Laicidade do Estado

Regina Fernandes Sanches
Editora Saber Criativo

--

Por Elissa Gabriela

O termo “laico” provém do vocábulo grego primitivo laós (λαός), um adjetivo que significava o povo de modo geral, lato na abrangência. Dele surgiu a palavra, também grega, laikós (λαικός) (RANQUETAT JR, 2008, p. 4), podendo ser traduzida como “do povo”. Seu uso não só estava orientado para a inclusão das diversas confissões religiosas como também das variadas manifestações culturais, linguísticas, raciais e etc. (GOMES; LINS FILHO, 2011, p. 1220). Neste sentido, é comum confundirmos laicidade com ateísmo, um equívoco que não corresponde àquilo que é, de fato, o sentido do termo, pois são dois campos diferentes de ação. Tratar um Estado Laico como sendo ateu significa afirmar que ele ainda possui uma preferência, ainda que seja a-religiosa. Um Estado Laico é um Estado neutro, que não interfere nas questões religiosas de seu povo. Por outro lado, é também um Estado que, teoricamente, não deve utilizar dos valores religiosos no interior dos diálogos exclusivamente políticos.

A laicidade é uma noção que possui caráter negativo, restritivo. Sucintamente pode ser compreendida como a exclusão ou ausência da religião da esfera pública. A laicidade implica a neutralidade do Estado em matéria religiosa. Esta neutralidade apresenta dois sentidos diferentes, o primeiro já destacado acima: exclusão da religião do Estado e da esfera pública. Podemos falar, então, de neutralidade-exclusão. O segundo sentido refere-se à imparcialidade do Estado com respeito às religiões, o que resulta na necessidade do Estado em tratar com igualdade as religiões. Trata-se, neste caso, da neutralidade-imparcialidade (BARBIER, 2005). A laicidade não se confunde com a liberdade religiosa, o pluralismo e a tolerância. Estas são consequências, resultados da laicidade. Pode haver liberdade religiosa, pluralismo e tolerância sem que haja laicidade, como é o caso da Grã-Bretanha e dos países escandinavos (BARBIER, 2005). (RANQUETAT JR, 2008, p. 5)

Esta não é uma separação que atinge somente o ambiente secular, mas eclesiástico também. As igrejas, de modo geral, possuem certa dificuldade em administrar suas conexões com o espaço onde o Estado governa. Podemos perguntar: se o Estado é laico, então porque a Igreja deve se preocupar em atuar no ambiente público? Neste caso, precisamos definir primeiramente o que seria a dimensão pública. O meio no qual observamos a presença do povo juntamente com os personagens políticos é o espaço público, e, nele, se incluem todas as instituições sociais, como por exemplo a própria Igreja. O público se diferencia do privado na medida em que este último se restringe ao campo do individual e, no máximo, do lar. Em oposição, o público se orienta por toda a variedade de indivíduos, conhecidos ou não, que estão de alguma forma inter-relacionados, visto que compõem a mesma massa sócio-política.

A Natureza e o papel Público da Igreja

É, neste sentido, que não podemos de forma alguma descartar a potência social da Igreja e seu papel público. Como agente atuante, ela se envolve (e deve se envolver) de maneira intensiva no ambiente que a cerca. Os programas de recuperação de dependentes químicos, atuação nas penitenciárias, cuidado com os grupos indígenas, educação infantil e apoio pedagógico às comunidades carentes, conscientização ambiental, militâncias junto às minorias sociais entre vários outros projetos e programas eclesiais, apesar de serem consideravelmente poucos em relação ao número crescente de instituições eclesiais no Brasil, revelam as possibilidades de atuação da Igreja para fora de sua privacidade e em favor da construção e desenvolvimento social.

