Minuciosa Oração: Capítulo VII — Perdoai

Fellipe Fraga
Saber Teológico
Published in
6 min readMay 19, 2019

Nessa pequena série, vamos estudar os aspectos da “Oração do Pai Nosso”, que Jesus ensina aos discípulos como modelo, para que sirva como aprendizado sobre nossa forma de orar.

A série é dividida em dez capítulos, falando de cada trecho da oração e explorando a oração de forma cuidadosa.

Gruta do Pai Nosso — Jerusalém — Texto em chinês

No sétimo capítulo da série, trabalharemos o Perdão em diversos aspectos, e as razões de ser um dos elementos da oração do Pai Nosso, especialmente por ser algo que demanda do cristão uma ação direta.

O perdão é um dos fundamentos do Cristianismo. Desde o pecado original, nos afastamos de Deus mediante uma natureza pecaminosa. E dela demandamos constantemente do perdão de Deus dos nossos atos e transgressões. Sem Cristo há somente a certeza da condenação, e sua vinda ao mundo é a prova do amor supremo de Deus, sendo seu filho unigênito, o Verbo encarnado, padecendo em morte — e morte de cruz, de forma que nós possamos alcançar mediante a graça a redenção dos nossos pecados.

Logo, sem o perdão de Deus nosso destino é o inferno.

Ao mesmo tempo, somos seres dotados de sentimentos, passivos de sentirmos ofendidos, feridos, magoados quando algo não ocorre conforme cremos ser o correto.

Charles Haddon Spurgeon¹assim fala a respeito:

Não se ofendam. Muitas vezes um homem está ofendido com outro sem ter nenhuma razão de nenhum tipo. Alguém disse de outra pessoa quando passava junto na rua, “nem sequer me fez uma saudação. É demasiado altivo para me reconhecer porque sou um homem pobre”. Agora, ele não notou que esse amado irmão de quem se queixou não poderia ver algo além da sua mão, pois era míope. Outro foi censurado por não ouvir, mesmo sendo surdo, e outro, por não dar a mão quando seu braço estava paralisado. Não imagine ofensas ali onde não se teve a intenção de ofender. (SPURGEON, Sermão 1448)

E, sendo nós pecadores, com dificuldade de amar ao inimigo, tendemos a não perdoar, a guardar rancor e mágoa, planejar vingança, revidar a agressão em medida igual ou pior do que a que sofremos.

Assim, o tema não passou despercebido por Jesus ao nos ensinar a orar. John Stott² analisa a ordem dos pedidos e aponta que o perdão é tão vital para o indivíduo como é o alimento. Após clamar a Deus pelo sustento, a oração nos direciona ao pedido de perdão.

“Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.” — Mateus 6:12 (NVI)

A palavra dívidas não se trata do fator financeiro, mas alcança a dimensão do pecado. A interpretação do versículo ensinado na oração é dada pelo próprio Cristo na sequência.

Para Stott:

O pecado é comparado a uma “dívida”, porque merece o castigo. Mas quando Deus perdoa o pecado, ele cancela a penalidade e anula a acusação que há contra nós. (STOTT, p. 69)

“Pois se perdoarem as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também lhes perdoará. Mas se não perdoarem uns aos outros, o Pai celestial não lhes perdoará as ofensas”. — Mateus 6:14,15 (NVI)

Aliado ao clamor pelo perdão, há a condicional “se”, chamando o cristão a uma necessidade de conduta similar para com o próximo para que tenha chance de ser alcançado pelo perdão de Deus. Não existe, contudo, uma “relação direta” entre ambas as coisas: o fato de perdoarmos não enseja o perdão de Deus, mas sim a compreensão de que nosso pecado diante de Deus é infinitamente maior que qualquer ofensa que possamos ter recebido.

No entendimento de Stott:

Isto certamente não significa que o perdão que concedemos aos outros garante-nos o direito de sermos perdoados. Antes, Deus perdoa somente o arrependido, e uma das principais evidências do verdadeiro arrependimento é um espírito perdoador. Quando nossos olhos são abertos para vermos a enormidade de nossa ofensa cometida contra Deus, as injúrias dos outros contra nós parecem, comparativamente, muitíssimo insignificantes. Se, por outro lado, temos uma visão exagerada das ofensas dos outros, é uma prova de que diminuímos muito a nossa própria. (STOTT, p. 69)

Logo, muito mais que a própria condicional, existe a compreensão do pecado e das atitudes capazes de distanciar o homem de Deus, seguida do arrependimento necessário. Não é o perdão, assim, a única virtude exigida de nós para que tenhamos o perdão de Deus.

