Minuciosa Oração: Capítulo VIII — Tentação

Fellipe Fraga
Saber Teológico
Published in
7 min readMay 26, 2019

Nessa pequena série, vamos estudar os aspectos da “Oração do Pai Nosso”, que Jesus ensina aos discípulos como modelo, para que sirva como aprendizado sobre nossa forma de orar.

A série é dividida em dez capítulos, falando de cada trecho da oração e explorando a oração de forma cuidadosa.

Gruta do Pai Nosso — Jerusalém — Texto na língua cherokee

Os últimos três capítulos do nosso estudo tratarão de um único versículo, que encerra a oração do Pai Nosso. O versículo, contudo, será subdividido em três partes, abordando cada detalhe que permita uma compreensão plena do propósito de Jesus ao ensinar dessa forma.

Após as petições diretas a respeito de Deus, e de pedir pelo sustento e pelo perdão, Cristo ensina a pedirmos a Deus para que Ele nos impeça de cair nas tentações.

“E não nos deixes cair em tentação…” Mateus 6:13 (NVI)

Tentação encontra sentido similar com provação. São momentos que a fé é testada, que o compromisso com o Senhor é colocado à prova, que o entendimento da Palavra de Deus é aplicado.

Vencendo o pecado na redenção de Cristo, há o anseio para que não venha o homem a retomar o pecado, deixando de ser escravo das transgressões. Contudo, John Stott¹ levanta dois questionamentos que valem ser trazidos:

“Primeiro, a Bíblia diz que Deus não nos tenta (na realidade, não pode nos tentar) com o mal. Portanto, que sentido tem orar que ele não faça o que já prometeu nunca fazer? Alguns respondem a esta pergunta interpretando “tentação” como “provação”, com a explicação de que, embora Deus jamais nos induza ao pecado, ele prova nossa fé e caráter. Isto é possível. Uma explicação melhor parece-me que é entender “não nos deixes cair” à luz de sua correlativa “mas livra-nos”, e o “mal” deveria ser traduzido por “o maligno” (como em 13:19). Em outras palavras, é o diabo que está sendo considerado, que tenta o povo de Deus a pecar, e do qual precisamos ser “livrados” (rusai).” (STOTT, p. 69)

Há um distanciamento, contudo, entre a tentação em si e a queda na mesma. Ou seja, é certo que a tentação é presente na vida, porém não é certo que a tentação triunfará.

O texto de Tiago nos mostra que a tentação não parte de Deus:

Quando alguém for tentado, jamais deverá dizer: “Estou sendo tentado por Deus”. Pois Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta. Cada um, porém, é tentado pela própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido. Então a cobiça, tendo engravidado, dá à luz o pecado; e o pecado, após ter-se consumado, gera a morte. — Tiago 1:13–15 (NVI)

Tiago nos apresenta a correlação da tentação com o mal, tema do nosso próximo estudo. Contudo esclarece que a tentação parte de nós mesmos por meio dos desejos da carne, sendo objeto de aproveitamento daquele que almeja a destruição de nossas almas.

A presença das tentações não é razão para questionarmos a Deus, mas sim a nós mesmos e nossa capacidade de enfrentarmos um desafio que é colocado pela concupiscência de uma carne que milita contra o espírito.

O texto de Tiago não traz um termo hipotético, mas sim temporal. Não questiona se seremos tentados, mas quando tentados, o que resulta nas tentações como algo da qual não se corre por antecipação, mas se vence.

O próprio Jesus foi tentado (Mateus 4:1–11, Marcos 1:12,13 e Lucas 4:1–13). E em todas as vezes utiliza a palavra para mostrar ao Adversário a superioridade das Escrituras e do seu Autor.

Tentações de Cristo. 1481–82. Por Botticelli, na Capela Sistina, no Vaticano.

Se até Cristo foi tentado, e o relato nos ensina o procedimento correto para superar as tentações, surge o segundo “problema” levantado por Stott:

O segundo problema refere-se ao fato de que a Bíblia diz serem a tentação e a provação duas coisas boas para nós: “Meus irmãos, tende por motivo de toda a alegria o passardes por várias provações” ou “tentações”. Se elas são benéficas, por que deveríamos orar para que não ficássemos expostos a elas? A resposta provável é que a oração é mais no sentido de podermos vencer a tentação do que de a evitarmos. Talvez poderíamos parafrasear todo o pedido assim: “Não permitas que sejamos induzidos à tentação que nos possa derrotar, mas livra-nos do maligno”. Assim, por trás dessas palavras que Jesus nos deu para orar, encontramos a implicação de que o diabo é forte demais para nós, que somos fracos demais para enfrentá-lo, mas que o nosso Pai celeste nos livrará se o invocarmos. (STOTT, p. 69–70)

Por nós mesmos, somos incapazes de resistir ao Diabo, sendo tão somente a Palavra de Deus poderosa para nos proteger da própria natureza pecaminosa mediante a graça.

“O meu povo está decidido a desviar-se de mim. Embora sejam conclamados a servir ao Altíssimo, de modo algum o exaltam.” — Oséias 11:7 (NVI)

“Eu ouvirei o que Deus, o Senhor, disse: Ele promete paz ao seu povo, aos seus fiéis! Não voltem eles à insensatez!” Salmos 85:8 (NVI)

Essa graça de Deus para o homem, mediante sua palavra, tem o condão de nos impedir de cairmos em tentação. É Nele que está o poder, não em nós. Judas, irmão do Senhor, fala a respeito de Deus como “ poderoso para impedi-los de cair e para apresentá-los diante da sua glória sem mácula e com grande alegria” — Judas 1:24 (NVI).