Nem todos os problemas da sociedade brasileira podem ou devem ser resolvidos com a intervenção do Estado, por isso é necessária a atuação de entidades e organizações, que se constituem uma espécie de terceira via na organização política social. As ações de tais organizações constituem-se como cidadania: assumir responsabilidades públicas através da percepção de que quem faz a política, em qualquer nação, é toda a base social que o próprio governo afirma representar, não somente a elite dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário).

A Igreja, além de entidade teológica, é uma organização, e, como parte integrante do espaço público, necessita corresponder à sua missão que também é pública e política. Por vezes, essa missão tem sido velada pelos anseios econômicos e por uma forte necessidade de reconhecimento no campo social da liderança eclesiástica. Este último, não se dá necessariamente por sua atuação na sociedade, mas, na maioria das vezes, pela expressiva expansão numérica e possibilidade da disseminação do renome denominacional. A preocupação excessiva com o crescimento numérico, tendo como finalidade o próprio crescimento, projeção social e eclesiástica da instituição Igreja, faz com que todos os esforços por ela realizados tenham esse objetivo, comprometendo assim sua missão pública, que deve visar a sociedade, seu desenvolvimento e a transformação em função de uma vida melhor para todos. Esta é uma realidade que Pablo A. Deiros (2011, p. 20, tradução nossa), teólogo paraguaio, afirma estar presente em toda a América Latina:

Nos últimos 20 anos, longe de reconhecer este fracasso [em produzir uma transformação do continente com o evangelho de Cristo], o temos rejeitado encantados com o crescimento numérico, o aumento no reconhecimento social, o incremento do prestígio e o acesso as esferas do poder político e econômico. A realidade é que a América Latina continua sob o peso esmagador da opressão política, econômica, social, cultural e religiosa, e, o evangelho de Jesus Cristo, que nós representamos e dizemos proclamar, não tem produzido todavia as mudanças e transformações que o continente espera e que, entendemos, são a vontade do Senhor para nossos povos.

A laicidade do Estado não impede a participação das instituições religiosas no âmbito social, porém prevê e requer que o façam como entidades públicas com o poder necessário e específico para atuar nas comunidades em que estão inseridas. Ou seja, nosso regime democrático apenas considera o aspecto politizado da Igreja e outras organizações religiosas, mantendo a neutralidade com relação à confessionalidade em si, por ser um elemento que não lhe diz respeito, faz parte da vida particular, privada de cada entidade e instituição religiosa. Ao Estado não cabe arbitrar sobre isso e ele próprio se isenta dessa tarefa, mas não significa que não reconhece a utilidade pública das instituições religiosas.

A Igreja assume e propaga o evangelho de Jesus Cristo, no entanto, nem sempre assume o compromisso prático que esse evangelho exige em relação à vida no mundo, à sua responsabilidade testemunhal como agente de transformação da realidade histórica. Como cristãos, devemos refletir no exemplo de Cristo e saber o que significa preocupar-se com o outro que compartilha conosco o mundo. Só então poderemos construir soluções estratégicas que correspondam à missão da Igreja, de atuar amplamente no mundo e não somente em função da sua condição institucional.

Conscientes de que “A missão compreende a totalidade da Igreja, não só algumas partes dela e muito menos só os membros por ela enviados” (MOLTMANN, 2013, p. 29), o que significa que todos os que se afirmam cristãos possuem uma responsabilidade missionária para com o mundo e a sociedade e que vai além do acréscimo de membros na instituição eclesiástica local, o que torna todo cristão e cristã missionários. Da mesma forma, enquanto organização social, há uma responsabilidade coletiva e comunitária da instituição eclesiástica, não somente por compartilhar da mesma sociedade, direitos e deveres nela, mas por causa do seu amor pelo mundo que faz parte naturalmente do evangelho de Jesus Cristo e da vida no Reino de Deus.

Voltamos então para o problema inicial: a igreja deve atuar no espaço público? Ela poderia ser considerada uma instituição política? Qual a relação entre política e espaço público? São questões que nos ajudarão localizar de modo específico a atuação da Igreja.

