Cama, mesa e banho

Maryanna Nascimento
sahafi brazili
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8 min readAug 2, 2019

Fazer cobertura em um país que está em guerra não é sinônimo de fome, dias sem banho e espeluncas. Na Síria é possível almoçar em um restaurante giratório com vista panorâmica da cidade, dormir em travesseiros de plumas de ganso com roupa de cama lavada e, nas horas vagas, até comprar alguns regalos para a família ou ir a uma boate. Esses detalhes dependem de onde você está baseado e da sensação de normalidade que querem passar — se você estiver com visto, por exemplo, o governo não te deixará em uma bodega, são eles que decidem. Do outro lado do checkpoint, há outra Síria.

Área controlada pelo governo

Por Germano Assad
Cobriu o início dos conflitos, em 2011 — Damasco (Freelancer)

Sobre condições na prisão: Eu não tinha banho, era uma cela pequena, eu tenho 1,69 de altura. Não tinha janela, eu não tinha noção do tempo. Eu tinha noção (do tempo) pela refeição, que eles serviam duas vezes ao dia. Eu estava contando com uns pedacinhos de barbante que tinha na cela. Eu tinha noção por isso. Comida: um ovo cozido gelado e meia dúzia de azeitonas. Até que eles serviram uma sobrecoxa de frango com sêmola de trigo. E nesse dia foi tenso porque eu já tinha entrevistado tanta gente que havia sido preso e todos eles me falavam a mesma coisa, que você tinha que ter medo quando eles servissem boa refeição porque era para você aguentar a sessão de tortura que vinha a seguir. Eles te alimentam para bater. Eu fiquei mais dois dias e eles me liberaram.

Por Marcelo Ninio
Cobriu em 2011 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Era facílimo. Damasco tem a melhor comida do mundo. E era bem mais barato do que Estados Unidos, Europa. Não tinha falta de nada. Era maravilhoso. Fiquei em hotel 5 estrelas. Banho quente, toalha perfumada, comida da boa e paranoia 5 estrelas. Eu fiz reserva em um hotel e quando cheguei lá, não tinha lugar, e acabei ficando em um hotel que eles reservaram. Hotel excelente, mas eu fiquei em uma paranoia porque não tinha ninguém. Só tinha gente da polícia no hotel.

Por Lourival Sant’anna
Cobriu em 2012 — Damasco (Estadão)

Nunca tive nenhum problema com alimentação, tenho um organismo bem resistente e tomo cuidado também. Não como frutas como maçã, que tem a casca que a gente come e está exposta. Eu como frutas secas e castanha e não dá problema. Eu tive sorte porque às vezes as frutas secas e castanhas podem ter fungos, principalmente as castanhas. Mas só descobri isso há pouco tempo e foi uma dieta que uma nutricionista montou para mim, para essas coberturas e sabendo o que tem nesses países.

Em Damasco nunca chegou a ter problema de abastecimento, eles conseguiram garantir isso aí. Em Deera eu não comi, passei o dia sem comer, mas à noite chegava e tinha refeição. Em Damasco os hotéis tinham comida, os restaurantes é que estavam fechados, muita coisa fechada. Na verdade tinha pouco estrangeiro em Damasco naquele momento. As ruas estavam bastante desertas porque estava tendo atentados, ataques, então não tinha muito movimento. Mas esse é um hotel principal, praticamente para jornalistas, o Sham, que significa ‘Levante’.

Por Samy Adghirni
Cobriu em 2012 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Ao contrário de outras guerras, a que eu tive mais medo foi a da Síria. Eu fiquei com tanto medo que eu mandava emails muito preocupados para o jornal, quase desesperado. Eles nunca tinham me visto assim, eu me sentia muito vulnerável. O contraste — isso que é engraçado — é que eu tomava banho quente todos os dias, tinha uma cama king size maravilhosa, comia muitíssimo bem. Na Líbia, por exemplo, eu fui três vezes e eu cheguei a ficar, na última vez que fui à Líbia cinco dias sem tomar banho, sem escovar os dentes. Fedendo, calor, grudando de tão sujo, a única comida que você tem são os biscoitinhos. Você vira um bicho, mas eu me senti menos ameaçado fisicamente. Uma guerra é muito diferente da outra. Foi muito curioso.

