Logística

Maryanna Nascimento
sahafi brazili
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6 min readAug 2, 2019

Em uma cobertura como a da guerra da Síria, a logística também deve ser um fator considerado no momento do planejamento. Entrar em um táxi, abrir o mapa e apontar para onde quer ir? Não é assim que as coisas costumam funcionar. Diante do que a cobertura exige, o jornalista passa a ser também um empreendedor, afinal precisa negociar e gerir o próprio trabalho. No caso em questão, a insegurança requer um motorista que conheça o território e esteja disposto a correr riscos. É preciso, também, estar preparado para os checkpoints — independente de qual lado se está. Durante a fiscalização vale, à propósito, falar até de futebol caso haja liberdade para isso. Ronaldo, Pelé, Robinho e Neymar. Há quem diga que certos nomes servem como uma senha.

Área controlada pelo governo

Por Germano Assad
Cobriu o início dos conflitos, em 2011 — Damasco (Freelancer)

Cada caso era um caso. Tinham regiões que eram tensas de acessar e com muito checkpoint. A cada local era um planejamento e uma história diferente. Eu estava querendo ir para a região de Deir ez-Zor na fronteira com o Iraque porque estava fazendo uma matéria sobre a diferença das armas que entravam na Síria via Líbia e via Iraque e queria conversar com um líder tribal. Fiquei muito tempo pensando no que eu falaria no

checkpoint para justificar a minha ida para um lugar desses. Aí eu vi que no caminho tinham muitas piscinas. Na Síria você não tem condomínio clube, como aqui no Brasil. Então um hábito muito comum deles, é que há pequenos clubes em vários lugares, onde se paga uma diária e pode brincar na piscina, pode jogar bola, fazer o que você quiser. Então eu vi que nessa região tinha muitos pequenos clubes. Então a gente pegava uma toalha de banho, uma mochila de turista e ia. No checkpoint paravam a gente e dávamos a nossa versão. Deu certo em todas as vezes, mas em cada região era uma estratégia diferente.

Por Marcelo Ninio
Cobriu em 2011 — Damasco (Folha de S. Paulo)

Motorista era mais difícil porque tinha que ser uma pessoa disposta a correr risco. Nesse caso, não pode simplesmente ir na rua, entrar no táxi e dizer ‘Toca para a guerra’. Em Damasco estavam tentando passar uma imagem de normalidade mas eu sabia que no subúrbio o ‘bicho estava pegando’. Eu queria ir lá e achei um motorista curdo que estava disposto a me levar e a gente acertou o preço. Só que eu passei por várias barreiras. A primeira é um daqueles exemplos de como ser brasileiro me ajudou. O cara parou o carro, perguntou para o motorista sobre o documento e aí olhou para mim e o motorista falou ‘jornalista brasileiro’, sahafi brasili. A gente passou a primeira e eu falei para ele: ‘Na próxima, quando o cara parar, não fala ‘sahafi’, não fala ‘jornalista’. Fala ‘brasileiro’. Eles adoram o Brasil. Foi assim que a gente passou as barreiras. Ele falava ‘brasileiro’. O cara olhava para mim, eu fazia um ok, falava ‘Ronaldo’ e aí até dava o passaporte. Tinha o carimbo de jornalista, mas eles deixavam passar e eu consegui chegar até o centro dos protestos assim.

Por Lourival Sant’anna
Cobriu em 2012 — Damasco (Estadão)

Geralmente a gente pegava táxi, mas o minder estava junto. Em tese eu não poderia me transportar sem ele, mas eu fugi. Falei que ia estar com o embaixador — eu tinha combinado com o motorista do embaixador, porque ele morava em um bairro que é popular, onde eu fui e fiz uma reportagem. Eu fui com o carro dele, não era o carro do embaixador. Até porque na época nem o embaixador ficou sabendo, foi escondido até do embaixador porque não poderia fazer isso, na verdade. E na vez que fui para Deera, fui em um carro contratado. Eu fui seguindo o pessoal da ONU e aí lá no hotel onde os militares da ONU estavam hospedados havia um serviço de aluguel de carro com motorista e eu contratei um muito bom que me ajudou. Ele conhecia o pessoal da polícia secreta e me ajudou a identificá-los.

Por Samy Adghirni
Cobriu em 2012 — Damasco (Folha de S. Paulo)

O motorista era na verdade um amigo/assistente do francês. Então eu conversava com o francês, dizia o que eu queria e ele dizia se era possível. Ele também era cheio de ideias, então o motorista executava, seguia o apito do francês. Eu só andei de carro, era um carrinho legal. Não peguei transporte público, em Damasco não tem metrô. Não andei de mototáxi nem nada. Foi carro e andei muito a pé também.

