogadas” ou “prostitutas” como bem descreveu algumas autoridades em entrevistas e, por isso, aparentemente sem dignidade de atenção.

Qualquer um que já ousou fazer um trâmite burocrático de aluguel sabe o perrengue que se passa. Eu mesma, autônoma, com assinatura de apenas dois meses na CLT apesar de trabalhar desde os 14 anos, tive dificuldades extremas para conseguir alugar apartamento. Imagine quem tem condições menos privilegiadas ou nem um pouco privilegiadas.

São Paulo é menos cidade do que qualquer outra cidade que se propôs à isso, porque ela é rude e grosseira porém com aspecto de cordialidade. Tem cultura, cheiro de pizza e conversa de futebol latente em lugares onde se espalham a boa vontade e a gentileza. Mas por trás dos poucos cordiais, há quem pena muito. Fica difícil respirar e digo isso literalmente durante a estiagem que faz esse ar ser seco, grosso e agora endossado por fuligem. Fuligem de fogo e prédio que desaba, mas fuligem também como vestígio que anuncia que já deu de olhos fechados e desvios pela rua quando o caos aparece.

São Paulo não é uma cidade. Ocupação não é uma invasão. Morar não deveria ser privilégio.

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Bárbara Ariola
São Paulo não é uma cidade

sapatão historiadora da arte, antropóloga e astróloga. saturada por palavras a serem ditas, mitos a serem escutados, perspectivas a serem compreendidas.