‘Que horas ela volta?’ feat. Essa moça tá diferente

Marlon Faria
Saideira
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3 min readOct 13, 2015

Saí da sessão de QUE HORAS ELA VOLTA? com um engasgo preso na garganta. O filme chegou pra materializar na tela grande um discurso que venho verbalizando desde que me conheço por gente, desde que comecei a circular por casas, espaços e realidades sociais diferentes da minha.

Val, empregada doméstica e nordestina , trabalha na casa de uma família de classe média paulistana há mais de uma década. Foi ela quem praticamente criou Fabinho, filho dos patrões, ao passo que, sua filha, Jéssica, ficou no Nordeste e não vê a mãe há anos.

O filme explicita o íntimo da relação patrão-empregado, nos apresentando uma série de contradições e dicotomias que permeiam expressões como o clássico “você é quase da família”. A empregada brilhantemente vivida por Regina é quase da família, mas dorme num quartinho apertado, sem circulação de ar, e sem espaço suficiente pra guardar as poucas coisas que conseguiu comprar nesse período que passou na cidade grande. Ela é da família, mas a ela não é permitido sentar a mesa, nem mesmo quando os patrões não a estão utilizando. Val como de pé, apoiada na pia da cozinha.

O que espanta aqui, não é a servidão velada já característica desse tipo de relação. Mas o conformismo da protagonista que de alguma maneira aceitou que aquela cozinha é o seu lugar no mundo e não consegue se ver ultrapassando o espaço que os outros delimitaram pra ela. Isso fica ainda mais evidente devido aos inteligentíssimos artifícios utilizados pela diretora Anna Muyllaerte que nos apresenta praticamente todos os espaços no primeiro ato do filme através do ponto de vista da Val. Não conseguimos observar a sala de jantar da casa, por exemplo. Espiamos apenas aquilo que se pode ver da sala de jantar através da porta da cozinha. Não conseguimos enxergar os quartos da casa. Olhamos apenas o corredor que dá acesso aos mesmos. Somos a Val, somos a protagonista. Os olhos dela são os nossos. Percorremos o caminho dela na casa.

Até que a chegada de um novo personagem muda tudo. Jéssica, filha de Val, telefona para a mãe informando que irá pra São Paulo prestar vestibular. E que precisa morar com ela nesse período. A empregada pede autorização aos patrões que prontamente permitem a chegada da menina, desde que ela fique no quartinho de empregadas com a mãe. Mas Jéssica não é aquilo que se espera dela. Não é o estereótipo que o Sudeste vê de uma jovem humilde e nordestina. Jéssica chega colocando o dedo na ferida e tornando pulsante todos os preconceitos da classe dominante. Não por acaso, percebi um certo incômodo nos meus colegas de sessão de cinema. Se ver na tela, às vezes, dói. Principalmente quando se é o antagonista.

“Não sou inteligente, não. Eu sou curiosa”

A chegada da jovem nos apresenta concretamente os espaços da casa. Vemos com clareza a sala de estar, a estante de livros, os quartos, o ateliê do dono da casa e a piscina (responsável por uma das cenas mais lindas que minha memória cinéfila já registrou). Jéssica não aceita os limites que pra Val já não parecem mais uma escolha. Ela os ultrapassa. Aliás, ela nem mesmo chega a considerá-los. “Não me considero melhor que ninguém, não. Só não me acho inferior a ninguém.” Não somos mais Val. Agora somos Jéssica.

O filme segue e o que se vê no desenrolar da trama é um Brasil completamente atual. Uma juventude que não nasceu delimitada, que borra os limites entre classes e que nos inspira maior esperança em oportunidades compartilhadas. Longe de ser um melodrama, ou uma propaganda política pró programas sociais, QUE HORAS ELA VOLTA? funciona como um sopro de qualidade no que tange a escolha das temáticas das produções cinematográficas made in Brazil. Além de competente em seu propósito principal (o entretenimento), cumpre uma função social há muito negligenciada no país dos favela movies e dos enlatados humorísticos.

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Marlon Faria
Saideira

Journalist, Planner, Copywriter and Podcaster | Rio de Janeiro - Brazil