O papel na guerra

Maryanna Nascimento
sahafi brazili
Published in
7 min readAug 5, 2019

A maioria discorda que ter feito esta cobertura mudou o curso da história. Outros acreditam que o papel foi o de registro. Em todos os casos, a assimilação dos jornalistas sobre o seu papel na guerra da Síria se volta para a finalidade do jornalismo: testemunhar e compartilhar algo novo para quem está do outro lado, se agarrando muitas vezes ao seu papel social. Essa construção da identidade não surge à toa, ela vem do imaginário social, passa pela sociedade e se reflete no próprio discurso do profissional. O papel do jornalista é fazer jornalismo.

Área controlada pelo governo

Por Marcelo Ninio
Cobriu em 2011 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Papel do jornalista, em qualquer situação, é mostrar o que está acontecendo. Tentar fazer o que as pessoas não podem fazer: que é ir no lugar.. E nesse caso da Primavera Árabe os jornalistas tiveram um acesso a coisas que não tinham, porque eram países muito fechados. Estar lá, entender o que está acontecendo, tentar checar com a realidade, com o olhar de quem está lá e poder contar, é muito difícil. Eu acho que seria pretensioso cumprir o papel, mas eu acho que sim, eu acho que eu fiz… É muito frustrante e muito doloroso porque você está vendo aquela destruição toda e porque é imprevisível a cobertura de guerra. Você não vai planejar o que vai fazer nos próximos dias. Não dá. Cada dia muda muito, então tem uma hora que você tem que ir embora, tem que sair e aí você não pode fazer as coisas que você gostaria de fazer.

Por Lourival Sant’anna
Cobriu em 2012 — Damasco (Estadão)

O meu papel em qualquer cobertura é de o contar as histórias das pessoas, das pessoas comuns, principalmente. Chegar até as pessoas comuns, que são parecidas com as audiências dos veículos para os quais eu trabalho, nesse caso o Estadão, e tentar ser o mais fiel possível em relação à história dessas pessoas, as razões pelas quais as pessoas sentem e fazem o que fazem. Eu acho que esse é meu trabalho e às vezes de análise, de contextualização história. Eu me vejo como uma ponte entre os fatos, o que está acontecendo e a audiência. Tento interferir o mínimo possível ao contar essas histórias.

Por Samy Adghirni
Cobriu em 2012 — Damasco (Folha de S. Paulo)

O meu papel foi o papel de todo enviado especial que é trazer relato em primeira mão de uma situação de muita importância estratégica, importância ambiciosa. Você trabalha em um veículo que acham por bem mandar alguém para ter um olhar exclusivo, um olhar sob uma determinada história. Então você trate aí, dentro das suas limitações, muitas limitações — de orçamento, de circulação, de pressão, de acesso à informação, em um contexto muito adverso — faça o seu melhor para trazer uma matéria palatável, que valia a pena o investimento. Para o leitor ler e dizer ‘Puta, que interessante essa matéria que eu vi na Folha’. Esse é o meu objetivo. Para o cara ver, nem que seja alguém que por acaso viu a TV Folha, e dizer ‘Nossa, eu vi um vídeo muito doido sobre uma cidadezinha da Síria que está na divisa lá entre os rebeldes e o governo e achei muito legal’. Esse é o meu papel. Não vejo nem que outra resposta poderia dar. Mas às vezes você faz isso bem e outras fazem isso não tão bem. Eu acho que dentro da dificuldade que foi essa cobertura, muito difícil, começou mal, na primeira matéria o governo já rompeu comigo, eu acho que eu consegui trazer alguma coisa e até são matérias que trouxeram algum diferencial, até aquele momento.

Por Diogo Bercito
Cobriu em 2014 — Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu não vejo isso como uma coisa específica na Síria, acho que eu cumpri com o papel que eu cumpro diariamente com a minha função, que é contar ao leitor uma coisa que ele não sabe. O nosso leitor não vai à Síria, não tem acesso às informações, não lê os jornais sírios. Ele não tem esse detalhamento. Então eu acho que eu cumpri um papel social nesse sentido. Eu fui capaz de estar em um local que o leitor tem interesse, conversar com as pessoas — entrevistar o chanceler sírio, que é uma pessoa super importante, e ouvir dele o que está acontecendo, qual a visão do governo, o que avaliam, o que vão fazer. Acho que isso é uma informação fundamental para o leitor. Poder contar ‘Olha, em Damasco é assim. É um lugar que você dorme com o vidro da janela tremendo, o lugar que bairros inteiros em Homs foram destruídos. É um país que para ir de um ponto A a B você precisa de uma autorização militar’. Acho que esse tipo de informação tem um papel social importantíssimo para que as pessoas entendam melhor a guerra. Se a gente consegue contar a visão do governo, das pessoas que vivem embaixo do poder do governo, a narrativa das pessoas que moram no campo de refugiados, isso não tem preço.