Por Diogo Bercito
Cobriu em 2014 — Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Era um hotel simples, mas normal. Água quente, cama, internet, comida. Tinha café da manhã no hotel. Nada disso era um problema. Todos os dias eu jantei sozinho. A gente terminava de trabalhar às 15, 16 horas. Ele (o fixer) ia para casa e eu ficava, trabalhava no hotel, saia para dar uma volta, ia jantar sozinho. É uma cidade normal. O centro de Damasco — menos a região histórica — é uma região razoavelmente tranquila, desde então e ainda hoje. Tinha um restaurante famoso, perto do meu hotel que ele gira em cima, esses restaurantes que vão girando devagar. Eu sabia que tinha um kibe cru famoso nesse restaurante, que é uma coisa de que eu gosto. Então eu ia lá, sozinho, sentava, comia normal. Às vezes comia um churrasquinho grego na rua, um sanduíche. Não tinha nenhum tipo de obstáculo.

Por Yan Boechat
Cobriu em 2017 — Damasco, Homs e Aleppo (Freelancer)

Minha experiência na Síria foi muito tranquila. Era um momento muito diferente dos colegas que cobriram junto com os rebeldes. Eu não considero nem cobertura de guerra. É cobertura de conflito e tal, mas não teve ação. Sem ação. O que eu estava era fazendo quase um pós-conflito. Não é um pós-conflito mas é quase. Ver como estava o país, onde o Assad controlava e tal. Foi interessante. Eu nem fui para Raqqa agora por causa disso. Porque eu queria manter aberto esse canal lá. Se você entrar ilegalmente eles te limam.

A rede hoteleira de Damasco, da Síria, é muito boa. A Síria é uma das joias do Oriente. Damasco é a cidade mais antiga do mundo, sempre atraiu muito turista e está em um país, ao contrário de outros da região, muito secular, que sempre aceitou muito bem a diversidade religiosa e de costumes, então essa visão de um país muito fechado, muito radical, é uma Síria muito mais rural, muito mais próxima daqueles que se insuflaram contra o governo Assad. É uma Síria mais sunita, principalmente, mais empobrecida, essa é uma Síria mais conservadora. A Síria dominada pelo Assad é uma Síria muito secular e muito aberta. Isso não diminui o fato do Assad ser um ditador, que reprimiu muito o povo dele para manter o poder, mas a Síria sempre foi um país muito aberto ao turismo. Então você tem instalações turísticas maravilhosas. Eu não sei se era 5 estrelas, mas era um hotel muito legal em uma cidade antiga, num quarteirão judaico. Era uma antiga casa otomana-judia. Lindo, maravilhoso, que estava ali se segurando para sobreviver. Esperar passar o rolo todo para conseguir ressurgir. Além disso, você não tem a opção de ficar no hotel que você quer. Você tem que ficar nos hotéis do governo, que são hotéis relativamente bons e com um nível de segurança absurdo. Eles têm muito medo de que aconteça alguma coisa, principalmente você ser sequestrado. Eles têm um controle muito rígido fora de Damasco.

Área controlada pelos rebeldes

Por Tariq Saleh
Cobriu em 2011, 2012 e 2013 — Aleppo (BBC e Terra)

Quando você vai para uma cobertura, você tem que abrir mão de certos confortos. Às vezes nem tomar banho dá, às vezes você fica dois dias sem tomar banho ou leva água e toma banho improvisado. Às vezes você tem a casa de alguém, de um morador local que te oferece. As pessoas são muito hospitaleiras aqui na região. Às vezes é uma pessoa de confiança do fixer. ‘Ele está oferecendo a casa, vocês podem tomar banho’. Às vezes oferecem a casa para dormir. Às vezes a gente dorme no carro, em um hotel que tem ali, que funciona. É tudo muito relativo. Algumas vezes você tem que fazer sacrifício. Você está ali cheirando mal, há dois dias sem tomar banho, tudo para conseguir a história. O importante é terminar o teu trabalho para poder descansar e tal. Há situações variadas: depende muito do conflito, da região, depende das circunstâncias que a gente encontra onde a gente está. Na Síria atravessamos de volta para Turquia e dormimos lá, por praticidade e segurança. Mas muitos jornalistas dormiram em lugares improvisados: bases de rebeldes, ONGs locais, população local.

