Uma crônica no caminho

Maryanna Nascimento
sahafi brazili
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3 min readAug 27, 2019

Entre todas as histórias que ouvi ao longo das entrevistas, uma apinhou a minha mente com imagens. Peço licença ao jornalismo e ao dono da experiência, Samy Adghirni, para esta crônica — que apesar de não cobrar explicações, digo: há muita verdade.

Fiz o check-in no hotel Talisman Al Ameen por volta das 20h de uma quinta-feira de dezembro. O cheiro que exalava da mobília de madeira e a arquitetura tradicional denunciavam: o edifício situado no centro histórico de Damasco era centenário. No quarto, a cabeceira da cama de casal lembrava o cabelo anelado de Buda. Sentei naquele colchão espaçoso e abri o meu moleskine de capa vermelha, comprado por 2 euros em uma loja chinesa há muitos quilômetros da Síria. Consultei a lista rabiscada à lápis no final do livro. Até o fim da viagem de cinco dias, precisava comprar algumas lembranças para amigos — logo eu que volto de mãos vazias das viagens me dei esse luxo, afinal não é todo dia que encontramos regalos a 10% do preço original. Entre artesanato e bijuterias locais, ainda havia um lustre na lista. O desafio era fazer uma viagem intercontinental sem quebrá-lo.

Já se aproximava das 21h15 quando decidi sair do quarto. Os corredores do hotel cinco estrelas estavam em silêncio, a piscina iluminada por candelabros não tinha sequer um hóspede. Continuei caminhando e encontrei um homem bigodudo fumando próximo a uma árvore. Me aproximei. ‘Salaam Aleikum’, disse usando a única expressão que sei de árabe. Ele respondeu com cara de poucos amigos. Contei de forma breve que estava na Síria à trabalho e que queria saber o que fazer na noite em Damasco. O homem, com um inglês convincente, explicou que conhecia pouco dali mas que tinha ouvido falar de uma discoteca a poucos metros do hotel. Dei adeus e segui em direção à recepção. O atendente revelou que aquele quarentão do bigode grande e com fios alvinegros era o único hóspede, além de mim, naquele estabelecimento com 17 quartos. Não era de se espantar. Pedi indicações de restaurantes na redondeza, confirmei a existência da tal discoteca e segui para a rua.

Fazia cerca de 7º. Com luvas pretas e um cachecol mostarda andava meio perdida pelas ruas. O vento rasgou o mapa da primeira vez que decidi abrir. Tentei recordar das indicações do atendente. Depois de três quadras, parei em um restaurante. Não entendi o que estava escrito no cardápio e a garçonete não conseguia traduzir. Escolhi pelo preço. Depois de alguns minutos, recebi um cesto de pães, salada e iogurte. ‘Não acredito que saí do Brasil para comer iogurte na Síria’, lamentei mentalmente. Comi os seis pães que me foram servidos e quando estava prestes a pedir a conta, eis que a garçonete retorna com uma carne de carneiro. Ela me olhou um pouco torto, afinal não deve ser todo dia que uma brasileira chega naquele restaurante e come todos os pães do cesto ignorando o prato principal. Me passei! Comi o carneiro — que estava delicioso, à propósito — com raiva pela minha estupidez e, de bucho cheio, fui até a discoteca. Logo na entrada havia um francês dando algumas indicações para os seguranças. Pelo visto, ele era o dono do local. Deixei o meu casaco na entrada e segui adiante. Bebi pouco, afinal estava sozinha, mas me embriaguei com aquelas músicas ocidentais remixadas. Elas me faziam esquecer por algumas horas que eu estava na Síria. Aliás, toda a vivência daquele dia da chegada me fizeram esquecer por que eu estava naquele país. Tudo mudou quando o segurança abriu aquela pesada porta escura por volta das 3h da manhã, quando eu estava indo embora. A realidade veio à tona: as explosões aconteciam do lado de fora, a pouco mais de dois quilômetros. Bom! Bom! Bom! A Síria estava em guerra.

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Maryanna Nascimento
sahafi brazili

Jornalista recém-formada interessada na cobertura de conflitos e da violação dos direitos humanos