Linha editorial

Maryanna Nascimento
sahafi brazili
Published in
5 min readAug 5, 2019

A forma como o meio de comunicação enxerga os fatos ao seu redor tem como fatores determinantes a sua política, valores e demais influências. A linha editorial, portanto, pode nortear a apuração. Mas até que ponto os jornalistas enviados para cobrir uma guerra têm a sua cobertura influenciada por isso? A maioria defende que há liberdade, mas a edição pode mudar o processo de produção da notícia na sua última fase, a de nomeação. Presidente ou ditador Bashar al-Assad? O segundo atributo, se utilizado por alguém que está em território controlado pelo governo, certamente trará problemas para o jornalista.

Área controlada pelo governo

Por Germano Assad
Cobriu o início dos conflitos, em 2011 — Damasco (Freelancer)

Nunca enviesaram matéria. Tem aquela coisa assim: terminologias. Escrevo presidente e vou ler lá na matéria publicada e está escrito ditador. Eu escrevi regime e na matéria está ditadura. Enfim, essas nuances assim de terminologia. Mas eu acho que o repórter tem que estar ciente para quem está escrevendo. Agora enviesar, sugerir que eu escreva de tal forma, ou mudar o sentido de uma frase, jamais passei por isso.

Por Marcelo Ninio
Cobriu em 2011 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu acho que não tem uma linha editorial que cubra os assuntos internacionais, principalmente nesse caso específico. As coisas eram decididas caso a caso, não posso dizer que teve alguma coisa da linha editorial da Folha que influenciou. Talvez seja tão fácil identificar nas outras áreas, mas na área internacional, nesse caso, eu acho difícil.

Por Lourival Sant’anna
Cobriu em 2012 — Damasco (Estadão)

Eu não me lembro bem qual era a linha editorial específica do Estadão em relação à Síria. Normalmente o Estadão defende a democracia, os direitos humanos, mas de fato não era importante isso para mim. Em geral, em coberturas, eu não fico lendo editorial. Eu costumo ler. Eu leio o material das agências internacionais, dos jornais que estão cobrindo bem aquilo que também estou cobrindo. Em geral eu não leio os jornais brasileiros. De fato, a linha editorial do jornal ou do meio para o qual eu trabalho não tem muita importância para o meu trabalho de repórter.

Por Samy Adghirni
Cobriu em 2012 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu tinha uma espécie um pré-acordo para entrevistar o Bashar. O Bashar naquele momento tinha interesse em falar com o Brasil. Na véspera do meu embarque, os sírios me avisaram ‘Traz o terno’. Porra, fiquei encantado. ‘Pode deixar, vou levar o meu melhor terno’ […] Então eu saí para viajar no dia em que eu publiquei a minha primeira matéria, uma geral sobre o clima em Damasco. Só que a Folha usa ‘ditador’. Quando a gente fez uma pausa no caminho para a cidade do Bashar e o negócio estava rendendo, toca o telefone do francês. ‘Oi, senhora Abir’, ele fala. Depois se vira para mim e fica pálido. E eu ‘Caralho, o que é isso?’. Na hora entendi. Foi porque saiu a matéria. O francês só ouvia. ‘Tá bom, ok, sem problema’. Ele olhou para mim e falou ‘Olha, eles viram a sua matéria. Eu não sei o que você escreveu mas eles estão furiosos com você. Você tem que voltar imediatamente para Damasco e a sua licença de fazer matéria fora de Damasco está cassada’. Voltamos, foi super tensa a viagem. Eu me apresentei no escritório da Abir de manhã cedo. Ouvi um monte, ela estava furiosa. ‘Você traiu a nossa confiança, como você ousa chamar o seu anfitrião de ditador?’. Hoje eu conto rindo mas eu estava apavorado. Ela falou ‘Nós não vamos te expulsar porque você é brasileiro, país amigo, mas não conte para gente para nada. Esquece a entrevista com o presidente. Esquece autorização para fazer matéria no hospital militar. Esquece tudo… Você traiu a nossa confiança’. Teve um impacto muito negativo e eu deixei de entrevistar o presidente por causa desse nome. Mas fale o que quiser, a Folha — digo isso também do ponto de vista da política — não mexe em texto. Editorialmente, não.

