Amante

Alana Della Nina
Sai dessa vida
Published in
3 min readAug 21, 2017

Hoje descobri que ele tinha um caso. Era um caso tão caso que, no fundo, acho que caso era eu.

E não descobri nada. Não tenho essa competência toda. Ele me contou. Me contou porque teve que contar. Acordou do meu lado. Eu não quis abrir os olhos. Ainda não.

Registrei no ar pesado do quarto a já conhecida variação. Tão leve quanto nítida. Estava lá o tempo todo. Tensão que ocupava o espaço por inteiro e sufocava, mas a gente fingia respirar normalmente. Abri, então, os olhos e confirmei: a ligeira expansão da sua pupila, a mudança súbita na respiração, o desconforto quase imperceptível, mas importante, que mostra, sem revelar, o impacto de uma emoção sobre a informação; que, enfim, se materializou.

Ele estava indo embora. Não me amava mais. Amava a outra. Fiquei só olhando. Não respondi. Acho que tudo tem conserto, mas falta de amor não. Amor quando acaba é uma pequena morte. Sobra para quem fica o luto da pessoa viva, que vai seguir agora sem você. Impune, ilesa, irrestrita.

Sempre disse minha mãe: se alguém deixa de te amar, se ame em dobro. Bonito isso, mas na hora só dá pra deixar de se amar também. Quase como quem diz pro outro que ele tem razão, deus o livre de mim. Já que eu não posso deixar a mim mesma, ele que se aproveite dessa boa sorte.

Ele deixou as chaves sobre a mesa e saiu pela porta pela última vez. Sem escolha, saí também. O que é meu não é de mais ninguém e a rotina pede para ser seguida como se nada no mundo tivesse mudado. O tempo não estaciona para os sofredores se encolherem em paz.

O fim me esvaziou e me fascinou em medidas próximas. Enquanto o corpo seguia seu cronograma habitual, a cabeça rodava em reprise memórias — não as que eu esperava, mas as que não tinha. Não sobre nós, não sobre ele, tampouco sobre mim. Eram sobre ela. A outra. Uma outra que prefiro não saber nem o nome, mas tem cara, forma, gosto, cheiro; que ri alto e segura de si, fuma sem ligar para a fumaça e bebe sem se importar com a ressaca; que é bonita sem se dar conta, como se a beleza fosse um presente cujo embrulho ela abriu desinteressada; que fala palavrão entre os dentes levemente separados e tem um sorriso com covinhas daquelas que rendem apelido; que tem uma tatuagem feita em uma idade precoce, numa viagem para algum destino exótico — a qual ela jura se arrepender, mas exibe com orgulho. Essa outra que não respeita as paredes, faz piada e anda pelo quarto claro sem vergonha de si mesma, só de toalha enrolada na cabeça. A outra que é tudo que não sou; que me tira de mim e me joga num canto, sem corpo, sem pele, sem vida.

A mim, resta apenas me recolher nela, desconhecida íntima que me consome sem me pertencer de volta. Um dia, quem sabe, me perdoo por não dar conta de mim mesma. E tenho paciência. Acho que é pra isso que a vida é tão arrastada, pra dar tempo de as coisas assentarem. Logo volto ao papel que melhor me cabe: ser uma maria-pela-metade. Dessas que amam pouco para não sentir dor. Melhor evitar as intensidades.

Conto produzido para o CLIPE (Curso Livre de Preparação de Escritores — Casa das Rosas), sob o seguinte tema: “O ciúme é uma equação de três termos indecidíveis. Tem-se sempre ciúmes de duas pessoas ao mesmo tempo. Tenho ciúmes de quem eu amo e de quem o ama. O rival é também amado por mim, ele me interessa, me intriga e me atrai.”

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