Por Diogo Bercito
Cobriu em 2014 — Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu combinava (com o motorista). Eu pedi a ele que a gente fosse a Homs. Pegamos um autorização no Ministério das Informação. Um papel, enfim, que possibilitasse que a gente passasse pelos controles militares e a gente foi. A gente cogitou ir para Krak des Chevaliers, que é um castelo perto de Homs e tinha tido uma série de embates. Quando a gente foi a Homs, a gente conversou com as autoridades, entrevistei o governador e fiz uma parte da apuração. A gente sentou. ‘Tá, a gente vai para o castelo ou não?’. Perguntamos para as pessoas qual era a situação e concluímos que a situação era ruim, que existia um risco real e decidimos não ir. Claro, eu sou responsável de alguma maneira por ele também. Se acontece alguma coisa com ele, é uma pessoa que está trabalhando para mim. Eu sempre levo em consideração em todas as coberturas que eu faço: se o tradutor acha que é perigoso, eu não vou. Eu não vou colocar uma pessoa para arriscar a própria vida. Nesse caso a gente avaliou que não era vantajoso nem para mim nem para ele.

Por Yan Boechat
Cobriu em 2017 — Damasco, Homs e Aleppo (Freelancer)

Na Síria tem muito checkpoint. Em Damasco tem um milhão de checkpoints. Checkpoint para tudo o que é lado. Mas é natural, em qualquer área de guerra e conflito você sempre vai ter muitos. Tinha muito dentro de Damasco porque havia um temor imenso de ataques a bomba e tudo mais. Mas como eu estava com o minder do governo, com as cartas, com as autorizações, foi tranquilo. Foram checkpoints bem tranquilos na verdade. Não foi dos mais tensos do que eu tive na vida, longe disso.

Área controlada pelos rebeldes

Por Tariq Saleh
Cobriu em 2011, 2012 e 2013 — Aleppo (BBC e Terra)

Aí que entra de novo a questão do fixer. Obviamente que todo momento que há uma cobertura a primeira coisa que faço é abrir o mapa. Eu vou estudar o mapa, onde a gente está, os pontos de saída, de fuga. O plano B e o plano C se alguma coisa dar errado. Não somente na parte de produção mas também de logística. Se acontece alguma coisa, se há um ataque inesperado, uma batalha inesperada e a gente tem que sair do local e a estrada pela qual a gente veio ela está interditada, bloqueada, a gente tem que ter outras rotas de fuga. Tem que estudar isso. O fixer conhece a região. Ele vê que a gente estuda, a gente conversa. ‘Essa estrada é segura?’ ‘É’ ‘Você tem certeza?’ ‘Tenho’. Não tem certeza, vamos checar com pessoas de lá. Vamos ver com os locais, as pessoas de confiança. Então tem toda uma série de estudos para minimizar qualquer risco.

Área controlada pelos curdos e árabes

Por Patricia Campos Mello
Cobriu em 2015 e 2016 — Norte do país (Folha de S. Paulo)

Você chega e tem que se dirigir a um escritório de imprensa. Você fica lá um tempão e os caras vão te dar um papel. Sem aquele papel você não vai para lugar nenhum. É alguma coisa de país em guerra. Essa ‘porra do papel’ com o carimbo. ‘Você é jornalista, você pode andar, você está autorizado’. Se você não está com aquilo, você pode ser preso. Você só passa no checkpoint com esse papel e na época tinham muitos. Uma viagem de 500 quilômetros levava quase um dia inteiro, porque você fica parando, tem fila e todo o checkpoint tem um pouco de tensão. Homem bomba sempre escolhe checkpoint para se explodir.

Ele (o fixer) tinha um carro todo fodido. Os carros lá estão todos fodidos porque não entra peça. Então você vê um monte de carro encostado. Eles só recebem coisas ou pela Turquia ou pelo Iraque, só que os curdos do Iraque brigam com os curdos da Síria e vira e mexe eles põem embargo e aí não entram as coisas. Então é um monte de carro caindo aos pedaços e eles usam um diesel curioso. A maioria dos campos de petróleo estava no norte e oeste da Síria. Hafez, pai do Bashar, foi muito esperto e colocou as refinarias lá para baixo, perto das áreas onde são mais alauítas porque ele queria evitar a industrialização do norte. Então quando começou a guerra, os caras lá em cima ficaram sem refinaria. Eles tinham petróleo, mas não tinham como refinar. Eles fazem umas refinarias meio tabajaras: um buraco no chão e queima e é um diesel que é um ‘merda’ e o carro quebra. Então o Barzan (o fixer) tinha o carro dele, um Hyundai, com buracos de tiro, aquelas coisas. A gente foi com o carro dele. A gente andava no carro dele.

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Maryanna Nascimento
sahafi brazili

Jornalista recém-formada interessada na cobertura de conflitos e da violação dos direitos humanos