Pautas, metas e deadline

Maryanna Nascimento
sahafi brazili
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10 min readAug 2, 2019

A guerra cria histórias e elas podem se tornar pauta. Mas quem sabe que histórias são essas? Só quem pode vê-las de perto. Não à toa, na maioria dos casos, os repórteres in loco têm mais autonomia (consentida pela política da empresa) para fazer a sugestão do que deve ganhar destaque. Gatekeepers? Embora, diante das contestações, o prestígio da teoria não seja o mesmo da década de 50, na guerra da Síria fica claro que a subjetividade do jornalista é um dos portões que a notícia encara até chegar a sua publicação. Esse conceito individual carrega as marcas de crenças e valores — Tariq Saleh nasceu no Líbano, Germano Assad tem avô sírio e Samy Adghirni é filho de marroquino; a cobertura foi em um país árabe — , o conhecimento processual e até a própria função dentro da organização jornalística. Da redação, há milhas de distância, a periodicidade, a tecnologia do produto e o tipo de contrato entre o jornalista e a empresa são determinantes para indicar as metas de produção e o deadline — freela requer pautas diferentes para cada cliente, por exemplo, o que requer uma rotina mais apertada. Em outros casos, a atualidade continua sendo uma qualidade do jornalismo, mas isso não quer dizer que há pressa — até por questões de segurança. A guerra não acabará em horas, é algo em processo. A viagem, sim.

Área controlada pelo governo

Por Germano Assad
Cobriu o início dos conflitos, em 2011 — Damasco (Freelancer)

Eu tinha uma ideia de pauta, mandava a ideia e eles aprovavam e eu fazia. Eu tentei por muito tempo um acordo de produção semanal, um contrato que me desse uma estabilidade para eu pelo menos ficar tranquilo com relação à conta básica. Eu tentei isso, era o que eu tentava com todos, mas não rolava.

Por Marcelo Ninio

Cobriu em 2011 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Sobre pautas: Eles me informavam sobre as coisas que estavam acontecendo e tal, mas também o que estava lá, o que estava acontecendo lá era um olhar, todo mundo queria saber o que tava acontecendo dentro, então eu tinha mais informação do que eles. Eles tinham informação sobre eventos diplomáticos, sei lá. Mas o mais interessante era o que estava acontecendo lá dentro. Então eu acho que eu me pautei em 90% das matérias.

Sobre metas de produção: Nessa situação de guerra? Não, eu dizia o que eu

tinha. Às vezes eles sugeriam uma matéria, mas eu estava em uma situação muito extrema, então era muito difícil até de mandar matéria. Essa era uma das maiores angústias, as pessoas perguntam ‘Como é cobrir a guerra?’. Pior é quando não pode mandar a matéria. Você tem bala, explosão, riscos mil.

Mas o pior é imaginar que você fez a matéria e não consegue mandar a matéria. Eu mandei uma por mensagem de texto. Hoje em dia isso aí ficou comum, mas naquela época… Mas teve um dia que não teve mais nada, não teve mais luz, não teve mais nada em Aleppo, então o jeito foi… Foi ótimo. Não tem como mandar, relaxa. A gente jantou, ouviu música, foi ótimo. Os meninos fizeram arroz, o que tinha lá, não tinha quase nada. Era por internet que enviava. Nesse lugar que a gente ficava, que era um lugar que tinha internet. A internet era muito ruim, mas tinha. Então eu mandava pela internet. Mas não dava para ficar navegando, olhando na internet. Usava só para mandar matéria. Falava no telefone com a redação.

Por Lourival Sant’anna
Cobriu em 2012 — Damasco (Estadão)

Sobre metas de produção: A gente tem um ritmo normal de todos os dias trocar e-mails sobre o que tem para o dia e como você está em uma cobertura dessas, de um lado existe muita expectativa do jornal que você produza, mas existe também muita compressão. Então é uma cobertura difícil. Não há uma cobrança ou uma pressão para produzir. Você vai explicando a situação, mas eu conseguia mandar matéria todos os dias. Eu faço questão quando estou em cobertura assim, principalmente quando eu era um funcionário, empregado do Estadão, tinha um salário, então eu tinha um ponto de honra que era mandar matéria todos os dias independente do que acontecesse. Mas isso era mais uma posição minha. Tem o William Waack que foi meu antecessor lá nessa posição no Estadão. Ele fala que o enviado especial tem que cair de pé. No primeiro dia tem que mandar matéria e eu sou um pouco dessa linha dura. Mas aí são coisas pessoais. Pessoas que têm um ritmo mais tranquilo, que também é legítimo.

Depois de um episódio em que o meu minder reclamou da matéria que eu fiz, que eu fui numa manifestação, eu segurei várias matérias. Várias matérias eu deixei para publicar só depois que eu saí da Síria, só depois que eu voltei. Eram matérias mais comprometedores, que citavam pessoas na Síria.

