Minuciosa Oração: Capítulo IV — Reino

Fellipe Fraga
Saber Teológico
Published in
10 min readMar 26, 2019

Nessa pequena série, vamos estudar os aspectos da “Oração do Pai Nosso”, que Jesus ensina aos discípulos como modelo, para que sirva como aprendizado sobre nossa forma de orar.

A série é dividida em dez capítulos, falando de cada trecho da oração e explorando a oração de forma cuidadosa.

Gruta do Pai Nosso — Jerusalém — Texto em Suáli

Neste quarto capítulo, trataremos do Reino de Deus do qual somos súditos. Que Reino é esse, e porque Jesus na oração pede que ele venha até nós?

No mundo ocidental a realidade de Reis, Monarquias e coisas afins pode soar distante, aproximado apenas pelas ilustrações de histórias épicas ou esparsas notícias a respeito da Família Real Britânica.

Vivemos e compreendemos sob um olhar limitado humano o que é o Reino de Deus, por vezes ensinado de forma mundana.

Ao longo da Bíblia nos deparamos com diversas referências a Deus enquanto Majestade, Soberano. Ao mesmo tempo que o vemos como Pai, o vemos também como Rei. Paulo na primeira carta a Timóteo assim fala:

Ao Rei eterno, ao Deus único, imortal e invisível, sejam honra e glória para todo o sempre. Amém.
1 Timóteo 1:17 (NVI)

A qual a seu tempo mostrará o bem-aventurado, e único poderoso Senhor, Rei dos reis e Senhor dos senhores;
1 Timóteo 6:15 (NVI)

Diferentemente dos reis deste mundo, o Reino de Deus é atemporal, portanto é importante compreendê-lo numa dinâmica ainda maior a esse respeito, como se encaixa ao longo do tempo dentro de sua Eternidade.

Davi, no Salmo 103:19, anunciava que “ O Senhor estabeleceu o seu trono nos céus, e como rei domina sobre tudo o que existe.” (NVI).

O Reino de Deus no passado: a esperança para os judeus e para nós

A chegada do Reino de Deus anunciada convocava para o arrependimento. Este reino, prometido no velho testamento, era aguardado pelos Judeus e mitificado como a esperança de vitória sobre a dominação estrangeira.

A oração hebraica conhecida pelos discípulos — Kadish — , especialmente por Mateus, cujo evangelho mais se direciona ao entendimento judaico, já clamava pela vinda do Reino: וְיַמְלִיךְ מַלְכוּתֵהּ (veyamlikh malkhuteh), traduzido para “que Seu Reino seja estabelecido”.

Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galiléia, proclamando as boas novas de Deus. “O tempo é chegado”, dizia ele. “O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas! “

Marcos 1:14,15 (NVI)

No momento em que anuncia que a resposta às petições estava próxima, Cristo se posiciona como agente principal deste reino, ainda que não houvesse a compreensão a respeito do que viria a ser o Reino de Deus.

Para os judeus, a expectativa era da instalação física deste reino, enquanto o clamor pelo Reino de Deus alcança a necessidade da consolidação interna deste reino em nosso meio.

Os antigos já compreendiam Deus como Rei, na sua soberania. Em Crônicas, assim se retrata a visão de Davi:

Davi louvou o Senhor na presença de toda a assembléia, dizendo: “Bendito sejas, ó Senhor, Deus de Israel, nosso pai, de eternidade a eternidade. Teus, ó Senhor, são a grandeza, o poder, a glória, a majestade e o esplendor, pois tudo o que há nos céus e na terra é teu. Teu, ó Senhor, é o reino; tu estás acima de tudo.

1 Crônicas 29:10,11 (NVI)

Pode-se analisar a visão de Reino apontada por Davi como o reino de Israel. Contudo, dentro de uma visão sistemática da Bíblia, e sendo a Israel do Senhor a Igreja, conclui-se que já no passado havia a compreensão de um Reino de Deus sobre os seus.

O Reino de Deus no presente: a vivência do reino contra o mundo

Ainda que Jesus ensine-nos a orar pedindo pela vinda do Reino de Deus, ele mesmo apresenta aos fariseus que o Reino de Deus já havia chegado por meio dele:

Mas se é pelo dedo de Deus que eu expulso demônios, então chegou a vocês o Reino de Deus.
Lucas 11:20 (NVI)

O dedo de Deus, mesma figura que foi usada para ilustrar a escritura das tábuas da Lei, é em sentido estrito o próprio Espírito Santo. Ora, se por meio deste Espírito que foi deixado por Cristo sobre a igreja que demônios são expulsos, é então o Reino de Deus presente.

Ainda em Lucas, Jesus nos ensina que o Reino de Deus, instalado, não seria local, senão interno.

Certa vez, tendo sido interrogado pelos fariseus sobre quando viria o Reino de Deus, Jesus respondeu: “O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá: ‘Aqui está ele’, ou ‘Lá está’; porque o Reino de Deus está entre vocês”.

