Minuciosa Oração: Capítulo II — Pai

Fellipe Fraga
Saber Teológico
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6 min readFeb 8, 2019

Nessa pequena série, vamos estudar os aspectos da “Oração do Pai Nosso”, que Jesus ensina aos discípulos como modelo, para que sirva como aprendizado sobre nossa forma de orar.

A série é dividida em dez capítulos, falando de cada trecho da oração e explorando a oração de forma cuidadosa.

Gruta do Pai Nosso — Jerusalém — Texto em Latim

Neste segundo capítulo, trataremos da paternidade de Deus e de nós enquanto filhos e a razão porque Jesus, nesse momento, fala “Pai Nosso”.

A paternidade de Deus

Das coisas mais belas a respeito, encontra a origem na expressão hebraica “abba” (אבא), e a forma como ela vai além de um diminutivo de “Pai”, podendo ser traduzida como “paizinho”. O Pastor Ednaldo Batista Rocha, em artigo veiculado no site da Convenção Batista Paranaense¹ assim relata:

Alguns intérpretes e tradutores vão sugerir que ABBA é a expressão de nossa infância: papai ou paizinho. Porém, ABBA é mais do que isso: é o balbuciar de uma criança que ainda não tem consciência; é a consciência de uma criança que ainda não sabe quem é; daquela criança que não sabe quem é aquele rosto diante dela; daquela criança que ainda não articula raciocínio;daquela criança que ainda não tem compreensão; daquela criança que ainda não tem crenças, mas sabe que tem diante de si alguém que se oferece como Pai. Tudo o que a criança possui é o senso de que aquele rosto que está diante dela é um rosto que lhe transmite amor, segurança, e que aqueles braços estendidos são um colo desejável de abrigo, numa relação quase que natural. Diante de tantos braços estendidos e diante de tantas faces, uma criança que não tem nenhuma compreensão racional de realidade do mundo, consegue identificar a face de seu pai, a face de seu ABBA.

Chamar a Deus de “Pai”, em referência às expressões usadas por Jesus nas orações transcende, assim, o aspecto simples da paternidade, e destaca a dependência e segurança de uma criança com seu genitor.

A paternidade divina para Grudem²:

“é um conceito teológico presente em todo o Novo Testamento. Deus é apresentado como Pai de Jesus (Ef 1.3); como Pai da criação, mostrando um sentido de paternidade cósmica, ou seja, o poderoso criador e sustentador de tudo o que existe (Ef 3.14); e especificamente como Pai daqueles a quem Ele adota como filhos (Ef 1 e 2). A paternidade destaca o relacionamento, amor e cuidado de Deus para com tudo o que está relacionado ao Ser Divino.” (GRUDEM, p.145–146)

Em artigo sobre o tema, Josemar Valdir Modes³ (p. 4) aponta que “Jesus em suas orações empregou este termo, expressando assim o relacionamento que tinha com o Pai. A Igreja Primitiva também adotou este termo ao se referir a Deus em suas orações”

Manifestações da Paternidade Divina

Deus no Antigo Testamento não é tratado enquanto Pai. É visto como Senhor, Rei, Soberano, Altíssimo entre tantas outras (corretas) denominações ao Eterno.

Nas mais de mil vezes que a palavra ab aparece no texto veterotestamentário, ela vem de forma literal, referindo-se ao genitor ou mesmo aos ascendentes; outras referindo-se a quem ocupa um cargo com sabedoria similar ao de pai, e até mesmo um fundador de tribo (MODES, p. 3).

Em Cristo, encontramos em Deus uma espécie de aproximação. Até porque, por meio de Jesus, nos tornamos filhos adotivos de Deus, como o apóstolo Paulo fala na sua carta à igreja de Éfeso:

Em amor nos predestinou para sermos adotados como filhos por meio de Jesus Cristo, conforme o bom propósito da sua vontade (Efésios 1:5 — NVI)

Deus enquanto Pai é atributo da primeira pessoa da trindade, e ainda que o Filho seja igual ao Pai enquanto Deus, expressa um modelo de obediência que, sendo seus imitadores, devemos tomar.

De forma ampla, é possível enxergar em Deus a paternidade em óticas diversas. Seja como criador ou como pai de Israel⁵, mas especialmente como o pai de Jesus Cristo e o pai daqueles que Nele creem.

A paternidade de Deus em relação a Jesus é em sentido amplo: criador da sua humanidade, genitor, líder, mestre. Cristo demonstra relacionar-se com Deus de formas diversas, e é possível perceber a intimidade sensível ainda que analisemos sob a ótica da trindade existente.