Sobre pauta: O jornal pode fazer pedidos, dar sugestões porque eles estão acompanhando as coisas pelas agências de notícias e pelos jornais de outros países que têm uma cobertura assim. Então eles dão muitas sugestões. ‘Eu vi tal coisa, você acha que daria para fazer alguma coisa nessa direção?’ Mas são sempre sugestões assim, pelo menos na minha relação. É claro que depende muito da relação do repórter com o jornal. Eu tinha sido editor chefe do Estadão, então a minha relação com os editores era mais horizontal. Não era hierárquica. Eu não mandava neles e eles não mandavam em mim. É claro que sim, se houvesse um pedido da direção, mas é muito raro a direção querer intervir na cobertura, nesses detalhes do dia a dia. Porque às vezes tinha intervenção da direção no sentido ‘volte’ ou então ‘fique mais’’, coisas assim, mas não o detalhe da pauta. Isso é acertado com o chefe de reportagem da editoria internacional que chega de manhã e tal e às vezes aí no fim do dia é acertado já o tamanho, com o editor, com quem está fechando. Mas desse jeito assim. No decorrer do dia, na medida do possível a gente troca informações.

Por Samy Adghirni
Cobriu em 2012 — Damasco (Folha de S. Paulo)

O repórter de jornal tem muito mais autonomia do que o de agência. Você pensa na pauta, executa a pauta, escreve a matéria e manda a matéria. Quando eu estava em ambientes muito difíceis, o Irã e Oriente Médio, eu digo sem falsa modéstia, o meu forte como repórter é ser o repórter de rua do Oriente Médio. Eu falo árabe. Eu aprendi um pouco de persa. Viajei muito pela região, conheço os códigos, porque eu mesmo sou muçulmano. Então eu chego mais longe que os colegas. Entendo mais rápido o que está acontecendo. Tudo isso faz com que o jornal me desse muita autonomia, decidir para onde vou, o que que faço. Em um situação dessas, um jornal brasileiro, com chefes que nunca puseram o pé ali. Eles também ficam com medo que te aconteça alguma coisa. Eles te dão carta branca, é uma coisa muito legal. Agora você tem que assumir as suas escolhas. Se der alguma coisa errada, foi você quem quis ir. Você tem ideias antes de ir. Você faz o plano de voo. Você não diz ‘Eu vou para a Síria, me paga a viagem’. ‘Quero ir para a Síria e meu enfoque principal é Damasco, tem saído pouco na mídia, quero dar uma olhada na economia, nas milícias de voluntários…’. Algumas coisas dão certo. Outras não dão certo e chegando lá você acaba fazendo coisas que você não tinha previsto. Você vê também dificuldades que você não tinha antecipado. Então você sempre está fazendo escolhas.

Por Diogo Bercito
Cobriu em 2014 — Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Sobre pautas: Geralmente o que eu faço nessas viagens? Eu faço uma série de propostas. Um cardápio, como a gente chama. ‘Ah, eu estou indo para a Síria, o meu plano é este: quero fazer uma reportagem sobre a situação, eu quero fazer uma reportagem sobre o campo de refugiados de Yarmuk, eu quero entrevistar alguém do Ministério do Exterior, quero falar com a oposição’. Foram algumas das coisas que eu fiz lá. Às vezes o editor fala ‘Legal, mas seria legal também você falar com um escritor; ao invés de falar com a oposição; por que você não fala com esse ativista?’. É um processo nesse sentido, mas geralmente eu faço primeiro a proposta porque são geralmente as linhas gerais do que vai acontecer. Porque, claro, sou uma pessoa que tá lá, sou uma pessoa que acompanha o tema. Acho que é um processo natural.

Sobre deadline: Nesse caso, o interesse de todo mundo é que saia logo. Imagina, é um grande tema de 2014. É um tema volátil. Coisas que você investiga em uma semana talvez não seja relevante. Sei lá, se eu tivesse feito toda a apuração, voltasse a Jerusalém e tivesse um ataque químico, todo o meu texto mudaria. Então existe uma pressa inerente mas ninguém nunca me diz em geral ‘Você precisa entregar até…’. É tudo negociado. Nessa viagem em específico a gente sabia de antemão que algumas coisas não agradariam o governo. Normal, estamos cobrindo um conflito e tem o lado do governo, dos rebeldes, o lado dos ativistas, da oposição. Como é uma posição delicada, eu até preferi que a gente não publicasse nada enquanto eu estava lá. Me pareceu razoável porque eu era a pessoa que estava em contato direto com o governo, que ia pro Ministério pedir um papel; eu entrevistei o vice-chanceler pessoalmente. Então me pareceu contraprodutivo que eu publicasse um texto dizendo ‘Ditadura síria mata centenas’. Eu acho que esse tipo de cobertura não tem pressa, tem que sair durante a sua estadia e às vezes também não convém. Eu devo ter voltado em uma segunda e publicado na quarta. Foi o tempo de voltar a Jerusalém e escrever a reportagem.

