Nota introdutória

Maryanna Nascimento
sahafi brazili
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3 min readAug 2, 2019

Na secular Síria, a história é costurada e desmanchada desde 2011. São 185.180 km² de um país que está em retalhos por causa de uma guerra civil: territórios mudam de mãos, atores entram e saem de cena e mais de cinco milhões de pessoas se refugiam em outros países. Alguns fazem o caminho de volta enquanto este prefácio é escrito. Para quem está do lado de cá, o que chega de informação vem, sobretudo, de matérias de agências. A tarefa de personificar a luta dos sírios, por outro lado, coube a poucos jornalistas. Neste livro de relatos, a voz — que às vezes parece uníssona e outras desarmônica — vem dessas pessoas. Oito brasileiros que atravessaram a fronteira em busca de histórias do início dos conflitos até 2017. Sahafi brazili não se propõe, porém, a recontar essas vivências que ontem estamparam os jornais e a televisão. O nome do livro indica o seu próprio teor: é sobre e para os ‘jornalistas brasileiros’ (tradução do árabe). Ao longo de dezoito capítulos, eles contam desde o processo de pedido de visto para acessar o território controlado por Bashar al-Assad até as condições de produção. O período e quem controlava a área em que estavam — forças pró-governo, rebeldes e curdos — , diz muito. Ao final das páginas, se o leitor tiver alguma dedução, o mérito é próprio da sua postura analítica. O meu papel foi, acima de tudo, o de condução.

Prefácio do autor

A primeira vez que parei para pensar sobre a Síria foi em janeiro de 2016. Estava à passeio na Turquia e cheguei a ficar a cerca de 500 quilômetros do país quando estive em Göreme. Durante a viagem, recebi mensagens de alerta. Diziam que não era seguro, afinal eu estava sozinha e os territórios eram muito próximos. Segui. Já em Éfeso, alguns dias depois de ter saído de Istambul, comprei o jornal Sabah (‘Manhã’, em turco). Na manchete principal, havia a chamada ‘Teröre karşı tek yürek olalım’. ‘Vamos ser um coração contra o terrorismo’, traduziu um host local. A matéria falava sobre um ataque terrorista próximo à Hagia Sophia e Blue Mosque, basílica e mesquita no centro turístico da cidade. Foram 11 mortos e 15 feridos. De acordo com o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, o ataque foi feito por um jihadista do Estado Islâmico. A acusação é de que ele havia saído do país vizinho, que estava em guerra. Naquela época, eu não me importava com a guerra. Hoje, escrevo sobre ela.

Certo dia, cerca de seis meses depois, me deparei com uma reportagem de 2014 recheada com relatos de jornalistas que se afastaram da Síria porque estavam sendo perseguidos por jihadistas. Logo no lead, a frase “Na guerra, a primeira vítima é a verdade”, de autoria questionável. O despertar e sentimento de incômodo, se me recordo bem, foi o mesmo daquele 12 de janeiro, dia do ataque. Nesse segundo caso, o que me afligia é que histórias estavam deixando de ser documentadas. Foi nesse momento que parei para refletir além e aquém do meu umbigo: do lado de fora haviam jornalistas se esforçando para contar sobre uma realidade que até então eu ignorava. Me dei a chance de mergulhar — ainda que na teoria — no mundo da guerra. Na guerra da Síria. Assisti documentários, vi inúmeras fotografias, li alguns livros e quanto mais eu pesquisava, mais questionamentos surgiam. As respostas às dúvidas não chegavam. Quem era James Foley, Gilles Jacquier e Mik Yamamoto, três dos mais de 200 jornalistas mortos durante cobertura de um confronto que já dura seis anos? O que leva esse jornalistas a irem para a guerra? Qual a rotina produtiva quando se cobre um conflito? Quais as implicações de se cobrir em uma área dominada por Bashar al-Assad, pelos rebeldes ou curdos? As duas últimas inquietações deram lugar a todas as perguntas e respostas que estão neste livro. Agora posso dizer que decifrei uma parte dessa realidade.

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Maryanna Nascimento
sahafi brazili

Jornalista recém-formada interessada na cobertura de conflitos e da violação dos direitos humanos