Por Diogo Bercito
Cobriu em 2014 — Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

A gente tem que ter em mente que cobertura internacional é mais sensível do que cobertura de política nacional. A Folha não tem interesses, nenhum jornal tem interesses na Síria. Não tem nenhuma relação entre o jornal e o governo sírio. Não tem esse tipo de preocupação. O que me afeta? A Folha tem uma política clara de moralidade. Eu sei que é a minha obrigação, pelo jornal em que trabalho, de ouvir todos os lados. Não seria razoável ir à Síria e não ouvir a oposição, ouvir o governo. Enfim, nesse sentido me afeta nisso porque a Folha a gente tem o compromisso de ouvir o outro lado. Eu sei que se eu não fizer, eu vou ser cobrado depois. Nesse sentido, sim; político, não. A Folha se refere a Bashar al-Assad como ditador. É uma decisão política, então sempre que eu escrevo um texto sobre a Síria me refiro a Assad como ditador. Diferente do New York Times que chama ele de presidente.

Por Yan Boechat
Cobriu em 2017 — Damasco, Homs e Aleppo (Freelancer)

Eu tenho uma visão geopolítica um pouco distinta do que acontece no Oriente Médio da Band, talvez um pouco mais. Mas sempre foram muito respeitadores. Nunca tivemos uma questão complexa de a gente não concordar, então foi super tranquilo. Eu também nunca tentei editorializar as coisas. Pelo contrário, tentei apenas fazer relatos e mostrar o que estava acontecendo, tentando editorializar o mínimo possível. Houve um respeito mútuo.

Área controlada pelos rebeldes

Por Tariq Saleh
Cobriu em 2011, 2012 e 2013 — Aleppo (BBC e Terra)

A BBC tem uma linha editorial bastante forte e estrita, a apuração rigorosa. Não vou dizer que sempre funciona, já teve falhas, isso ocorre em toda empresa. Mas tem apuração mais estrita, a preocupação com a objetividade, que é muito subjetiva e relativa. A questão de fazer um material não duro, não frio, mas também humano, para dar teor, mostrar o conflito, os eventos de diferentes ângulos, de diferentes perspetivas. Então o sabor é esse. No sentido de fazer o ouvinte, telespectador ou leitor sentir onde esses jornalistas estiveram, de criar uma conexão com as pessoas que estão vivendo aquele conflito, no caso da Síria. A BBC tem um livro da linha editorial que é publicado, você tem a tua bíblia de BBC que está online, você pode baixar, ou você tem ela em livro. O Terra nunca teve isso, mas eles seguem um consenso, o jornalismo básico. Ter uma certa linha editorial que acumula todo o jornalismo mundial. Tem uma variação, aí é da empresa, mas no Terra eu discutia com os editores ‘Vamos fazer dessa maneira’, daí o editor ‘Contanto que seja assim, vamos tentar manter nessa linha’, então é uma coisa muito de seguir o bom senso.

Área controlada pelos curdos e árabes

Por Patricia Campos Mello
Cobriu em 2015 e 2016 — Norte do país (Folha de S. Paulo)

(Chamar Bashar al-Assad de ditador) atrapalha todas as pessoas da Folha porque a porcaria da embaixada lê e dá a maior dor de cabeça. Eles não querem dar visto de jornalista. ‘Você chama o nosso presidente de ditador’. Isso com certeza não facilita a nossa vida com relação a contatos do governo sírio, mas ao mesmo tempo, o cara é um ditador. Vai escrever o quê? Não tem muito o que discutir. Sobre a linha editorial, a liberdade é 100%.

--

--

Maryanna Nascimento
sahafi brazili

Jornalista recém-formada interessada na cobertura de conflitos e da violação dos direitos humanos