Jesus e o reconhecimento da voz das mulheres

Regina Fernandes Sanches
Editora Saber Criativo
9 min readNov 11, 2023

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Lucia Mariotti

Antes de abrirmos o Evangelho precisamos ter presente que os textos bíblicos foram escritos por homens que refletiam sob a ótica masculina. Utilizaram uma linguagem genérica, sexista, escondendo a presença e a voz das mulheres e, da mesma forma, por séculos, os exegetas prosseguiram impondo esse mesmo olhar.

1.1 A mulher na sociedade de Jesus

A sociedade no tempo de Jesus mantinha as mulheres silenciosas e quase invisíveis, subjugadas primeiramente ao pai, depois ao marido e, se viúva, aos filhos ou ao pai ou irmãos. Além disso, o marido tinha o direito de repudiar a esposa a qualquer momento (cf. Dt 24,1) Segundo PAGOLA (2019a, p. 256–259) o inconsciente coletivo alimentava uma visão negativa da mulher embasada pelo poema da criação segundo o qual a mulher foi criada para ser auxiliar do homem, porém se transformou em causa da desobediência e da expulsão do paraíso (Gn 2,4–3,24). Para o povo judeu, a mulher era vista como um perigo. Sensual, tentadora, desordenada, inútil era alguém em quem não se podia confiar e, por isso, devia ser mantida sob controle. Sua função era ter filhos e servir ao marido ou a outro de quem seja propriedade. Devia também ser por eles protegida em razão de sua vulnerabilidade. Por isso, para todos era “bom” que ela ficasse em casa cuidando de sua reputação para não envergonhar a família.

As regras de pureza legal condicionavam esse controle (cf. Lv 15,19–30). A mulher era tida como fonte de impureza durante a menstruação e, por deixar correr o sangue vital, impura também após o parto. Sendo assim, tudo o que ela tocava, se tornava impuro, contaminado. Isso justificava a sua exclusão do sacerdócio ou mesmo da participação no culto e do acesso às áreas sagradas do Templo, nas quais somente homens podiam entrar. Sua presença não era necessária no Templo, nem mesmo nas grandes festas como a Páscoa, Pentecostes e das Tendas. Os homens recitavam diariamente o Shema’, a profissão de fé de Israel; mas ela não era exigida das mulheres. Igualmente não lhes era permitido estudar a Torá, porque tudo o que se referia à relação com Deus pertencia ao mundo dos homens. Ditos rabínicos posteriores ao tempo de Jesus nos dão uma mostra desta exclusão: “Quem ensina à sua filha a Torá, ensina-lhe a libertinagem, pois ela fará mau uso do que aprendeu”; “Antes sejam queimadas as palavras da Torá do que confiadas a uma mulher” (cf. PAGOLA, 2019a, p. 259).

Presença secundária em todos os ritos, somente nas celebrações domésticas a mulher podia participar, acendendo as velas, fazendo algumas orações e sendo responsável por alguns detalhes da festa do sábado. Uma das orações diárias recitada pelos homens nos dá uma ideia do que acabamos de afirmar: “Bendito sejas, Senhor, porque não me criastes pagão, nem me fizestes mulher e nem ignorante”. O historiador judeu Flávio Josefo resume o que na sociedade do tempo de Jesus era institucionalizado: “Segundo a Torá, a mulher é inferior ao homem em tudo” (FLÁVIO JOSEFO, Contra Apião II, 201, Apud PAGOLA, 2019a, p. 257).

A casa era o lugar da mulher; nela cumpria seus deveres como moer o trigo, cozinhar, tecer, cuidar dos filhos e do marido ao qual chamava de ba’alí, “meu senhor”, e de quem devia lavar o rosto, as mãos e os pés, além de satisfazê-lo sexualmente e dar-lhe filhos homens. As mulheres só podiam sair de casa acompanhada por um homem: pai, irmão ou marido, mantendo-se caladas e com a cabeça coberta por um véu; não tinham o direito de participar de banquetes e seu testemunho não era válido em julgamentos. Se fora de casa as mulheres não existiam, dentro dela podiam ser respeitadas por serem mães e por cuidarem do clima familiar, é o que parece com base na literatura rabínica posterior (cf. PAGOLA, 2019b, p. 257–258).

1.2. Jesus: um novo olhar

Jesus cresceu nesse ambiente. No entanto, os Evangelhos narram que ele andava sempre acompanhado por um grupo de mulheres. Seus nomes também ficaram registrados: Maria Madalena, Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Suzana além de várias outras (cf. Lc 8,1–3). Elas não o abandonaram nem mesmo no caminho do calvário (cf. Lc 23, 27–31) e na hora de sua morte (cf. Mc 15, 40–41). Ele quis que as primeiras testemunhas de sua ressurreição fossem as mulheres. Em geral, aquelas que se aproximavam dele eram marginalizadas, doentes, viúvas, sozinhas, repudiadas, de má fama ou consideradas prostitutas. Somente Lucas fala que algumas mulheres o sustentavam economicamente (Lc 8,3). Vários pesquisadores (cf. PAGOLA, 2019 a nota 12, p. 260) são concordes que a afirmação pode ser uma antecipação do que ele escreveu nos Atos dos Apóstolos (17,4–12) sobre a conversão de algumas mulheres da alta sociedade.

