Lugar nenhum

Alana Della Nina
Sai dessa vida
Published in
3 min readApr 23, 2018

Você foi feliz aqui?

Ela me olhou como quem não entendeu a pergunta. Olhou fundo nos meus olhos com as pupilas contraindo no castanho escuro, provavelmente me julgando irresponsável por reduzir anos de intensidades a uma retórica banal. Qualquer resposta seria ordinariamente simbólica. Mesmo assim, eu esperava por isso. Mas ela se vinga com o silêncio. Gosta de repetir que não sabe dizer não, então prefere não dizer nada. E, assim, se vinga, tirando um proveito quase perverso da minha falta de habilidade em ocupar adequadamente esses espaços em branco.

Eu nunca pertenci a este lugar, ela disse, não sei se em resposta à minha pergunta, contrariando suas lógicas particulares, ou em constatação independente. Sentei no chão ainda morno do sol, passei a unha pelo piso de tacos soltos e desgastados, tentando remover os resíduos do verniz velho, hábito aflitivo que ela reprovava com o olhar e o silêncio. Analisei as paredes vazias, cheirando a tinta fresca. Duas demãos não foram capazes de cobrir totalmente as marcas dos quadros que ela levou embora. Foi a primeira coisa que notou quando voltou aqui para pegar o resto dos seus poucos objetos.

Esta casa ainda é minha. Dela, nunca foi. Desabitá-la, portanto, tratou-se de mera formalidade. Como uma cigana que levanta acampamento por necessidade e leva só o essencial, ela se despede das muitas camadas que cobriram seu corpo e sua alma contra a sua vontade.

Fui caminhar pelos cômodos, agora estranhamente vazios sem seus móveis. Pareciam tão maiores do que registrava a memória carregada de apertos. Pela janela do quarto, observei o velho casarão que nos vigiava de volta, inapropriadamente situado em meio às misérias daquele lugar esquecido, com seu portão de ferro alto e compridos janelões azuis que nos traziam diferentes sensações. A mim, a melancolia de coisas que eu nunca teria. A ela, zombavam de nossas miudezas, destes cinquenta metros quadrados que nos confinavam.

Ela entrou e se apoiou no parapeito ao meu lado. Sabe, não vou sentir falta dessa vista, disse, sorrindo para mim com leveza incoerente. Das suas muitas repetições, a que mais me angustiava era a sobre como queria ir embora daqui só para se livrar do casarão, que, por associação injusta, se tornou símbolo profano daquela vida, naquele lugar, da escassez que nos cercava e que crescia dentro de nós.

Soube que ela precisava partir no dia em que, no meio do caminho para o trabalho, voltou chorando para casa. Todas as manhãs, passava em frente à marmoraria da esquina e a boca do seu estômago queimava quando ela via o dono da pequena loja. Pobre homem. Solitário, gastava suas horas laboriosas sentado atrás do balcão esperando, esperando. E não entrava viva alma que fosse. Naquele dia, ele não estava lá. No alto da porta fechada, pendia um pedaço de papel almaço com um recado em caneta azul. Volto já. Me aguarde, por favor. Aquele coitado com seu bilhete em letra de mão para clientes que nunca vêm.

Ela sucumbiu ao peso da realidade das vidas comuns.

Você tem que me tirar desse lugar. Suplicou, enquanto eu passava um café para confortá-la.

Não quero café. Quero ir embora daqui.

Para onde?

Não sei. Embora, embora.

De todos os lugares em que ela viveu, nunca foi de nenhum. Eterna invasora, vira-lata, sem-teto, repelida dos espaços como um corpo estranho. Deslocada de si mesma, sufocada por suas escolhas, não se satisfez com a vida que se desenrolou à sua frente. Eu gostava de vê-la como uma criatura fantástica que, diferente do resto de nós, vivia alegremente à mercê da impermanência das coisas, soberana aos nossos pequenos entendimentos.

Já com as solas gastas de acompanhá-la, fui perdendo o fôlego ao longo do caminho. Tentei convencê-la de que é da natureza dos humanos aterrar, definir as margens dos nossos territórios, buscar o acolhimento em ninhos decorados de coisas que cheiram a lar.

Mas ela quis, de novo, ir embora. E eu, enfim, precisei ficar.

*Conto publicado na antologia Mário-Casa, com textos dos alunos do CLIPE Prosa 2017.

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