Lucas 17:20,21(NVI)

Quando Jesus dissocia seu Reino deste mundo (Jo 18:36) antiteticamente aponta a existência de outro reino. Logo, longe de maniqueísmo, há dinâmica entre reinos conflitantes, cujo mais fraco tem atuação neste mundo em contraponto — e consequentemente rejeição e ódio — às coisas do Reino de Deus.

No presente, vemos o Reino de Deus em processo de estabelecimento, de tal sorte que sua conclusão e magnitude exposta se dará no Grandioso Dia.

Contudo, quando Jesus nos orienta a buscar primeiro o Reino de Deus e a sua Justiça fica da mesma sorte clara a necessidade de vivenciarmos, enquanto peregrinos, das práticas e da continuidade desse reino num mundo no qual não mais fazemos parte.

E isso só é possível quando rejeitamos aquilo que este século oferece que essencialmente se contrapõe a Deus e seu Reino. Não há dupla-cidadania, não se pode vivenciar as ofertas ocas do mundo e pertencer de fato ao Reino de Deus.

O Reino de Deus é a vitória de Cristo na vida daqueles alcançados pois prescinde um novo nascimento. É a morte para o mundo e vida para o Reino de Deus.

R. C. Sproul Jr., em O que é a Teologia da Glória¹, demonstra cabalmente a dissociação entre os espectros diversos da falta de compreensão da existência presente do Reino de Deus.

Um retrato desequilibrado do lado da glória é encontrado no evangelho da prosperidade. Essa heresia ensina que é a vontade de Deus que todos nós desfrutemos de grande saúde e riqueza, que como filhos do Rei todos devemos viver como príncipes. Um retrato desequilibrado do lado da cruz é encontrado na heresia ascética — não coma, não beba, não toque. Aqui as bênçãos de Deus são malvistas, vistas como sinal de mundanismo e não como dons das mãos de Deus. Aqui a pobreza é vista como uma virtude em si mesma. O pior de tudo é que essa perspectiva pode se degenerar numa negação do reinado de Cristo sobre todas as coisas. (…) Jesus reina. Mas quanto a nós, seus súditos, não são muitos os sábios, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres. Portanto, aquele que se gloria glorie-se no Senhor. Quando mais manifestamos a Cristo e ele crucificado, mais manifestamos o seu reinado soberano.

Ao mesmo tempo em que há a presente necessidade de uma vivência do Reino, ele também se apresenta como a expectativa do Último Dia, em que a vinda do Reino e sua vitória e domínio são objeto da oração.

John Stott, em Contracultura Cristã², assim fala:

O reino de Deus é o seu governo real. Repetimos: como ele já é santo, também é Rei, reinando em soberania absoluta sobre a natureza e sobre a História. Mas quando Jesus veio, anunciou um aspecto novo e especial do governo real de Deus, com todas as bênçãos da salvação e as exigências de submissão que o governo divino implica. Orar que o seu reino “venha” é orar que ele cresça à medida que as pessoas se submetam a Jesus através do testemunho da Igreja, e que logo ele seja consumado com a volta de Jesus em glória para assumir o seu poder e o seu reino.

O Reino de Deus no futuro: porque orar para que venha

O comissionamento dado aos discípulos é de expansão do Reino e pregação das boas novas a todos sem limitação de local. Um processo cuja consolidação se dará na vinda de Cristo.

E este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações, e então virá o fim.

Mateus 24:14 (NVI)

Nesse momento teremos a nitidez da vitória do Senhor e do seu Reino. No entendimento de Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento (2016)³:

Esse caráter escatológico, contudo, não anula a dimensão e a realidade presente do Reino de Deus, nem torna necessário maximizar eventuais divergências exegéticas nesse item. Miller, por exemplo, diz que toda a história de Israel é a história do empenho de Deus em efetivar seu reino sobre a terra. De fato, as três primeiras petições do Pai Nosso são basicamente escatológicas e, de forma especial, “venha o teu reino” lembra a oração litúrgica aramaica que sobreviveu nas congregações paulinas de fala grega: “Maranata” (“vem, Senhor Jesus” — 1 Co 16.22; Ap 22.17, 20). Porém, é preciso salientar que o Reino dos Céus já está presente no ministério do Senhor Jesus (MT 4.17; 12.28), em sofrimento (Mt 26.42), bem como na sua morte e ressurreição, episódios em que Deus agiu em favor do seu povo para salvá-lo dos seus pecados. Assim, o Reino dos Céus vem continuamente por meio das boas novas de Jesus, em palavras faladas do evangelho. São esses os meios pelos quais o governo gracioso de Deus é conferido àqueles que são crentes em Cristo e aqueles que ainda são incrédulos. Até o Último Dia, os discípulos de Jesus são chamados a orar por todos os santos na terra e por todos os que ainda necessitam ser convertidos à fé em Cristo.Por isso, orar “venha o teu reino” é pedir para que esse reino salvador de Jesus Cristo seja expandido e alcance mais pessoas no tempo e no espaço.

