Santos, mas São Paulo

Alana Della Nina
Sai dessa vida
Published in
4 min readAug 9, 2016

Anedotas de uma imigrante na cidade grande

Pouca gente sabe, mas eu sou de Santos. Não parece, eu sei. Nem pra mim parece. Sou branquela, notívaga, um pé na gotiquice, outro na morceguice. Nada desse ar saudável e permanentemente bronzeado de quem caminha no calçadão às seis da manhã, toma água direto do coco e joga frescobol três vezes por semana. Também não falo “tu”, o que parece algo muito incomum para um santista. É que faz uns 20 anos que vim morar em São Paulo e uns 10 que não vou pra Santos. Opa, não vou a Santos, não pra. Fica meio formal, mas é como meu pai sempre diz — “vou a Santos”. E palavra de pai a gente respeita.

Só que é aquilo que alguns gostam de dizer: saí da praia, mas a praia nunca saiu de mim. Tenho essa coisa caiçara de andar descalça, de chinelo. Por mim só tiraria o chinelo pra dormir, mas não pode. Em São Paulo nunca pode nada. Foi o que descobri quando cheguei por aqui.

Como Caetano, nada entendi. Só que falta horizonte e que nada pode. Essas duas coisas eu entendi rápido. A vista é sempre vertical. E andar sozinha não pode, descabelada, sentar na calçada, falar alto, puxar papo, andar de chinelo. Não pode. Tô há 20 anos nesta cidade e meio que me ajustei a tudo, mas não me acostumo com essa regra do não-chinelo.

Outro dia um amigo desses ensapatados falou meio contrariado “você é chegada num chinelo, né?”. Eu disse que sim, que tenho os mindinhos dos pés arqueados, aí dói usar sapato fechado. É verdade essa dos mindinhos, mas uso chinelo porque gosto, essa é mais verdade ainda. A vida é melhor com os dedos de fora.

Mas em São Paulo todo mundo gosta das coisas fechadas. Sapatos, programas, carros, relações. Tudo confinado, do pé ao coração.

Ô povo que tá sempre enfiado em algum quadrado: shopping, baile, restaurante, cinema, automóvel. Até varanda. Paulista compra apartamento com varanda e faz o quê? Fecha, envidraça, lacra, veda. Não passa nem vento. Vai entender. Sempre achei esse negócio de tudo fechado um tanto claustrofóbico. Mas, pra mim, o paulistano era um claustrofóbico de si mesmo.

Eu sei, vocês dizem que é questão de segurança. Que São Paulo é cidade perigosa, que as pessoas têm medo.

E pra uma menina que, aos 10 anos, ia dar seus rolês sozinha no Gonzaga, medo era uma palavra que pertencia a uma outra dimensão. Medo era sensação que a gente tinha quando assistia filme de terror no Roxy, brincava de loira do banheiro nos recreios do Colégio do Carmo ou descia naquela montanha-russa meio duvidosa do Inverno Quente do Canal 4. Mas, ao mudar pra capital, aos 13, entendi que 70 quilômetros de distância tinham o poder de transformar profundamente o que eu conhecia por realidade. Saí de uma vidinha de morar de frente para a praia, estudar a seis quadras dali e ir ao clube a três e fui para a maior cidade do país. Devia ser santista mudado para São Paulo o fundador da Rodovia dos Imigrantes, porque é exatamente como a gente se sente quando vem pra cá: um imigrante, forasteiro, estrangeiro.

Lembro quando cheguei na minha primeira padaria paulistana e pedi “me vê oito médias, faz favor”. O homem do balcão ficou me olhando, me olhando. Eu encarei de volta. Até que ele cedeu “mas, moça, você vai tomar todas essas médias agora?”. Tomar? Que mané tomar? Foram uns 15 minutos para decifrar essa importante diferença cultural e finalmente levar meus PÃEZINHOS pra casa junto com o desconcertante aprendizado. Puta trabalho pra conseguir comprar pão. E foi aí que me liguei: “Toto, I have a feeling we are not in Kansas anymore, vai ser difícil pra cacete essa catumba”.

E o engraçado é que até hoje, quase 20 anos depois e relativamente adaptada, ainda me soa esquisito quando alguém pede uma média e recebe café-com-leite em vez de pão francês.

Aí tem a praia. De novo, vocês não dão nada pra mim, mas sou rata de praia. Preciso desse lance de olhar o mar e não ter fim. Aqui é tudo prédio, prédio, prédio. Certo, não vejo mar há mais de ano, mas me joga na areia pra ver o que acontece. Não saio de lá. Fico de biquíni até meia-noite, só olhando o azul de um misturar no azul do outro.
E de chinelo.

Só que São Paulo te encalacra de um jeito que fica difícil ir pra praia — ou pra qualquer outro lugar. Te suga, te atrai, te aperta, te esmaga num abraço sufocante, não te deixa ir. São Paulo te ama.

Também te amo, São Paulo, mas preciso de um tempo. Às vezes nossa relação fica meio desgastada, um pouco abusiva, penso em terminar. Mas sempre fico. Aprendi a te chamar de casa e, mesmo ainda me proibindo de usar chinelo socialmente, me sinto confortável em você, cresci demais pra voltar pra qualquer outro lugar.

Tem também as pessoas que a gente faz nesta cidade. Porque é a tal coisa: 20 anos depois e alguns dos sujeitos mais importantes da minha vida estão aqui.

E a bicha é possessiva em um tanto que essa história era pra contar que vim de Santos e virou como eu sou de São Paulo.

Só que fico nessa angústia das muitas coisas pra fazer e da vontade de fazer só o que eu quero. Da importância de ser alguém versus o impulso de ser livre. Dessa rotina frenética da cidade grande que já me viciou e desse puxadinho interno caiçara que não me larga. E, entre lá e cá, dentro de algum quadrado fechado, o que não passa é a saudade, uma nostalgia quase melancólica de maresia, canto de cigarra no lusco-fusco, areia grudada no sabonete que faz arder a pele queimada, perfume de Aquamarine com Neutrox com Sundown com Caladryl com vela de eucalipto, barulho de onda, noite estrelada, bafo quente na madrugada. E esse cheiro de liberdade.

Ai, São Paulo. Me deixa ir um pouco, vai. Eu sempre volto.

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