R.C. Sproul lembra em um de seus devocionais³ que na oração nós não informamos nada a Deus, pois ele é onisciente. Ainda acrescenta:

“Nosso perdão ao próximo mostra que compreendemos a graça do Senhor e sua misericórdia e que nós podemos ser generosos com nossa misericórdia como Ele é com a Sua. (…) Nós temos pecado com tão mais intensidade contra Deus do que qualquer um que nos tenha ofendido e ainda assim Deus nos concede o perdão. Como, então, nós podemos não conceder perdão para aqueles que nos ofendem?”

Não receber o perdão de Deus é o resultado de que não tenhamos compreendido de fato o que o nosso pecado significa, o que nossas transgressões causaram em Cristo na Cruz. Não reconhecer seu sacrifício, e agirmos com tal soberba ao não perdoar quem nos ofende, demonstra que estamos ainda escravos do pecado.

O apóstolo Paulo, na carta à igreja de Éfeso assim fala:

Sejam bondosos e compassivos uns para com os outros, perdoando-se mutuamente, assim como Deus perdoou vocês em Cristo. — Efésios 4:32 (NVI)

A admoestação paulina vai ao encontro do que foi ensinado por Cristo, demonstrando o caminho inverso: ora, se Deus os perdoou, perdoe também! É um chamado ao perdão mútuo, à paz, ao entendimento de que a contenda e a mágoa não podem subsistir em um coração restaurado por Jesus.

“ E quando estiverem orando, se tiverem alguma coisa contra alguém, perdoem-no, para que também o Pai celestial lhes perdoe os seus pecados. Mas se vocês não perdoarem, também o seu Pai que está no céu não perdoará os seus pecados. “— Marcos 11:25–26 (NVI)

Jesus nos ensina ainda no evangelho de Mateus a respeito da compreensão. No capítulo 18 traz a parábola entre o rei, o servo e conservo. É a ilustração ideal para mostrar que a dívida que temos diante do Eterno é muito superior a qualquer dívida que possam ter conosco.

Assim sendo, devemos ter sempre em mente que nada pode ser capaz de nos ofender, e se algo chegar a esse ponto, devemos estar sempre prontos a perdoar, porque aquilo que fizemos a Deus é infinitamente superior a qualquer coisa que nos tenha acontecido.

John Piper ⁴ assim fala do assunto:

“O perdão não é uma obra pela qual ganhamos o perdão de Deus. Ele flui de um coração satisfeito com a misericórdia de Deus e alegra-se no cancelamento da nossa própria dívida de 10 milhões de dólares (Mateus 18:24). Para o homem é impossível, mas não para Deus. “Toda a árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo.” (Mateus 7:19). Mas a planta que perdura dá fruto porque é plantada por Deus (Mateus 15:13). Ninguém pode se orgulhar diante de Deus em seu próprio mérito (Lucas 17:10); e não é o seguir rigorosamente as regras, mas um espírito pobre e uma total confiança na misericórdia divina, que alcançam uma posição diante de Deus (Lucas 18:9–14; Mateus 5:3). (…) Somos uma nova criação (Gálatas 6:15) e a marca da nossa novidade de vida ainda não é a perfeição, mas uma inclinação persistente para perdoar, um rápido restauro da nossa incapacidade de o fazer e uma petição constante a Deus para ignorar o pecado que abandonamos.

O perdão é uma grande oportunidade de demonstrarmos testemunho, de falar do amor de Deus, de pregar o verdadeiro evangelho de Cristo. Demonstrar que, apesar do que tenha ocorrido, por amor ao próximo como a nós mesmos, e na fé de que Deus também nos perdoa dos pecados, sejamos sempre capazes de perdoar as ofensas.

Aprender com Cristo, diariamente e constantemente, lembrando que Ele, na Cruz, rogou perdão de Deus a seus algozes.

Porque nós não podemos fazer o mesmo?

Non nobis, Domine, sed nomini tuo ad gloriam.

Em Cristo,

Fellipe Fraga.

___________
Referências:

¹ SPURGEON, Charles Haddon. “O Perdão Facilitado — Sermão 1448”. Londres. 1878. Disponível em: http://projetocasteloforte.com.br/o-perdao-facilitado-spurgeon/

² STOTT, John. Contracultura cristã — A mensagem do Sermão do Monte. ABU Editora. São Paulo, 1981

³ SPROUL, R.C. — “Praying for God’s Forgiveness”. Disponível em: https://www.ligonier.org/learn/devotionals/praying-gods-forgiveness/

PIPER, John. “‘E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores.’ — Uma meditação em Mateus 6:12”. Desiring God Ministries. 1978. Disponível em: https://www.desiringgod.org/articles/forgive-us-our-debts-as-we-forgive-our-debtors?lang=pt

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