O papel da Igreja, portanto, é vivenciar a expectativa da vinda do Reino consolidado, quando haverá plenitude de paz e justiça. Para John Piper há papeis e ações a serem realizadas pelos cristãos.

Em artigo escrito em 1984, Piper ⁴ entende que, até este momento:

(…) a igreja local deve ser uma base missionária. Até que o Reino venha, a adoração deve levantar as chamas de amor pela glória de um Deus global. Até que o Reino venha, a educação evangélica deve treinar as tropas para batalhas estratégicas e táticas com a arma da verdade. Até que o Reino venha, aconselhamento e encorajamento devem ser os hospitais de campo salvando os feridos, aliviando a fadiga da batalha, transformando os traumas da guerra espiritual em coragem de veterano. Até que o Reino venha, a comunhão deve ter o aroma da camaradagem sob o cerco. Até que o Reino venha, o dinheiro deve ser a moeda de combate, não de comodidade. Até que o Reino venha, o lazer deve ser recreação pela causa de Cristo. Até que o Reino venha, o casamento deve ser uma aliança de guerra (duplo sentido intencional!). Até que o Reino venha, a família deve ser uma ilha de alegria centrada em Deus equipando jovens inconformados a infiltrar territórios ocupados. Até que o Reino venha, a vocação deve ser uma base militar remota em serviço, uma investida solitária, e uma linha básica de suporte para o esforço de guerra.

Conclusão

É essa a importância da compreensão do que é o Reino de Deus e porque Cristo nos ensina não somente a buscá-lo em primeiro lugar, mas a orar para sua vinda.

Em uma análise atemporal, em todo o momento da história há a existência espiritual ou mesmo o clamor pela vinda de um Reino vencedor cujo Rei é Soberano sobre céus e terra, ao qual somos filhos e súditos.

É portanto necessário compreender o Reino de Deus sob um olhar que transcende a ótica humana limitada, como falamos no começo deste estudo. Ter o pleno entendimento que clamar pelo Reino é além de pedir que ele seja firmado em nós por meio de uma aproximação de relacionamento, é também orar para que Ele Venha e traga o Reino junto a si.

Mark Driscoll assim resume em Doctrine ⁵:

Resumindo, o reino de Deus é o resultado da missão de Deus para resgatar e renovar sua criação arruinada pelo pecado. O reino de Deus é sobre Jesus o nosso rei estabelecendo seu governo e reinado sobre toda a criação, derrotando os poderes humanos e angélicos do mal, trazendo ordem a tudo, decretando a justiça e sendo adorado como Senhor. Tragicamente, há muitas ideias errôneas sobre o reino que deturpam as glórias do reino eterno de Deus. O reino não é como as bobagens cartunistas que mostram o céu como uma nuvem branca sobre a qual nos sentaremos vestindo fraldas e tocando harpas, com asas pequenas demais para nos levar a algum lugar divertido. O reino não é o sonho ingênuo do liberalismo, no qual, com o aumento da educação e o passar do tempo, o pecado e seus efeitos serão tão erradicados da terra que a utopia alvorecerá. O reino não é o sonho enganador da espiritualidade sem Cristo, onde todos aprendem a nutrir a centelha da divindade dentro de si e a manter o seu verdadeiro “eu bom” em harmonia. O reino não é o sonho político de que se nós simplesmente colocarmos os líderes da direita no poder e derrotar todos os bandidos, a boa vontade governará a terra. O reino é tanto uma viagem como um destino, tanto uma operação de resgate neste mundo quebrado como um resultado perfeito na nova terra por vir; ambos já iniciados e ainda não finalizados.

Que venha o Reino.

Non nobis, Domine, sed nomini tuo ad gloriam.

Em Cristo,

Fellipe Fraga.

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Referências:

¹ SPROUL Jr., R.C. O que é a teologia da glória. Monergismo. Traduzido por Felipe Sabino de Araújo Neto — junho/2012.

² STOTT, John. Contracultura cristã — A mensagem do Sermão do Monte. ABU Editora. São Paulo, 1981

³ GRAFF, Anselmo Ernesto e SARMENTO, Dirléia Fanfa. “A oração do Pai Nosso: fonte de consolo ou mera recitação?”. Fides Reformata XXI, nº 1 (2016): p. 53–69.

PIPER, John. “Until the Kingdom Comes”. Desiring God Ministries. 1984. Disponível em: https://www.desiringgod.org/articles/until-the-kingdom-comes

DRISCOLL, Mark. “Kingdom: God Reigns”, in Doctrine. Traduzido por Felipe Sabino de Araújo Neto / março de 2011.

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