Mulheres que saiam de casa acompanhando homens eram consideradas “fáceis” especialmente se não estivessem com seus esposos. Jesus não as despreza. Ao contrário, ele as acolhe, segundo o relato do banquete na casa do fariseu (cf. Lc 7,36–50). Mulheres presentes em banquetes poderiam ser prostitutas dos bordéis de propriedade de cobradores de impostos, contratadas para jantares ou festas, daí se entende o porquê do nervosismo de Simão nesse texto de Lucas (cf. PAGOLA, 2019 a, p. 260–261). Mas Jesus não se importa com as suspeitas; não discrimina, não expulsa, nem condena a mulher que durante o banquete se aproximou dele, lavou e perfumou seus pés. Para ele, aquela refeição era uma amostra do banquete do Reino, onde os últimos serão os primeiros, o que podemos reescrever, sob a ótima feminina, as últimas serão as primeiras, tendo em conta as suas palavras: “As prostitutas vos precederão no Reino do Céu” (Mt 21,31).

Ao comentar o confronto entre Jesus, a mulher e o fariseu, José Tolentino Mendonça (2018, p. 20–30) faz notar que Lucas descreve refeições, tanto no Evangelho como no livro dos Atos dos Apóstolos, como momentos coletivos e não restritos a duas ou três pessoas, e que era costume deixar as portas abertas durante os banquetes. Lucas concentra o drama em torno dos três personagens. Diferente de outros textos lucanos, nos quais as mulheres são nominadas, neste a mulher é apresentada como uma “pecadora” (Lc 7,37) conhecida na cidade; entra e sai da casa silenciosamente. Ela nada fala, mas usa uma linguagem plástica: o pranto, os cabelos, o beijo, o perfume…, o toque mais eloquente do que palavras. O pranto, ali substituto da água da hospitalidade, significa, na tradição bíblica (cf. 1Sm 1,10; Lm 1,16) reconhecimento das próprias debilidades e insuficiências; consciência da dependência divina e um pedido de proteção e “descobrir o cabelo diante de um homem estranho era considerado, para uma mulher, uma grande desonra” (MENDONÇA, 2018, p. 29). A qualidade penitencial do gesto transforma a pecadora intrusa em perdoada e reveladora coadjuvante de Jesus, Aquele que é perdão, o próprio Deus; a autenticidade da mulher permite que Jesus se revele. O Verbo fala, interpreta o choro, o perfume, o toque e lhe dá palavras na discussão com o fariseu interpelado a “ver” (Lc 7,44) de outra forma, para além da aparência, dos julgamentos, do rótulo “pecadora”. Nesse episódio, o fariseu preso a premissas, representa a concepção religiosa vigente, a pureza legal, o patriarcalismo; mas “Jesus não parece interessado em salvaguardar as devidas distâncias espaciais em relação à mulher e permite que ela o toque” (MENDONÇA, 2018, p. 101); atua de acordo com a sua verdade, com o que ele é e com o que a mulher é: amada, filha, irmã, querida por Deus, digna de respeito.

Igualmente na contramão da cultura, Jesus exalta a dignidade da mulher, mas não pelo motivo de ser mãe, mostrando que, mais do que a maternidade, a mulher, assim como o homem, tem a capacidade de escutar a palavra de Deus, a mensagem do Reino e nisso está a sua grandeza (Lc 11,27–28). Ela também pode fazer experiência de Deus, da mesma forma que o homem. Ilustrativo é o texto da visita à Marta e Maria (cf. Lc 10,38–42), oportunidade na qual Jesus corrige a visão de que a mulher devia ficar confinada em casa, cuidando das tarefas domésticas: “Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada” (Lc 10,41b). Para Jesus, a mulher também tinha o direito de sentar-se para ouvir e interpretar a Palavra de Deus, como sujeito ativo, pensante. Jesus era um homem livre de todos os estereótipos, visto que não encontramos nele nenhuma expressão depreciativa ou preconceituosa direcionada às mulheres, o que era comum naquela sociedade. Nesse sentido, é notório que em todo o Evangelho, frente ao código de pureza, nada comenta, não discute sobre superioridade ou inferioridade entre homem e mulher; olha para as mulheres com compaixão, amor, amizade e nunca com suspeição, desprezo ou como tentadora e causa de pecado. Ao contrário, adverte aos homens que, ao se justificar, culpabilizavam as mulheres: “Todo aquele que olha para uma mulher desejando-a, já cometeu adultério em seu coração” (Mt 5,28). A sedução era considerada pecado grave, ao passo que, desproporcionalmente, não o era a luxúria, o desejo masculino. É nesse contexto que Jesus aponta a responsabilidade dos homens em relação às mulheres (cf. PAGOLA. 2019 a, p. 262).