Por Yan Boechat
Cobriu em 2017 — Damasco, Homs e Aleppo (Freelancer)

Sobre pautas: Ninguém me pautava, eu mesmo me pautava. Eu procurei algumas pessoas que eu sabia que estavam lá e eu tinha interesse em conversar. Outras ideias de pauta surgiam no meio do caminho. Então tinha de tudo um pouco. Várias pautas que eu queria fazer não funcionavam, outras que eu não esperava fazer, funcionavam muito bem. Sobre metas de produção: Essa é uma equação super complexa, algo que eu preciso melhorar. Dependendo da matéria, posso cobrar desde U$ 500 a U$ 3 mil. Depende do nível de complexidade que ela for exigir. Mas em geral eu consigo pagar todos os custos e ter lucro. Se eu tiver na estrada sempre, eu consigo fazer grana legal. Quando eu estou no Brasil, não. Então esse é um problema. Dá para ir bem. Poderia ser mais, mas aí tem as escolhas: onde eu quero publicar, onde eu não quero publicar. Isso tudo vai influenciar na quantidade de dinheiro que você vai fazer. E também da sua capacidade de conseguir produzir, que às vezes é pequena. Tu não consegue fazer muito mais do que uma matéria para jornal e outra para TV. As matérias são diferentes, não pode fazer a mesma matéria.

Área controlada pelos rebeldes

Por Tariq Saleh
Cobriu em 2011, 2012 e 2013 — Aleppo (BBC e Terra)

Sobre pautas: Para o Terra era eu que propunha, é escrito, então eles não tinham a cultura de cobrir toda hora, sempre. Se eu for fazer um pacote legal, com histórias interessantes, eles topam. A BBC, claro, pelo canal que é, tem uma necessidade de material constante porque é um canal 24h, a própria BBC Brasil que eu já aproveitava e fazia para eles porque foi onde eu comecei. A BBC como um todo sempre tem, precisa de material, precisa de coisas interessantes. Os editores muitas vezes falam ‘Olha, a gente tá a fim de que vocês vão para a Síria, Iraque ou Líbia. Vê o que vocês podem conseguir aí interessante’. Aí a gente faz uma pesquisa ‘Olha, tem essa história aqui, tem essa outra aqui’. Duas, três, já convencem os editores a investirem nessa viagem. Algumas vezes há situações em que os editores já sabem o que querem. Eles falam ‘E se a gente fizesse uma história, uma série de histórias sobre sei lá, os refugiados que perderam as suas casas e estão ali na fronteira com a Turquia; a situação das mulheres, das crianças, dos homens que não têm como conseguir dinheiro então eles trabalham e acabam entrando para as milícias para poder ter um salário, sustentar as famílias’. Ó, já tem três histórias. Às vezes os editores já sabem. ‘Vamos lá então’. Só que no meio do caminho às vezes você descobre mais uma outra coisa interessante ou às vezes fala para eles ‘Essa não vai rolar, mas tem essa para substituir’. O que vocês acham?’ Ah, legal, vamos lá. Então é muito relativo.

Área controlada pelos curdos e árabes

Por Patricia Campos Mello
Cobriu em 2015 e 2016 — Norte do país (Folha de S. Paulo)

Sobre deadline: Você vai dando retorno. ‘Estou aqui, estou fazendo isso’. Inclusive por segurança, para saber se está tudo bem. Não é sempre que dava para ligar porque lá era muito complicado telefone. Tem lugares que pegavam o chip turco, outros que pegavam iraquiano. O chip sírio eu nem comprei porque estava uma ‘merda’. Eu ia falando ‘Agora eu tenho tal matéria para mandar’ e aí eu ia avisando quando tinha alguma coisa. Claro que se acontecesse algo que fosse breaking news, eu tinha que mandar na hora. Então isso tudo depende. Sobre pautas: Eles não pautam. Você sai com algumas ideias de pauta. Eu fui para lá e a pauta que eu ia fazer era o exército feminino das curdas. Só que aconteceu tudo aquilo: eu fiquei sem fotografia, sem fixer, em uma roubada, e tive que mudar tudo o que eu ia fazer. Mudar a cidade, mudar tudo. Óbvio que você vai nas coisas obrigatórias — como está o conflito, como estão os civis, falta comida, vai no hospital — e vão surgindo coisas no meio do caminho. Eu tinha essa ideia da pauta das soldadas curdas que não deu para fazer, então falei ‘Vou fazer a dos avós do Alan Kurdi’. E no meio do caminho surgiram várias coisas.

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Maryanna Nascimento
sahafi brazili

Jornalista recém-formada interessada na cobertura de conflitos e da violação dos direitos humanos