Apuração

Maryanna Nascimento
sahafi brazili
Published in
12 min readAug 2, 2019

Em um território muitas vezes desconhecido, com cultura e idioma diferentes, o processo de apuração apresenta algumas dificuldades. Quando o contexto é de conflito, há ainda mais agravantes. Para alguns, a saída são os fixers, que conhecem o local e auxiliam com fontes; para outros, há o improviso. Seja qual for o caso, não se faz jornalismo sem apuração, ainda que algumas histórias sejam contadas por vozes unilaterais. Nem sempre é possível atravessar a fronteira para ouvir a outra versão e confrontar as ideias — aos jornalistas, principalmente por questões de segurança; ao veículo, pelo alto investimento em manter um repórter por área. Alguns profissionais, convictos da lição ‘ouvir de todos os lados’, assumem o desafio e recorrem ao telefone, internet ou até escapadas quando não são vigiados. Outros aceitam que estão ali para contar aquela versão que, se bem conduzida, não deixará de ser um fragmento e registro da realidade.

Área controlada pelo governo

Por Germano Assad
Cobriu o início dos conflitos, em 2011 — Damasco (Freelancer)

Uma parte mais fácil era contato com jovens. Era mais fácil porque eu frequentava uma universidade. Eu fui conhecendo as pessoas. Para acessar as fontes grandes, como ex-reitor da Universidade de Damasco, presidente do partido x, um advogado famoso dos direitos humanos, para chegar nessas fontes mais qualificadas e que eram mais arriscadas de se abordar, de se aproximar, porque eram conhecidamente oposição ao regime, eu tive muita ajuda, em especial de amigos estrangeiros. Em algum momento eu dividi uma casa com um italiano que era um jornalista mais experiente, trabalhava para uma agência da França e ele tinha muito suporte de Beirute. Tinha um correspondente fixo em Beirute e eu comecei a acompanhá-lo. Ele tinha um roteiro de entrevistas de gente que ia acompanhar. Ele me convidou para ir junto. As primeiras fontes eu desbravei com ele, por meio desse contato. Depois eu fiquei amigo de um diplomata belga que trabalhava na embaixada e ele tinha uma lista de contatos com a oposição que era interessantíssima também. Então para ele era interessante usar porque a gente ia junto lá, fazia entrevista, eu gravava em vídeo, em áudio, disponibilizada para ele e a gente conversava, discutia. Mas cada um fazia o seu uso do material. Então foi mais ou menos assim. Fui conhecendo uma pessoa que apresentava outras pessoas. Desbravei procurando Facebook. O Skype, à época, era uma ferramenta muito importante porque você conversando com uma fonte, a fonte te adicionava em um grupo de oposição e de repente você já estava em contato com várias outras fontes. Então foram dessas formas, fui desbravando os contatos.

Por Lourival Sant’anna
Cobriu em 2012 — Damasco (Estadão)

Eu falei que eu queria ouvir a oposição e aí esse meu guia, esse funcionário esse funcionário do governo, ele que marcou as entrevistas. Agora nos outros momentos que eu saí sozinho, eu fui em uma manifestação a favor do regime e lá eu fiquei muito tempo conversando com as pessoas em inglês mesmo. Ali eu vi um apoio legítimo ao governo que era algo que eu buscava porque é muito importante a gente conseguir falar com as pessoas que estavam do outro lado do que normalmente seria o que a gente identificava como a defesa da liberdade, da democracia. Eu sempre busco muito isso, parto do princípio de que todo mundo tem as suas razões. Não é um lado idiota e o outro lado sábio, no mundo real não é assim. No mundo real todo mundo tem as suas razões para estar em uma determinada posição. Então para mim foi reconfortante. Mas também falei com pessoas bem comuns que não estavam de lado nenhum.

Cobrir de um dos lados: Nas minhas coberturas eu sempre tento ter contato com os vários lados do que está acontecendo. Nesse caso, na Síria, eu consegui isso. Em dois dias diferentes. Em Deraa, no primeiro dia, em que eu escapei, entrei em um carro e fui para um apartamento onde reuniram os rebeldes eu os ouvi. Também no dia em que eu viajei com os observadores militares da ONU, também pude ouvir bastante, fazer um longo vídeo com a população que não gostava do regime. E no restante do tempo ouvi bastante o regime, pessoas favoráveis a ele. Acho que foi uma cobertura equilibrada. Também houve outro dia que escapei, fui para uma favela, cobri uma manifestação, vi uma pessoa que tinha acabado de sair da prisão, contou como tinha sido torturado. Ouvi bastante gente dos dois lados.