Por Yan Boechat
Cobriu em 2017 — Damasco, Homs e Aleppo (Freelancer)

Só registrei a história, não tem papel algum. Não acho que muda nada. Acho que o nosso papel como jornalista muda muito pouco a realidade das coisas. Em geral a gente só faz um registro histórico. Eu acho que essa é a nossa maior missão. Eu acho que é muito arrogante achar que a gente pode, de fato, alterar o rumo do mundo. Não tenho muita fé nisso não. Acredito que tudo isso precisa ser registrado. Precisa ser muito registrado. Nós, jornalistas, fazemos o rascunho da história. Somos as testemunhas que vão lá retratar em primeira mão o que a gente vê. E mais do que isso, retratar com os valores que nós temos. Então a visão de um brasileiro e a visão de um americano são distintas diante daquele cenário. É importante que nós também possamos relatar o nosso ponto de vista e como a gente vê o mundo, aquilo que está se passando diante da gente. Então eu acho que o meu papel, pelo menos, como eu me vejo, são duas coisas: uma, tentar mostrar para além da propaganda e além do senso comum e fazer um registro histórico disso. Eu acho que as pessoas precisam saber o que está acontecendo nesses lugares, é claro que elas precisam saber. Mas isso não significa que necessariamente esses relatos sejam capazes de alterar significativamente o curso da história. Apesar de fazerem a gente acreditar que sim, eu tenho a impressão de que não. Que o que aconteceu em Aleppo, o que aconteceu em Mossul já aconteceu em vários lugares e vai continuar acontecendo. Está acontecendo agora na Palestina. A ideia de que o mundo caminha inexoravelmente para algo mais justo, é algo que eu realmente não acredito.

Área controlada pelos rebeldes

Por Tariq Saleh
Cobriu em 2011, 2012 e 2013 — Aleppo (BBC e Terra)

Você viu uma revolução começar com tanta paixão, uma causa justa se você for pensar; mas a coisa se tornou muito complexa e frustrante para as pessoas de lá. E frustrante para os jornalistas porque não apenas eu, mas outros colegas, a gente parou e se deu conta ‘Poxa, a gente está fazendo tanta matéria, tentando mostrar os crimes dos dois lados — porque a gente não falava só o governo sírio, mas também os rebeldes, os jihadistas, os crimes que cometiam — mas a comunidade internacional não fazia nada para resolver isso’. Então era uma frustração que veio até recentemente. Parecia que quanto mais a gente cobria, ano após ano, nada mudava. É aquela coisa ‘O que eu estou fazendo? não estou ajudando em nada’. Passei por um pouquinho de stress pós-traumático e depressão no sentido de que eu não sei mais o que eu estou fazendo aqui, eu não estou ajudando as pessoas. Vendo tanta morte, vendo pessoas sofrendo. Depois me dei conta de que a melhor maneira de fazer o meu trabalho é continuar fazendo o meu trabalho. Eu não tenho como ajudar todo mundo, mas se eu conseguir ajudar uma pessoa, eu já fiz o meu trabalho, o jornalismo já se justifica. Tanto é verdade que pela TV3 a gente fez uma matéria com um rapaz sírio que estava paralisado na época que ele levou um tiro de um franco-atirador e tinha um sonho de estudar no exterior, de ter um tratamento médico no exterior. Por acaso, lendo a nossa matéria, o governo espanhol deu uma bolsa de estudos para ele e também vai oferecer tratamento médico melhor. Ali eu me dei conta que isso é o que vale do jornalismo. Talvez não tenha como ajudar a coletividade toda no sentido mais amplo, mas mesmo assim é possível no sentido de que quando você expõe as atrocidades você move os canais políticos e diplomáticos para que alguém faça alguma coisa, nem que seja um pouco. Mas do ponto de vista individual ali eu acho que eu atingi um objetivo. Mas vamos dizer assim, parte daquela frustração se foi, porque se justificou. Me dei conta de que o trabalho do jornalista ainda é muito relevante e se não fosse pelas coberturas que eu e meus colegas fazem — jornalistas em geral, tanto os estrangeiros quanto os locais, principalmente os locais, que arriscam a sua vida ainda mais — o conflito seria ainda pior.

Área controlada pelos curdos e árabes

Por Patricia Campos Mello
Cobriu em 2015 e 2016 — Norte do país (Folha de S. Paulo)

A nossa capacidade de influenciar alguma coisa é nula, ainda mais escrevendo em português, mesmo que eles traduzam algumas coisas, o que aumenta um pouco o alcance. Por outro lado, é aquela história que é um clichê, mas é importante: você bota a cara nas coisas. Você faz uma matéria mostrando que daqui saiu o Alan Kurdi, que ele gostava da Vila Sésamo, ele tinha um brinquedinho que era assim, o avô dele dirigia um caminhão, a casa dele era assim assado, o pai dele tinha uma barbearia. Você vai prestar muito mais atenção nisso e você vai ter muito mais empatia com refugiados de entender por que cazzo que o cara está saindo e enfrentando tudo isso. Eu acho que nesse sentido, para o nosso público, eu acho que aumenta a empatia. Muito mais do que você simplesmente estar reproduzindo matéria de agência internacional — que são ótimas e que têm uma enorme experiência — , mas o fato de ir lá e conseguir contar as histórias e a cara das pessoas, eu acho que isso faz uma diferença, mas isso não vai mudar nada na guerra da Síria.

--

--

Maryanna Nascimento
sahafi brazili

Jornalista recém-formada interessada na cobertura de conflitos e da violação dos direitos humanos