Minuciosa Oração: Capítulo IV — Reino
Nessa pequena série, vamos estudar os aspectos da “Oração do Pai Nosso”, que Jesus ensina aos discípulos como modelo, para que sirva como aprendizado sobre nossa forma de orar.
A série é dividida em dez capítulos, falando de cada trecho da oração e explorando a oração de forma cuidadosa.
Neste quarto capítulo, trataremos do Reino de Deus do qual somos súditos. Que Reino é esse, e porque Jesus na oração pede que ele venha até nós?
No mundo ocidental a realidade de Reis, Monarquias e coisas afins pode soar distante, aproximado apenas pelas ilustrações de histórias épicas ou esparsas notícias a respeito da Família Real Britânica.
Vivemos e compreendemos sob um olhar limitado humano o que é o Reino de Deus, por vezes ensinado de forma mundana.
Ao longo da Bíblia nos deparamos com diversas referências a Deus enquanto Majestade, Soberano. Ao mesmo tempo que o vemos como Pai, o vemos também como Rei. Paulo na primeira carta a Timóteo assim fala:
Ao Rei eterno, ao Deus único, imortal e invisível, sejam honra e glória para todo o sempre. Amém.
1 Timóteo 1:17 (NVI)A qual a seu tempo mostrará o bem-aventurado, e único poderoso Senhor, Rei dos reis e Senhor dos senhores;
1 Timóteo 6:15 (NVI)
Diferentemente dos reis deste mundo, o Reino de Deus é atemporal, portanto é importante compreendê-lo numa dinâmica ainda maior a esse respeito, como se encaixa ao longo do tempo dentro de sua Eternidade.
Davi, no Salmo 103:19, anunciava que “ O Senhor estabeleceu o seu trono nos céus, e como rei domina sobre tudo o que existe.” (NVI).
O Reino de Deus no passado: a esperança para os judeus e para nós
A chegada do Reino de Deus anunciada convocava para o arrependimento. Este reino, prometido no velho testamento, era aguardado pelos Judeus e mitificado como a esperança de vitória sobre a dominação estrangeira.
A oração hebraica conhecida pelos discípulos — Kadish — , especialmente por Mateus, cujo evangelho mais se direciona ao entendimento judaico, já clamava pela vinda do Reino: וְיַמְלִיךְ מַלְכוּתֵהּ (veyamlikh malkhuteh), traduzido para “que Seu Reino seja estabelecido”.
Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galiléia, proclamando as boas novas de Deus. “O tempo é chegado”, dizia ele. “O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas! “
Marcos 1:14,15 (NVI)
No momento em que anuncia que a resposta às petições estava próxima, Cristo se posiciona como agente principal deste reino, ainda que não houvesse a compreensão a respeito do que viria a ser o Reino de Deus.
Para os judeus, a expectativa era da instalação física deste reino, enquanto o clamor pelo Reino de Deus alcança a necessidade da consolidação interna deste reino em nosso meio.
Os antigos já compreendiam Deus como Rei, na sua soberania. Em Crônicas, assim se retrata a visão de Davi:
Davi louvou o Senhor na presença de toda a assembléia, dizendo: “Bendito sejas, ó Senhor, Deus de Israel, nosso pai, de eternidade a eternidade. Teus, ó Senhor, são a grandeza, o poder, a glória, a majestade e o esplendor, pois tudo o que há nos céus e na terra é teu. Teu, ó Senhor, é o reino; tu estás acima de tudo.
1 Crônicas 29:10,11 (NVI)
Pode-se analisar a visão de Reino apontada por Davi como o reino de Israel. Contudo, dentro de uma visão sistemática da Bíblia, e sendo a Israel do Senhor a Igreja, conclui-se que já no passado havia a compreensão de um Reino de Deus sobre os seus.
O Reino de Deus no presente: a vivência do reino contra o mundo
Ainda que Jesus ensine-nos a orar pedindo pela vinda do Reino de Deus, ele mesmo apresenta aos fariseus que o Reino de Deus já havia chegado por meio dele:
Mas se é pelo dedo de Deus que eu expulso demônios, então chegou a vocês o Reino de Deus.
Lucas 11:20 (NVI)
O dedo de Deus, mesma figura que foi usada para ilustrar a escritura das tábuas da Lei, é em sentido estrito o próprio Espírito Santo. Ora, se por meio deste Espírito que foi deixado por Cristo sobre a igreja que demônios são expulsos, é então o Reino de Deus presente.
Ainda em Lucas, Jesus nos ensina que o Reino de Deus, instalado, não seria local, senão interno.
Certa vez, tendo sido interrogado pelos fariseus sobre quando viria o Reino de Deus, Jesus respondeu: “O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá: ‘Aqui está ele’, ou ‘Lá está’; porque o Reino de Deus está entre vocês”.