Por Samy Adghirni
Cobriu em 2012 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Em um país como o Brasil, você cultiva fontes. Você tem as fontes do governo, da oposição, políticas, econômicas. Você está na guerra, em um país que você não conhece, ali é muito do improviso. Eu acho que além da sorte, o grande diferencial dessas coberturas é a capacidade de improvisar. Claro, você chega com ideias. Essa é uma viagem, que ao contrário de outras, foi preparado. Eu lia tudo sobre a Síria, desde artigos acadêmicos até tudo que saía na imprensa, a começar por jornalistas que tinham ido. Você tem que ter humildade e dizer ‘Olha, estou indo para para um lugar que não conheço’. Isso vai te dando ideias também. Você vê um elemento de uma matéria que você leu na BBC e acha que aquele ponto não foi explorado suficiente e você chega lá com vontade de aprofundar. Economia, por exemplo, é um troço que até hoje nunca vi uma matéria boa sobre a economia da Síria. Como a economia da Síria está funcionando? Você pega umas matérias meio superficiais. É o que dá para fazer em uma viagem de poucos dias, em que você tem pouquíssimo acesso a dados oficiais, críveis. As suas fontes, quem são? É tudo improviso. É um pouco de cada, o seu preparo, a sua observação local, o que você quer fazer, onde você quer ir, onde dá para ir, o que o teu fixer sugere e assim você tem um bem bolado. Sendo que o tique-taque está ali contra você. É muito difícil.

Cobrir de um dos lados: É inevitável, você sempre vai contar de um lado. Não existe uma guerra você, jornalista, contar a história dos dois lados. O mesmo jornal ou TV pode se dar ao luxo de ter um em cada lado, acontece e é saudável. Eu achei muito válida a minha avaliação porque as pessoas estavam com foco mais voltado para os rebeldes, eles eram os protagonistas da história.

Por Diogo Bercito
Cobriu em 2014 — Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Mesmo que não seja em uma situação de guerra, você diz (para o fixer) ‘Fulano, eu quero escrever sobre Homs, sobre política, com quem você acha que eu devo falar?’. ‘Ah, eu tenho o telefone do governador’. ‘Legal, vamos marcar com ele’. Eu digo para o fixer ‘Eu li que tem esse padre que está fazendo um projeto de conciliação entre rebeldes e governo, vamos lá então. A gente procura juntos, pergunta para alguém’. Fazemos isso juntos e muitas vezes você é um estranho. Em Yarmuk a gente chegou lá, conversou com os soldados, ficou do lado de fora, encontrou palestinos. Também é uma coisa feita espontaneamente. A internet ajuda. Eu passo o tempo todo na internet nessas coberturas. No twitter, além da imprensa local, lendo o que a imprensa tem escrito sobre os mesmos assuntos. Isso é fundamental.

Cobrir de um dos lados: É um desafio manejado de diversas maneiras. Fazendo, por exemplo, algumas coisas por fora. Algumas coisas que talvez eu não tenha feito pessoalmente porque eu não me sentia à vontade para sair do hotel e me encontrar com o líder da oposição, uma coisa que é perigosa. Uma coisa que você pode fazer é usar o telefone. Eu conheço pessoas da oposição, eu tenho números na minha agenda então talvez tenha voltado para Beirute e telefonado para pessoas. Mas mesmo lá encontrei pessoas da oposição pessoalmente na Síria. Alguns textos era justamente ‘Quem é a oposição’, como eles se organizam em meio a ditadura, o que pensam do governo. É a mesma oposição armada? Claro, não é o mesmo tipo de oposição. Nesta cobertura que eu estou dentro do território sírio não é aconselhado a fazer uma entrevista pessoalmente com um soldado, com o Exército Livre Sírio, com o Estado Islâmico. Claro, existe esse tipo de restrição que é igual do outro lado. Se você está lá como a Patrícia (Campo Mello) que esteve na fronteira com a Turquia, é a visão totalmente oposta porque não teve como ter contato com o governo. São desafios, e como a gente resolve isso? Você pode ligar para uma pessoa que está do outro lado e você resolve mantendo a cobertura também. Não dá também para ver a minha cobertura isoladamente. Não foi a única coisa que eu fiz na Síria. E não foi a única coisa que o jornal fez. Então ter essa noção que eu passei lá, mas antes/depois disso conversei com a oposição; a Patrícia foi um tempo depois, o Samy (Adghirni), o Marcelo Ninio. A gente tem uma equipe de pessoas que fazem trabalhos em torno disso. Se você olhar o trabalho que a gente faz no geral, eu acho que se balanceia um pouco. Ninguém pode dizer nenhuma das duas coisas: que a Folha não ouve a oposição e ninguém pode dizer que não ouve o governo. A gente faz as duas coisas. Talvez não a mesma pessoa no mesmo lugar, por questões óbvias, mas não deixamos de fazer.