Jesus adquire do pai a divindade, o saber, e expressa um relacionamento distinto do que temos, como demonstra em Jo 20:17 - “o Meu Pai e vosso Pai”. Josemar Modes assim trata:

“Na Sua invocação paternal Jesus situa-se no seio de uma filiação especial. Com o vocativo Abba, a revelação de Deus adquire contornos de novidade que qualificam o Filho, na realidade, na Sua condição de Filho num sentido absolutamente singular. Parece inegável que esta filiação de Jesus se exprime como verificável em termos de conhecimento — com toda a riqueza que a acepção bíblica do termo comporta — que Ele próprio tem do Pai” (MODES, p. 7)

Um pai para chamar de nosso

Ao trazer o pronome “Nosso” para a oração, Jesus passa a dimensão e o alcance da paternidade de Deus. A oração é, como veremos nos capítulos que se seguirão, um ato que vai da consciência de soberania de Deus, passando por adoração, petição e glorificação. Fazer isso a um Pai — e sendo esse pai o próprio Deus — permite que tenhamos ainda mais intimidade e acesso, como deve ser até mesmo a paternidade humana.

“Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai que está no céu dará o Espírito Santo a quem o pedir!” (Lucas 11:13 — NVI).

Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento (2016) ⁴, apontam:

Nesse instante Jesus começa a ensinar seus discípulos de forma corporativa e íntima. Deus não é somente o “meu pai”, mas “nosso Pai”. De fato, a ênfase de Jesus é de que nossas orações não sejam atos solitários ou apenas expressões individuais de nosso relacionamento com Deus, mas solidárias e de toda a comunidade cristã. (…) Chamar a Deus de Pai não era uma prática tão comum nas religiões antigas. Jesus está ensinando a seus discípulos um novo entendimento sobre a natureza de Deus. (GRAFF e SARMENTO).

Ao tratarmos e reconhecermos Deus como um “pai nosso”, alcançamos comunhão com um número grande de cristãos que tomam a mesma postura. Quando Jesus usa o pronome, ele aponta não somente para aqueles que com ele estavam, mas já ciente de todos aqueles que viriam a ser filhos de Deus.

A intimidade que podemos alcançar com o Pai resulta em obediência, em aprofundamento de relacionamento, em satisfazer a vontade dEle.

Termos em Deus um Pai nos permite receber do Eterno benefícios que filhos têm de seus genitores, desde o amor, carinho, dádivas, regalos, até mesmo disciplina, correção, e negação.

Sobre a compreensão, Mendes (p. 11) esclarece:

Compreender a paternidade de Deus, além de mudar alguns conceitos enfatizados demasiadamente, faz com que o cristão também entenda o motivo de muitas vezes ser disciplinado por Deus. Ele, como Pai, ama aos seus filhos muito mais do que qualquer pai humano e por isso faz de tudo para dar o melhor aos seus filhos.

Desta forma, orar ao Pai Nosso de forma consciente da paternidade é reconhecer e desfrutar de tudo que a filiação ao Eterno nos permite.

Vejam como é grande o amor que o Pai nos concedeu: que fôssemos chamados filhos de Deus, o que de fato somos! Por isso o mundo não nos conhece, porque não o conheceu. (1 João 3:1 — NVI)

Non nobis, Domine, sed nomini tuo ad gloriam.

Em Cristo,

Fellipe Fraga.

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Referências:

¹ ROCHA, Ednaldo Batista. A Paternidade de Deus. Convenção Batista Paranaense. Disponível em: <http://batistasparana.org.br/a-paternidade-de-deus/>

² GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 145–146

³ MODES, Josemar Valdir. A Paternidade de Deus. Revista Davar Polissêmica. Belo Horizonte, 2017.

⁴ GRAFF, Anselmo Ernesto e SARMENTO, Dirléia Fanfa. “A oração do Pai Nosso: fonte de consolo ou mera recitação?”. Fides Reformata XXI, nº 1 (2016): p. 53–69.

⁵ MODES (op. cit.) aponta que “Deus é mencionado como o Pai dos espíritos (Hb 12.9); Pai das luzes (Tg 1.17); Pai dos anjos (Jó 38.7), Pai dos seres humanos (Ml 2.10), (…) Moisés, ao se referir à nação de Israel usa termos característicos da filiação correspondente ao povo: yālad e hīl, que “descrevem o processo de dar à luz um filho, desde a concepção… o nascimento” (FERREIRA; MYATT, 2008, p.238). (Dt 32.18). Os profetas em suas mensagens sempre destacaram o papel de Deus como o Pai da nação. (Is 63.16; 64.8). A aliança é um símbolo do relacionamento entre Deus e o povo, destacando também este relacionamento existente entre Pai e filho (Jr 31.3,9).”

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