Lucas 17:20,21(NVI)
Quando Jesus dissocia seu Reino deste mundo (Jo 18:36) antiteticamente aponta a existência de outro reino. Logo, longe de maniqueísmo, há dinâmica entre reinos conflitantes, cujo mais fraco tem atuação neste mundo em contraponto — e consequentemente rejeição e ódio — às coisas do Reino de Deus.
No presente, vemos o Reino de Deus em processo de estabelecimento, de tal sorte que sua conclusão e magnitude exposta se dará no Grandioso Dia.
Contudo, quando Jesus nos orienta a buscar primeiro o Reino de Deus e a sua Justiça fica da mesma sorte clara a necessidade de vivenciarmos, enquanto peregrinos, das práticas e da continuidade desse reino num mundo no qual não mais fazemos parte.
E isso só é possível quando rejeitamos aquilo que este século oferece que essencialmente se contrapõe a Deus e seu Reino. Não há dupla-cidadania, não se pode vivenciar as ofertas ocas do mundo e pertencer de fato ao Reino de Deus.
O Reino de Deus é a vitória de Cristo na vida daqueles alcançados pois prescinde um novo nascimento. É a morte para o mundo e vida para o Reino de Deus.
R. C. Sproul Jr., em O que é a Teologia da Glória¹, demonstra cabalmente a dissociação entre os espectros diversos da falta de compreensão da existência presente do Reino de Deus.
Um retrato desequilibrado do lado da glória é encontrado no evangelho da prosperidade. Essa heresia ensina que é a vontade de Deus que todos nós desfrutemos de grande saúde e riqueza, que como filhos do Rei todos devemos viver como príncipes. Um retrato desequilibrado do lado da cruz é encontrado na heresia ascética — não coma, não beba, não toque. Aqui as bênçãos de Deus são malvistas, vistas como sinal de mundanismo e não como dons das mãos de Deus. Aqui a pobreza é vista como uma virtude em si mesma. O pior de tudo é que essa perspectiva pode se degenerar numa negação do reinado de Cristo sobre todas as coisas. (…) Jesus reina. Mas quanto a nós, seus súditos, não são muitos os sábios, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres. Portanto, aquele que se gloria glorie-se no Senhor. Quando mais manifestamos a Cristo e ele crucificado, mais manifestamos o seu reinado soberano.
Ao mesmo tempo em que há a presente necessidade de uma vivência do Reino, ele também se apresenta como a expectativa do Último Dia, em que a vinda do Reino e sua vitória e domínio são objeto da oração.
John Stott, em Contracultura Cristã², assim fala:
O reino de Deus é o seu governo real. Repetimos: como ele já é santo, também é Rei, reinando em soberania absoluta sobre a natureza e sobre a História. Mas quando Jesus veio, anunciou um aspecto novo e especial do governo real de Deus, com todas as bênçãos da salvação e as exigências de submissão que o governo divino implica. Orar que o seu reino “venha” é orar que ele cresça à medida que as pessoas se submetam a Jesus através do testemunho da Igreja, e que logo ele seja consumado com a volta de Jesus em glória para assumir o seu poder e o seu reino.
O Reino de Deus no futuro: porque orar para que venha
O comissionamento dado aos discípulos é de expansão do Reino e pregação das boas novas a todos sem limitação de local. Um processo cuja consolidação se dará na vinda de Cristo.
E este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações, e então virá o fim.
Mateus 24:14 (NVI)
Nesse momento teremos a nitidez da vitória do Senhor e do seu Reino. No entendimento de Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento (2016)³:
Esse caráter escatológico, contudo, não anula a dimensão e a realidade presente do Reino de Deus, nem torna necessário maximizar eventuais divergências exegéticas nesse item. Miller, por exemplo, diz que toda a história de Israel é a história do empenho de Deus em efetivar seu reino sobre a terra. De fato, as três primeiras petições do Pai Nosso são basicamente escatológicas e, de forma especial, “venha o teu reino” lembra a oração litúrgica aramaica que sobreviveu nas congregações paulinas de fala grega: “Maranata” (“vem, Senhor Jesus” — 1 Co 16.22; Ap 22.17, 20). Porém, é preciso salientar que o Reino dos Céus já está presente no ministério do Senhor Jesus (MT 4.17; 12.28), em sofrimento (Mt 26.42), bem como na sua morte e ressurreição, episódios em que Deus agiu em favor do seu povo para salvá-lo dos seus pecados. Assim, o Reino dos Céus vem continuamente por meio das boas novas de Jesus, em palavras faladas do evangelho. São esses os meios pelos quais o governo gracioso de Deus é conferido àqueles que são crentes em Cristo e aqueles que ainda são incrédulos. Até o Último Dia, os discípulos de Jesus são chamados a orar por todos os santos na terra e por todos os que ainda necessitam ser convertidos à fé em Cristo.Por isso, orar “venha o teu reino” é pedir para que esse reino salvador de Jesus Cristo seja expandido e alcance mais pessoas no tempo e no espaço.