Por Yan Boechat
Cobriu em 2017 — Damasco, Homs e Aleppo (Freelancer)

Quando eu vou para regiões em que os lados estão muito polarizados e há uma campanha de propaganda muito forte de ambos os lados, eu evito entrevistar qualquer fonte oficial. Prefiro não fazer nenhuma entrevista com ninguém oficial, do governo ou da oposição, e foco o meu trabalho no dia a dia das pessoas. As minhas fontes são pessoas normais, gente que eu encontro no bar, na rua. Minha única fonte oficial nessa cobertura da Síria é o chargé d’affaires [cargo do mundo diplomático], o encarregado da embaixada brasileira, a respeito da situação dos sírios brasileiros lá. Também fiz uma entrevista oficial com Assad e não recebi (as respostas). Sobre qualquer situação eu prefiro não entrevistar ninguém que tenha um lado. Claro que todo mundo tem um lado inclusive as pessoas que estou entrevistando na rua, mas eu prefiro focar na história delas, como é o dia a dia, o que faz, o que não faz, do que entrar em uma discussão política que eu acho muito complexa. Inclusive na Síria que eu acho uma guerra muito manipulada, tanto de um lado quanto de outro, que você tem que demonizar os adversários de uma forma muito agressiva. Houve uma campanha de demonização do Assad muito grande, como houve uma campanha de demonização dos rebeldes também. Eu prefiro fazer o micro do que o macro. Eu não me sinto confortável para assumir posições nesse sentido. Então para me resguardar disso eu procuro evitar entrevistar fontes oficiais.

Cobrir de um dos lados: Eu acho que nós jornalistas somos sempre instrumentos de propaganda, independente de qual lado você estiver. Se você estiver com os rebeldes, os rebeldes vão tentar fazer com que você seja um instrumento de propaganda interessante para eles. Eles vão deixar você ver o que eles querem que você veja, vão tentar de todas as maneiras fazer com que você replique as narrativas deles. Não há muita diferença entre governo e rebeldes. Nesse caso, é claro, você está lidando com um cara que tem aviação, com um monte de gente com pedras de tudo mais. Essa narrativa que ficou muito forte na Síria de uma população civil lutando contra um ditador sanguinário. E é verdade até certo ponto. Ela não é tão verdadeira assim porque quem era essa população civil e quão civil de fato era essa população? Quem foi que armou essa população, quem deu grana, quem deu treinamento, quem deu armas, quem eram essas pessoas? Era uma situação um pouco complexa. A minha visão eu sempre tendo a ver que a gente como jornalista sempre vão tentar usar a gente para a gente fazer propaganda para um lado. Dependendo da narrativa a gente acaba sendo seduzido. Acho que na guerra da Síria muita gente foi seduzida por essa narrativa do Davi contra Golias, que no final a gente vi que esse Davi estava sendo financiado pela Arábia Saudita porque há interesses importantes de Israel e dos Estados Unidos na queda do Assad e tudo mais. O Assad barbarizou? Claro que barbarizou. Agora se você pega como a história foi contada nos cercos de Aleppo e Mossul você vê que havia uma campanha de propaganda forte e muitos jornalistas acabaram sendo seduzidos por ela. O inimigo era o mesmo, a situação era a mesma, mas em Mossul era um mundo lutando contra um inimigo terrível e em Aleppo era um ditador terrível matando civis. Só que em Mossul morreram 11 mil pessoas.

Área controlada pelos rebeldes

Por Tariq Saleh
Cobriu em 2011, 2012 e 2013 — Aleppo (BBC e Terra)

É uma combinação: eu tenho os meus próprios contatos e peço para o fixer checar com eles a disponibilidade para entrevistar, passar todas as informações. Às vezes os fixers têm as suas fontes seguras que a gente debate, a gente faz uma série de perguntas sobre qual a credibilidade dessas pessoas. Quem são essas pessoas, qual o histórico dessas pessoas? Obviamente que eles trocam informações com outros colegas. Alguém vai dizer ‘Esse cara que vocês querem é roubada’. Depende muito, mas é uma combinação de você perguntar para o fixer porque ele conhece as pessoas locais e você faz uma apuração fora, externa, e com outros colegas, com outras pessoas que conhecem essas pessoas. Uma apuração de credibilidade sempre é muito importante para a gente não entrar em uma roubada.