Como já deixamos claro, as instituições religiosas, no regime democrático brasileiro, não são entidades estritamente políticas, pois não estão inseridas dentro do campo elitizado da discussão de cunho governamental. Queremos nos referir com isso ao Senado, Câmara dos Deputados, Superior Tribunal Federal e, até mesmo, ao restrito acesso da classe presidencial. A Igreja, por si só, não possui entrada a estes âmbitos justamente porque, como explicamos, o Estado é laico. Porém, a política se origina na presença de um ambiente público, onde as discussões podem se proliferar até a massa, o povo, a base do governo. Raciocínio este que possibilita que consideremos a própria Igreja, por ser parte da massa, como uma entidade politizante no sentido da conscientização, das lutas, das amplas ações e exposição a abertura para o próprio debate político em si. Isso implica que, se conseguimos nos organizar como um eficiente bloco de eleitores, formar bases para interferir nas decisões do próprio Estado, que introduz figuras religiosas no seio do debate político, também somos capazes de desenvolver programas que possam formar mentes críticas e ajuizadoras das ações políticas, que se preocupam com aquilo que é inerentemente sócio-humano.

Esta janela já se apresenta em nossa realidade democrática atual, com a presença de uma expressão massiva da opinião evangélica no ambiente público-político, quando o fazem por uma preocupação legítima com a sociedade e não meramente visando a obtenção de poder e favorecimentos para grupos eclesiásticos específicos, enriquecimentos e obtenção de poder. É uma abertura que precisa ser assumida, orientada teoricamente e aperfeiçoada para que se dê em serviço ao Reino de Deus e não contra ele e seu testemunho.

Ao tratarmos do diálogo entre Igreja e Estado, também não podemos deixar de mencionar a existência da Teologia Pública, uma das correntes da grande área da Teologia que promove a amplitude necessária para a discussão e reflexão acerca da inserção da religião no espaço público. Por ser teologia, ela também se relaciona com a temática eclesial em si e estimula a formação de uma representatividade. Rudolf von Sinner (2012, p. 12), teólogo luterano brasileiro e que representa o movimento acadêmico da Teologia Pública no Brasil, a conceitua como: “De modo geral, pode-se dizer que a teologia pública busca analisar, interpretar e avaliar a presença da religião, neste caso, da religião cristã, no espaço público”.

São questionamentos da Teologia Pública: qual a relação entre a fé e o espaço público? Devemos assumir nossa atuação cidadã apenas como indivíduos ou também como um corpo religioso cristão? De que maneira a Igreja pode ser mais representativa politicamente? Em que consiste sua responsabilidade como instituição pública? Qual a relação da Teologia Pública com a Teologia Latino-americana?

Inevitavelmente, a Igreja é também porta-voz de uma opinião pública, uma coletividade que assume uma autoridade social. Nela, um grupo de pessoas se reúne em torno de um objetivo comum, que pode ser no campo político. No entanto, sabemos que é uma correlação bastante complicada, pois, as Igreja de modo geral, dada sua experiência histórica de situações malsucedidas na relação Igreja-Estado, tende a resistir a qualquer associação aberta com o campo político, sobretudo quando se trata de tomar posicionamentos. Isto faz com que predomine ainda uma concepção de que religião e política não se misturam, e “nos meios evangélicos latino-americanos sempre se viu o âmbito da participação política como algo sujo que devia ser evitado” (SARACCO, 2011, p. 119). Essa separação entre Igreja e sociedade reflete na vida do cristão no mundo, resultando em dualismos de comportamento, conforme comenta Saracco:

O problema é que só o fato de ser evangélico hoje não é garantia de honestidade, moralidade e consagração pela justiça. O exemplo mais contundente é que apesar do crescimento do número de evangélicos em todos os países da América Latina não tem feito nenhuma influência visível. Existem países onde a proporção de evangélicos chega a quase 50% da população e, entretanto, seguem aumentando os índices de violência, criminalidade, pobreza e corrupção. (SARACCO, 2011, p. 119)

Mesmo assim, não podemos deixar de insistir escancarando e reconhecendo o nosso compromisso como indivíduos cristãos, cidadãos e pertencentes a uma instituição religiosa que possui o compromisso de corresponder à sua ampla missão no mundo. Por isso, precisamos compreender a fundo como se efetua sua atuação social e por que a Igreja deve estar presente contribuindo com o âmbito sócio-político.

