Da voz à história

Por Elissa Gabriela

Regina Fernandes Sanches
Editora Saber Criativo
7 min readJul 8, 2019

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Elissa Gabriela é teóloga, mestre em Filosofia, uma das fundadoras da Editora Saber Criativo, autora do canal Pensar Teologia (e do Instagram de mesmo nome). Ela trabalha como designer de livros na Editora Saber Criativo e Editora Recriar.

Este texto é uma resenha escrita para a mostra do filme “Democracia em vertigem” realizada em 05/07, em conjunto com a Confraria-Campinas.

Eu sou uma grande defensora da pluralidade e, como tal, assumo a responsabilidade de defender a liberdade. Não uma liberdade inconsequente, que leva as pessoas a acreditarem que possuem qualquer poder sobre o mundo. Isso não é liberdade, é uma viajação de uma mente imatura. Eu penso na liberdade como um grande livro em branco, em que todas as suas atitudes serão lidas pelos outros, discutidas, classificadas e, dependendo, rejeitadas ou aprovadas. Nessa escrita, temos que enfrentar os fatos, os resultados de nossas palavras que reverberam, incansavelmente, por fantasmas humanos, pessoas desconhecidas que nem imaginávamos sermos capazes de alcançar.

Eu vi o documentário “Democracia em vertigem” duas vezes, três agora. No meu primeiro turno, fiquei chocada com minha ingenuidade e a forma como não havia lido a história. Sempre fui alheia à política (talvez, percebo hoje, por ser demasiadamente política). A raiva se manifestou e eu fiquei estupefata, pensando: “Isso faz sentido!”. Em um segundo momento, vi novamente com meu marido, desta vez um pouco impaciente com cenas que não me impactaram tanto. Mas o final da peça é marcante. A entrada lenta da câmera por cima do Congresso Nacional, e a frase: Somos uma república de famílias, ficou ecoando na minha cabeça. Foi aí que a ficha caiu, preciso estudar melhor a história de nosso país. Embora saiba da extensa participação de grupos familiares notáveis em nosso governo, não fazia a mínima ideia de como eles entraram nesse espaço, como macularam nossa “democracia”. Precisava ler e foi aí que encontrei e comprei a obra “Sobre o autoritarismo brasileiro” da historiadora Lilia Schwarcz e comecei a lê-lo. Ela trata exatamente deste assunto, sobre como chegamos onde estamos agora. Nessa leitura, refleti: se fomos criados, como nação, de maneira tão simplista e agressiva, de que modo podemos pensar que teríamos alguma oportunidade de sermos diferentes? Logo cedi ao pessimismo e, também, ao desafio.

Vivemos tempos negativos, de falta de esperança, de ilusões. Hoje, mais do que nunca, as pessoas acreditam em super-heróis, em vilões, em salvadores da pátria. Somos constantemente ameaçados pela privação de nossa liberdade. Não podemos mais construir nossas narrativas pois as memórias têm sido completamente manipuladas, seja pelo governo, seja pela mídia, seja por nós, coitados de nós. O que é, de fato, verdadeiro? Qual lado é o correto? É incoerente, hoje, pensarmos dessa maneira, mas nós, seres humanos, não fomos criados para pensar fora da caixinha, ao contrário, esse é o louco que parece corromper toda a sociedade com suas crenças sem sentido. Mas até o louco e, principalmente ele, precisa ter sua liberdade para falar e foi isso que mais admirei nesse documentário: o poder da voz. Petra expôs o poder da voz, de um lado e de outro. A voz que demonstrou inseguranças, violência, choro, desespero, alegria, alento. A voz que busca por justiça, seja lá o que for isso, pois como vimos neste filme, é um conceito que possui múltiplas facetas: para um grupo representa o cumprimento dos direitos sociais por todos, para o outro, uma luta infame contra uma tal corrupção que, por algum motivo, decidimos que ela existe há apenas 20 anos. Como se ela se alastrasse somente no meio político e como se esse problema não fosse enfrentado por todas as sociedades desde que o ser humano começou a se compreender como um agente.

A corrupção é uma das mazelas que consome e destrói nosso ideal de democracia. Quando achamos que estamos aptos para seguir em frente, acontece alguma coisa que nos emperra no caminho e nos impede de continuar escrevendo em nosso grande livro. A liberdade é, imediatamente, suspensa pois foi abusada, para outros fins, não-democráticos. Por que? Eu me pergunto, talvez todos os dias, por que? O que é mais importante para um político, em uma democracia, do que os interesses do povo? Afinal, ele foi eleito para defende-los e não se voltar contra eles. O que fica confuso nessa pergunta é: que povo? Ninguém governa para si mesmo pois, assim como um professor precisa de estudantes para ser tratado como tal, um governador precisa de um grupo social que o legitime. Uma das coisas que aprendi com Hannah Arendt é que poder nenhum resiste à ausência de legitimidade, esse é o seu combustível. Mas o que é legitimar? É dar voz, é permitir que tal pessoa fale por você, por mim e, novamente, retornamos ao documentário. O grande problema de uma estrutura política precária é que ela consegue, facilmente, se legitimar com vagas ilusões: o que significa combater a corrupção? Por que resolver algo com violência sendo que temos nossa fala e, podemos, com certo esforço, discutir, dialogar e aprender? Qual é o sentido de manter os poderosos sendo que o governo deveria ser feito para todos? E é nesta ocorrência que está o pulo do gato. São simples perguntas que demonstram um pouco do tipo de realidade política que estamos vivenciando há alguns anos. Hannah Arendt faz uma previsão um tanto provocativa em sua obra “As origens do Totalitarismo”:

