A morte de Jesus como um fato histórico e político

Regina Fernandes Sanches
Editora Saber Criativo
5 min readApr 2, 2021

Regina Fernandes

A morte de Jesus foi de caráter soteriológico-escatológico, relacionada aos anúncios dos profetas do Antigo Testamento, conforme relidos pela Igreja, pelos apóstolos sob as luzes do evento cristológico. Mas, ela também teve um caráter político, afinal, Jesus Cristo é Deus encarnado e sua obra foi realizada no “tempo-espaço” da história. O caráter escatológico não anula a importância das implicações políticas do ocorrido, e ele pode ser identificado nos seguintes fatos:

Jesus foi entregue aos principais sacerdotes (Mc 14.43) por Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, que tinha claro interesse nas vantagens financeiras que essa traição proporcionaria. Em dito popular: “ele vendeu sua alma”, por moedas.

Esses principais sacerdotes, enviaram soldados e uma multidão armada (com espadas e porretes conforme Mt 27.47) para prender Jesus, pois é o tipo de gente covarde, que arma as multidões, que se esconde atrás dos comandados, que opera nos bastidores do mal. Entregaram Jesus ao sumo sacerdote, usando para isso argumentos rasos, sem sentido, coisa de quem não gosta de pensar, coisa de quem não quer ouvir, coisa de quem se julga por pré-conceitos, coisa de quem manipula as falas de outros para se beneficiar, para fazer o mal que seu coração deseja (Mc 14.55).

O sumo sacerdote, cercado de servos, aquecido, assentado em seu trono sacerdotal e postando-se como o guardião da santa tradição, o santo entre os santos, arguiu Jesus sobre o que diziam sobre ele. Jesus fez silêncio, sabia que qualquer coisa que dissesse seria usada como justificativa para algo que já estava decidido: sua condenação.

O sacerdote fez então uma pergunta que Jesus não poderia deixar de responder: se ele era o Cristo. Respondeu obviamente que sim, mas como dizer que não? O sumo sacerdote parece ter entrado em êxtase, rasgou as vestes, tinha agora a prova para o que desejava fazer: condenar Jesus. Mas, mais do que isso, mostrar para todos como era zeloso, como era poderoso e como era mais justo do que o Justo.

Os outros sacerdotes entraram em delírio, queriam vê-lo morto, na turba, valentões cuspiram nele e lhe deram socos, religiosos zombaram dele, soldados o esbofetearam. Foi um dia terrível de dor e humilhação. Estavam liberados pelo grande sacerdote e pelos sacerdotes menores a soltar toda a sua violência, sua fúria, sua agressividade contra ele, afinal, naquela insanidade coletiva queriam vê-lo como herege, blasfemo.

Em seus critérios ele era um enganador, um bandido, pois se afirmava filho de Deus, ensinava que o Reino de Deus não seria tomado por armas (Mc 14.48), chamava todos para a paz e para a justiça, ouvia samaritanos e amava os pobres da Galileia. Impressionante como mentes malévolas são capazes de distorcer os fatos e transformar o bem em mal e vice-versa, nos domínios do império satânico das falsas notícias.

Essa multidão, fazendo-se gado conduzido, não quis pensar, enxergar, somente jogar sobre ele toda sua sede de sangue. Os soldados, banalizadores do mal, obedientes às ordens, poderiam torturar e matar sem serem culpados por isso.

Agora, com a anuência do grande sumo sacerdote, os sacerdotes menores levaram Jesus para Pilatos, o representante do governo romano. Aqueles, viam nele uma ameaça político-religiosa, pois esse era o único poder que os judeus detinham por estarem subjugados por Roma. Já este, Pilatos, via em Jesus uma ameaça política, que poderia, devido à confusão dos judeus, ameaçar a forçosa Pax romana. Ainda assim não tinha certeza, mesmo sem certeza não quis se comprometer, lavou as mãos… (Mt 27.24).

Quem tem o poder e não o usa para fazer o bem, melhor seria se não o tivesse, melhor que o desse a outro/a, pois não há água no mundo suficiente para retirar a culpa da inoperância daquele que segura o poder nas próprias mãos somente para alimentar sua ambição doentia por ele.

Crucificaram Jesus, o justo, o inocente, o Filho de Deus…

Jesus foi assassinado, foi vítima de uma política covarde, mentirosa, invejosa e perversa. Ele doou sua própria vida, mas isso não desfaz o fato que ele foi brutalmente assassinado e vítima de uma política religiosa e imperial má.

O sentido escatológico da morte de Jesus permanece, pois, por ela, somos salvos, a morte é vencida, Satanás é derrotado. Ela instaura, definitivamente, o Reino eterno de Deus na ordem de mundo, e coloca todos aqueles e aquelas que estão sob esse reinado na esfera da sua justiça manifesta concretamente na realidade histórica e na esperança de sua plena manifestação. Aguardamos a vida plena no reino do Justo.

Porém, essa morte ocorreu no espaço-tempo da esfera humana. Ela também é histórica e se tornou cena de memória de horror dada a violência que a envolveu e os interesses humanos que estavam em jogo. Uma violência que não é justificada pela defesa da fé, pois não há verdadeira fé em Deus que se justifique pela violência, como ensinou o próprio Jesus no Sermão do Monte e no impedimento que Pedro usasse a espada para defendê-lo. O Reino de Cristo não é instaurado por armas. Sua morte foi causada pelo mais puro e egoísta desejo de poder, travestido de religião e de zelo religioso, numa linguagem disfarçada de piedade e de purismo teológico, como comenta muito bem Rubem Alves na introdução de sua obra Da Esperança sobre sua experiência na ditadura militar.

Esta cena, dadas suas proporções teológicas, vem se repetindo ao longo da história até os dias atuais, tristemente no interior do próprio cristianismo, onde líderes religiosos, auto comissionados para serem guardiães da sã doutrina, encabeçam (escondidos atrás das turbas) perseguições, torturas e até morte a todos e todas que, ao pensar a fé diferente deles ameaçam sua hegemonia. De igual forma, se associam aos Pilatos lavadores de mãos para obter favores políticos. Os Pilatos, que surgem na história de Jesus Cristo até os dias atuais, se fazem amigos dos religiosos de plantão, afirmam realizar seus desejos, cedem às suas artimanhas com a única intenção de se manter também no poder.

Assim, Cristo continua a ser crucificado por esses e pela multidão que os segue de olhos vendados, não porque confiam cegamente, mas, porque não querem enxergar seu próprio erro.

A paixão de Cristo é, sem dúvida, um evento de salvação de alcance escatológico, mas não pode ser tratada como um ato de menor importância, uma simples memória trágica ou isolada em seu sentido histórico, pois ela ganha novos significados naqueles que sofrem pela justiça no mundo pela qual Jesus também morreu.

A morte de Jesus não pode ser fechada em uma caixa teológica-escatológica, pois, em sua historicidade e infinitos significados, é como o Sol no crepúsculo que vai iluminando gradativamente, fazendo nascer o dia, quando vemos todas as coisas sob suas luzes.

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