O papel da Igreja, portanto, é vivenciar a expectativa da vinda do Reino consolidado, quando haverá plenitude de paz e justiça. Para John Piper há papeis e ações a serem realizadas pelos cristãos.
Em artigo escrito em 1984, Piper ⁴ entende que, até este momento:
(…) a igreja local deve ser uma base missionária. Até que o Reino venha, a adoração deve levantar as chamas de amor pela glória de um Deus global. Até que o Reino venha, a educação evangélica deve treinar as tropas para batalhas estratégicas e táticas com a arma da verdade. Até que o Reino venha, aconselhamento e encorajamento devem ser os hospitais de campo salvando os feridos, aliviando a fadiga da batalha, transformando os traumas da guerra espiritual em coragem de veterano. Até que o Reino venha, a comunhão deve ter o aroma da camaradagem sob o cerco. Até que o Reino venha, o dinheiro deve ser a moeda de combate, não de comodidade. Até que o Reino venha, o lazer deve ser recreação pela causa de Cristo. Até que o Reino venha, o casamento deve ser uma aliança de guerra (duplo sentido intencional!). Até que o Reino venha, a família deve ser uma ilha de alegria centrada em Deus equipando jovens inconformados a infiltrar territórios ocupados. Até que o Reino venha, a vocação deve ser uma base militar remota em serviço, uma investida solitária, e uma linha básica de suporte para o esforço de guerra.
Conclusão
É essa a importância da compreensão do que é o Reino de Deus e porque Cristo nos ensina não somente a buscá-lo em primeiro lugar, mas a orar para sua vinda.
Em uma análise atemporal, em todo o momento da história há a existência espiritual ou mesmo o clamor pela vinda de um Reino vencedor cujo Rei é Soberano sobre céus e terra, ao qual somos filhos e súditos.
É portanto necessário compreender o Reino de Deus sob um olhar que transcende a ótica humana limitada, como falamos no começo deste estudo. Ter o pleno entendimento que clamar pelo Reino é além de pedir que ele seja firmado em nós por meio de uma aproximação de relacionamento, é também orar para que Ele Venha e traga o Reino junto a si.
Mark Driscoll assim resume em Doctrine ⁵:
Resumindo, o reino de Deus é o resultado da missão de Deus para resgatar e renovar sua criação arruinada pelo pecado. O reino de Deus é sobre Jesus o nosso rei estabelecendo seu governo e reinado sobre toda a criação, derrotando os poderes humanos e angélicos do mal, trazendo ordem a tudo, decretando a justiça e sendo adorado como Senhor. Tragicamente, há muitas ideias errôneas sobre o reino que deturpam as glórias do reino eterno de Deus. O reino não é como as bobagens cartunistas que mostram o céu como uma nuvem branca sobre a qual nos sentaremos vestindo fraldas e tocando harpas, com asas pequenas demais para nos levar a algum lugar divertido. O reino não é o sonho ingênuo do liberalismo, no qual, com o aumento da educação e o passar do tempo, o pecado e seus efeitos serão tão erradicados da terra que a utopia alvorecerá. O reino não é o sonho enganador da espiritualidade sem Cristo, onde todos aprendem a nutrir a centelha da divindade dentro de si e a manter o seu verdadeiro “eu bom” em harmonia. O reino não é o sonho político de que se nós simplesmente colocarmos os líderes da direita no poder e derrotar todos os bandidos, a boa vontade governará a terra. O reino é tanto uma viagem como um destino, tanto uma operação de resgate neste mundo quebrado como um resultado perfeito na nova terra por vir; ambos já iniciados e ainda não finalizados.
Que venha o Reino.
Non nobis, Domine, sed nomini tuo ad gloriam.
Em Cristo,
Fellipe Fraga.
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Referências:
¹ SPROUL Jr., R.C. O que é a teologia da glória. Monergismo. Traduzido por Felipe Sabino de Araújo Neto — junho/2012.
² STOTT, John. Contracultura cristã — A mensagem do Sermão do Monte. ABU Editora. São Paulo, 1981
³ GRAFF, Anselmo Ernesto e SARMENTO, Dirléia Fanfa. “A oração do Pai Nosso: fonte de consolo ou mera recitação?”. Fides Reformata XXI, nº 1 (2016): p. 53–69.
⁴ PIPER, John. “Until the Kingdom Comes”. Desiring God Ministries. 1984. Disponível em: https://www.desiringgod.org/articles/until-the-kingdom-comes
⁵ DRISCOLL, Mark. “Kingdom: God Reigns”, in Doctrine. Traduzido por Felipe Sabino de Araújo Neto / março de 2011.