Nunca antes nosso futuro foi mais imprevisível, nunca dependemos tanto de forças políticas que podem a qualquer instante fugir às regras do bom senso e do interesse próprio […] É como se a humanidade se houvesse dividido entre os que acreditam na onipotência humana (e que julgam ser tudo possível a partir da adequada organização das massas num determinado sentido), e os que conhecem a falta de qualquer poder como a principal experiência da vida.

E assim ela prossegue, após alguns parágrafos,

A vitória totalitária pode coincidir com a destruição da humanidade, pois, onde quer que tenha imperado, minou a essência do homem.

O que vivemos hoje, em várias partes do mundo e, inclusive, no Brasil, não é uma democracia, mas uma forma desenvolvida de totalitarismo. É como um vírus que, na tentativa angustiada de se propagar e, por isso, sobreviver, consegue modificar seus genes para se adaptar a novos ambientes, novas demandas, atacando o seu hospedeiro de maneira inesperada. É por isso que chamo nossa democracia de ideal. Ainda temos uma eleição, temos três poderes, temos um líder geral: que é o presidente, mas deixamos de ter um povo. O totalitarismo nos ensinou que não é necessário um povo para governar, e por isso ele foi tão surpreendente. A legitimidade também pode ser praticada por uma massa bem manipulada. No entanto, como ela pode ser influenciada? De que maneira um povo pode ser transformado em um conjunto não identificado e ameboide de pessoas? Por meio da construção de uma nova história. É a narrativa, o testemunho e a memória que conferem sentido às nossas ações atuais. Todos os grandes líderes, dos bons aos perversos, sabem disso. Basta contar uma boa história que você terá, em breve, um grupo de seguidores, de pessoas que concordam e se inspiram em sua verdade. Mas o que o ser humano aprendeu rapidamente é que podemos manipular os outros por meio de nossas narrativas. É só alterar alguns fatos e, de repente, criamos um cenário bem diferente do original, talvez até mais instigante, como: “A ditadura fez bem para o nosso país”, “Quem inventou a corrupção foi o PT”, “O nazismo foi um movimento de esquerda” e por aí vai. É a história, tão frágil e, ao mesmo tempo, poderosa, capaz de contaminar pessoas e provocar uma destruição em massa e, por outro lado, ela pode ser o pilar central de um governo bem fundamentado, realmente democrático.

No entanto, a história verdadeira, os fatos como tais, só interessam àqueles que se abrem para estuda-los e entender como tudo funcionou, para fins de agir diferente. Ela não está à altura dos que buscam um simples analgésico para as dores sociais, os quais apenas procuram repeti-la, tanto na fala como nas ações, para terem uma fina base sustentando seus argumentos. A história não serve aos interesses pessoais e, sim, públicos. A história não se apresenta aos que, com suas mentes fechadas, querem apenas praticar os acertos de outrora, sem buscar novas configurações de mundo, adaptadas às demandas atuais. Como se o passado fosse melhor que nosso presente. A história não se presta à nostalgia, mas à compreensão. Novamente recorro à minha querida Arendt:

Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós — sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela — qualquer que seja.

Por meio deste documentário, entendi que a história deve ser analisada com coragem. É necessária uma boa dose de ousadia para conta-la, expor a própria interpretação dos fatos. Claro que isto não deve se tornar uma desculpa para afirmar que tudo é válido. Ainda temos o juízo, que nos leva a questionar: foi isso mesmo que aconteceu? Sendo uma construção conjunta, a história se concretiza no emaranhado de opiniões, de documentos, de pesquisas, no esforço, muito humano, de retorno ao passado. Ela se torna ainda mais revolucionária quando não é aceita, devido à presença de uma massa manipulada que acredita conhecer a verdade por intermédio de seu grande imperador, ou imperatriz. Assim, volto ao início deste texto. Defender a pluralidade implica entender que a história possui diversos contextos e olhares. Para uns, a escravidão realmente acabou por meio da Lei Áurea, para outros, ela está presente na forma de novos contratos exploratórios de trabalho. Aceitar esses diversos contextos e tentar construir um todo sobre eles é, possivelmente, um dos maiores obstáculos que o ser humano enfrenta. Neste caso, sinto que a diretora do filme se absteve dessa multiplicidade e abordou o tema de uma maneira bastante pessoal. Esta foi, claramente, uma escolha que ela tomou. Podemos enxergar a obra como um ponto de vista, uma perspectiva, uma provocação, mas, mais do que isso, um convite para relembrarmos dos fatos e tentarmos compreender como chegamos até aqui.

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