Comíamos onde dava. Em um país em guerra, a última coisa que eu vou me preocupar é comer em restaurante 5 estrelas. Preocupação apenas me alimentar o suficiente. Havia vezes que a população local nos oferecia um almoço feito em casa ou um sanduíche. A gente tomava cuidado com isso porque não queríamos tirar comida de quem precisa mais. Acho que é uma questão de bom senso: quando aceitar e quando recusar educadamente. Fora isso, restaurantes na estrada, biscoitos e sanduíches que trazemos desde a Turquia. Não há uma situação única.

Por Marcelo Ninio
Cobriu em 2011 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Ali a cobertura não tem muito como ouvir os dois lados. Não dá para você estar com os rebeldes, estar de um lado, cruzar o frontline e ir lá no governo e falar ‘E você, o que você acha?’. Eu estou fazendo claramente um lado da história e tentando equilibrar, mostrando até nas matérias que eu estava com os rebeldes porque era a única forma de estar lá. Mas quem tem que fazer o equilíbrio é a redação. Podem fazer o outro lado, mas se você está em uma situação dessas, fazendo uma cobertura como essa, é inevitável, você faz com uma desconfiança. Por exemplo, eu estava lá com os rebeldes e estava claramente de um lado da guerra. Eles tentavam ocultar que estavam fazendo execuções lá. Eu tentei ir atrás disso. Eles estavam realmente fazendo e eu fiz uma matéria sobre isso.

Cobrir de um dos lados: Já que o equilíbrio ideal, nesse caso ouvir os dois lados, o básico do jornalismo, então o equilíbrio possível é você tentar pressionar o lado que você está cobrindo. Cobrar a eles, na medida do possível, o que o outro lado está falando. Isso você pode fazer para tentar equilibrar. Isso eu tentei fazer, mas também é interessante você ver e mostrar um lado porque se você tem essa preocupação o tempo todo de equilibrar, nesse caso eu acho que é jornalisticamente interessante você mostrar o lado, claro, criticamente o tempo todo.

Área controlada pelos curdos e árabes

Por Patricia Campos Mello
Cobriu em 2015 e 2016 — Norte do país (Folha de S. Paulo)

Fiquei na casa da mãe do fixer, em Kobani. Eles estavam reconstruindo a casa porque tinha sido parcialmente destruída no cerco do Estado Islâmico, então tinha uma sala que ainda estava toda chamuscada e meio em ruínas. A gente dormia fora, no terraço, o que muitos fazem porque é mais fresco. É muito calor lá. Eu levei um sleeping bag e a gente dormia no chão. Tinha banheiro, aquele banheiro com um buraco no chão. Sobre alimentação, não tinha muita comida, mas a que tinha era ótima, super mediterrânea. Para eles, no cerco foi um horror. Eles necessitavam de ajuda humanitária, recebiam enlatados. Eu cheguei lá, não tinha mais o cerco, então eles me receberam — eles são muito hospitaleiros, tem uma coisa de querer receber, então pode estar na merda mas vai fazer uma puta comida para você. A hospitalidade é uma coisa dos sírios. Eles faziam berinjela com tomate, cebola, arroz e um dia tinha frango que era um super luxo, tinha sopa, umas coisas com iogurte. A gente se senta no chão, eles põem uma toalha de plástico e fica todo mundo sentado, você tira o sapato para entrar em casa. Quando a gente estava na casa dos pais dele, tinha chuveiro, eu tomava banho. Outros lugares onde era mais difícil, era lencinho umedecido.

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Maryanna Nascimento
sahafi brazili

Jornalista recém-formada interessada na cobertura de conflitos e da violação dos direitos humanos