BRASIL. Artigo no 19, inciso 1, 1988. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/10639289/artigo-19-da-constituicao-federal-de-1988. Acesso em 15 dezembro 2015.

BRASIL. Decreto no 119-A, de 07 de janeiro de 1890. Proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm. Acesso em 15 dezembro 2015.

BULLÓN, H. Fernando. Transformación de América Latina y responsabilidad social. Buenos Aires: Kairós, 2009.

CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e Política. São Paulo: Temática Publicações. 1994. DIAS, Zwinglio M. Teologia Pública — Uma Proposta. In.: Koinonia — Presença Ecumênica e Serviço. Disponível em http://koinonia.org.br/periodicos/theologia-publica/teologia-publica-uma-proposta/4049. Acesso em 18/05/2016.

CAVALCANTI, Ronaldo. A Cidade e o Gueto. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.

FARRET, Rafael Leporace; RODRIGUES PINTO, Simone. América Latina: da construção do nome à consolidação da ideia. In.: Revista Topoi, v. 12, n. 23, jul.-dez. 2011, p. 30–42.

GOMES, Christiane Teixeira; LINS FILHO, Flávio Barbosa. Estado laico — da origem do laicismo à atualidade brasileira. Colóquio de História — Perspectivas Históricas: historiografia, pesquisa e patrimônio, 5, 2011, Boa Vista. Anais. Boa Vista: UNICAP, 2011. Disponível em: http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wp-content/uploads/2013/11/5Col-p.1219-1228.pdf. Acesso em 15 dezembro 2015.

JACOBSEN, Eneida; SINNER, Rudolf; ZWETSCH, Roberto E. Teologia Pública: Desafios éticos e teológicos. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2012.

KOOPMAN, Nico. Apontamentos sobre a teologia pública hoje. In.: Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 22, maio-ago. 2010, p. 38. Disponível em http://www.est.edu.br/periodicos/index.php/nepp . Acesso em 18/05/2016.

LIBÂNIO, João Batista. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002.

MOLTMANN, Jürgen. A Igreja no poder do Espírito. Trad. Monika Ottermann. Santo André: Academia Cristã, 2013.

ORO, Ari Pedro. A laicidade no Brasil e no Ocidente: algumas considerações. Rev. Civitas, v. 11, n. 2, p. 221–237, mai./ago. 2011.

RANQUETAT JR, Cesar A. Laicidade, laicismo e secularização: definindo e esclarecendo conceitos. Rev. Sociais e Humanas, v. 21, n. 1, 2008. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/sociaisehumanas/article/view/773. Acesso em 15 dezembro 2015.

ROLDÁN, Alberto F.; THOMAS, Nancy; ENGEN, Carlos van (ed.). La iglesia latinoamericana: su vida y su misión. Buenos Aires: Certeza Argentina, 2011.

ROSA, Wanderley Pereira da; RIBEIRO, Oswaldo Luiz. Religião e Sociedade (Pós) Secular. Vitória/São Paulo: Editora Unida/Academia Cristã, 2014.

SINNER, VON SINNER, Rudolf. Teologia Pública em debate. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2011.

______; Rudolf von. Teologia Pública no Brasil: um primeiro balanço. Ver. Perspectiva Teológica, n. 122, p. 11–28, jan/abr 2012.

ZABATIERO, Júlio. Para uma Teologia Pública. São Paulo: Fonte Editorial; Vitória: Faculdade Unida, 2012.

--

--