Por meio de sua grandiosidade, é Ele que limita até mesmo as tentações a serem enfrentadas, dentro do nosso suporte.

Não sobreveio a vocês tentação que não fosse comum aos homens. E Deus é fiel; ele não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar. Mas, quando forem tentados, ele lhes providenciará um escape, para que o possam suportar. — 1 Coríntios 10:13 (NVI)

Paulo deixa claro na Carta inaugural aos Coríntios que a responsabilidade está em nós, pois somos capazes de suportar qualquer tentação que nos sobrevier, em primeiro momento por ser originada de nós mesmos e não de Deus; segundo porque o Senhor cuida de nós de tal ponto que não há qualquer tentação além do que possamos resistir.

O biblista e pastor presbiteriano inglês Matthew Henry (1662–1714)² traz uma doce oração a esse respeito:

E, Senhor, uma vez que há em nós uma inclinação para desviar-nos de ti (Os 11.7), de tal modo que quando nossos pecados são perdoados, nós estamos prontos para cair na insensatez novamente (Sl 85.8), nós oramos para que tu não somente nos perdoes nossas dívidas, mas cuide de nós, para que nós não mais cometamos injustiça (Jó 34.32). Senhor, não nos deixes cair em tentação. Nós sabemos que ninguém ao ser tentado pode dizer que está sendo tentado por Deus, porque Deus mesmo a ninguém tenta (Tg 1.13); mas nós também sabemos que Deus pode fazer-nos abundar em toda graça (2Co 9.8), e nos guardar de tropeços, e nos apresentar imaculados (Jd 24). Nós, portanto, oramos para que tu nunca nos deixes andar na teimosia do nosso coração, seguindo os nossos próprios conselhos (Sl 81.12); pelo contrário, restrinja Satanás, aquele leão que ruge e anda em derredor procurando alguém para devorar (1Pe 5.8), e nos conceda que não ignoremos os desígnios dele (2Co 2.11). Ó, que Satanás não nos tenha para peneirar como trigo, e que nossa fé não desfaleça (Lc 22.31,32). Que aos mensageiros de Satanás não seja permitido nos esbofetear; mas, se eles o fizerem, que a tua graça nos baste, para que quando formos fracos, sejamos fortes (2Co 12.7,9–10), e sejamos mais do que vencedores por meio daquele que nos amou (Rm 8.37). E que o Deus da paz, em breve, esmague debaixo dos nossos pés a Satanás (Rm 16.20). E uma vez que a nossa luta não é contra o sangue e a carne, mas contra principados e potestades e contra os dominadores deste mundo tenebroso, que sejamos fortalecidos no Senhor e na força do seu poder (Ef 6.12,10). Senhor, conceda-nos que nós nunca entremos em tentação (Mt 26.41); mas que, tendo orado, possamos pôr guarda (Ne 4.9); e que a tua sábia e boa providência de tal forma ordene todas as nossas preocupações e todos os eventos que dizem respeito a nós, que não nos sobrevenha tentação que não seja humana, e que nós jamais sejamos tentados além das nossas forças para discernir, resistir e vencer através da graça de Deus (1Co 10.13). Senhor, não ponha tropeços diante de nós, para que caiamos e pereçamos (Jr 6.21). Que nada seja um escândalo a nós (Rm 14.13); pelo contrário, dá-nos aquela grande paz que têm os que amam a tua lei; pois para eles não há tropeços (Sl 119.165). E guia-nos, nós te rogamos, a toda a verdade (Jo 16.13); guia-nos na tua verdade e ensina-nos, pois tu és o Deus da nossa salvação. Faze-nos, SENHOR, conhecer os teus caminhos, ensina-nos as tuas veredas (Sl 25.4,5), as veredas da justiça; ó, guia-nos por aquelas veredas por amor do teu nome, para que sejamos levados para junto das águas de descanso (Sl 23.2,3).” (HENRY, p.13)

Cabe, assim, a nós, firmes na palavra, nos livrarmos de toda a tentação que nos sobrevier. Somos mediante o Eterno Deus capazes de vencê-las, não por nós mesmos, mas tão somente pela Sua Palavra que nos é dada, pela graça somente, por Cristo que por nós morreu para que nos livremos do pecado, pela Fé de que Nele será toda a glorificação de cada vitória sobre o pecado quando o Inimigo tentar nos ferir.

Non nobis, Domine, sed nomini tuo ad gloriam.

Em Cristo,

Fellipe Fraga.

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Referências:

¹ STOTT, John. Contracultura cristã — A mensagem do Sermão do Monte. ABU Editora. São Paulo, 1981

2 HENRY, Matthew. “Lead us Not into Temptation”, traduzido por André Aloísio Oliveira da Silva. Ministério Fiel, 2016. Disponível em: https://voltemosaoevangelho.com/blog/2016/09/orando-o-pai-nosso-e-nao-nos-deixes-cair-em-tentacao-mas-livra-nos-do-mal/

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