Cobrir de um dos lados: Pessoalmente, como jornalista, infelizmente eu não pude cobrir do outro lado porque eu estava em uma lista negra e depois me tiraram. Como jornalista, eu não tive essa oportunidade. O que eu lamento muito porque eu acho que seria importante. Eu compensava entrevistando pessoas de Beirute. Tentava fazer uma matéria mostrando o lado do governo sem estar lá, o que ajuda um pouco, mas não é o ideal. Só que como empresa, como BBC, isso não é uma preocupação porque ela tinha jornalistas do lado rebelde, como tem ainda, e tem jornalistas no lado do governo. Como empresa ela mostra os dois lados; como jornalista, eu não pude mostrar os dois lados in loco. Mas como empresa o trabalho estava sendo feito. Eu fazendo de um lado e o colega fazendo de outro lado.

Por Marcelo Ninio
Cobriu em 2011 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Ali a cobertura não tem muito como ouvir os dois lados. Não dá para você estar com os rebeldes, estar de um lado, cruzar o frontline e ir lá no governo e falar ‘E você, o que você acha?’. Eu estou fazendo claramente um lado da história e tentando equilibrar, mostrando até nas matérias que eu estava com os rebeldes porque era a única forma de estar lá. Mas quem tem que fazer o equilíbrio é a redação. Podem fazer o outro lado, mas se você está em uma situação dessas, fazendo uma cobertura como essa, é inevitável, você faz com uma desconfiança. Por exemplo, eu estava lá com os rebeldes e estava claramente de um lado da guerra. Eles tentavam ocultar que estavam fazendo execuções lá. Eu tentei ir atrás disso. Eles estavam realmente fazendo e eu fiz uma matéria sobre isso.

Cobrir de um dos lados: Já que o equilíbrio ideal, nesse caso ouvir os dois lados, o básico do jornalismo, então o equilíbrio possível é você tentar pressionar o lado que você está cobrindo. Cobrar a eles, na medida do possível, o que o outro lado está falando. Isso você pode fazer para tentar equilibrar. Isso eu tentei fazer, mas também é interessante você ver e mostrar um lado porque se você tem essa preocupação o tempo todo de equilibrar, nesse caso eu acho que é jornalisticamente interessante você mostrar o lado, claro, criticamente o tempo todo.

Área controlada pelos curdos e árabes

Por Patricia Campos Mello
Cobriu em 2015 e 2016 — Norte do país (Folha de S. Paulo)

Você vai sempre em hospital para ver como está a situação; escola não funcionava na época, estava fechada; você vai em cemitério às vezes, para ver a situação humanitária, você vai na fronteira. Na fronteira com a Turquia, onde muitas pessoas estavam tentando atravessar, você fala com o cara que cuida da fronteira, você fala com os civis. É sempre importante você falar com uma fonte oficial e civis. Você fala com a pessoa de imprensa, no caso dos curdos, do YPD, você fala com o ministro da defesa, falei com a governadora de Kobani. O fixer não me fala com quem falar. Eu digo ‘Quero falar com fulano’ e ele corre atrás para marcar.

Cobrir de um dos lados: Todo mundo sempre vai cobrir a guerra de um dos lados, sempre. Você entrou por algum lado. O pessoal que foi para Mossul, eles não está do lado do Estado Islâmico. Alguém está ali entrevistando o Estado Islâmico? Não está. Então óbvio que você está de um lado. Sempre é uma visão parcial. Do mesmo jeito eu, lá na Síria. Ou você está com o Assad, ou você está com o Estado Islâmico, ou você está com a oposição radical ou você está com os curdos. De qualquer lado que você estiver, vai estar com filtro. Óbvio que daí você vai tentar ir atrás de analistas, de observadores mais independentes para equilibrar a tua cobertura. Enquanto você está no campo, é uma ilusão você achar que não vai ser influenciável por onde você está. Um lado te deu acesso. Ou, se não, você está sentado em um hotel assistindo televisão e escrevendo. Por isso acho sempre importante ouvir civil porque eles têm menos bullshit.

--

--

Maryanna Nascimento
sahafi brazili

Jornalista recém-formada interessada na cobertura de conflitos e da violação dos direitos humanos