Frente os critérios de moralidade, desiguais para julgar homem e mulher, o quarto evangelho nos apresenta uma narrativa localizada entre duas declarações: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7,37) e “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12). Na narrativa em que a luz do mundo ilumina a verdade e a fonte da vida sacia os sedentos de justiça, Jesus desbanca um grupo de homens armados com pedras no ato de julgar e condenar à morte uma mulher pega em flagrante de adultério (cf. Jo 8,1–8), nada se diz sobre o homem que com ela estava. Conforme a lei ela devia ser apedrejada: era um caso de desonra da família da mulher. No entanto a lei proibia o homem de ter relações sexuais com a esposa de outro; era ele que não deveria desejar o que a outro pertence (cf. Ex 20,14–17). Quer dizer que o verdadeiro culpado nesse caso é o homem e não a mulher vítima e cúmplice. A lei mostra que são eles os responsáveis por tudo o que acontece na sociedade, inclusos os adultérios. Mas eles jogavam a culpa nas mulheres e as castigavam por isso até morte. Os escribas e fariseus armam uma cilada para Jesus, querem a sua opinião sobre o caso. Claramente estavam manipulando a lei e usando a mulher para acusar Jesus. Ele, em primeiro lugar fez silêncio e calmamente escreve no chão. Por que ele fez silêncio? Todos os homens estavam com a palavra, menos a mulher que julgavam. Nervosos, querem uma resposta. Jesus conhece a hipocrisia daqueles homens e deixa os acusadores sem palavras: “Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8,7b). Mudou o alvo, Jesus os induz a raciocinar e a examinarem a si mesmos tendo presente o que a lei exige deles e não da mulher. Envergonhados, vão soltando as pedras e indo embora sem dizer nada, a começar pelos mais velhos, aqueles que conheciam a lei, sabiam, mas negavam que a responsabilidade era do homem. Eles eram os condenados segundo a lei por isso não lhes restou outra coisa senão silenciar e desistir levar a diante a pena de morte.

A mulher permanece diante de Jesus e ele olha para ela levantando os olhos, atitude de quem não domina. Ele poderia ter ficado em pé e olhado a mulher de cima para baixo…com o olhar cheio de ternura, pergunta: “Ninguém te condenou?” E ela responde “Ninguém, Senhor”. A mulher fala, quebra o silêncio, imaginamos que desfazendo o nó que tinha na garganta. E Jesus fala o que os homens não puderam ouvir: “Nem eu te condeno…”. Jesus não condena a mulher que ousou sair de casa. Não era de condenação que a mulher necessitava, mas de justiça, misericórdia, perdão e um caminho de vida. E é tudo isso que Jesus lhe oferece.

As narrativas, tanto nos evangelhos sinóticos quanto em João, são uma amostra de que Jesus torna visível a vida das mulheres; de que ele consegue perceber suas angústias, ler seus silêncios. Ele lhes dá voz ao fazê-las protagonistas de muitas de suas parábolas. Deus é o Pastor que procura a ovelha perdida como a mulher que perdeu a sua moeda e que varre a casa até encontrá-la, e encontrando, se alegra: duas metáforas que mostra como é o amor de Deus. Utilizando os mesmos termos nas duas parábolas, Jesus inaugura uma nova linguagem e rompe com os esquemas e imagens de Deus enquanto figura masculina; convidando a falar quem era silenciada, vivendo escondida e subjugada.

O Evangelho escrito e anunciado como uma novidade, trouxe uma boa notícia para as mulheres que puderam também ser discípulas seguidoras do mestre Jesus, com liberdade de falar e de serem ouvidas. Essa notícia impactante foi de encontro a uma mentalidade corrente na sociedade judaica e greco-romana, nas quais foram sendo formadas as primeiras comunidades cristãs. Nessas culturas, profundamente machistas, os pensadores cristãos, isto é, os Santos Padres, interpretaram os textos bíblicos e deixaram transparecer a mentalidade vigente em relação à mulher, contribuindo para justificar a sua submissão ao homem. Veremos agora como as primeiras interpretações do Evangelho, escritas pelos filósofos ou teólogos cristãos, mostram certa contradição entre o anúncio da pessoa e da mensagem de Jesus, que valorizava as mulheres, e a força da cultura que teimava em interditar a participação feminina, silenciando a voz da mulher dentro e fora de casa.

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