WoW | Como uma praga virtual salvou o mundo real

Arthur Tinoco
Saideira
Published in
7 min readAug 17, 2017

Em 2005, milhões de pessoas foram contaminadas por uma epidemia fortíssima, que se alastrou incrivelmente rápido. Uma vez expostos e infectados, indivíduos perfeitamente saudáveis se tornaram doentes e moribundos em questão de horas. Tanto humanos como animais poderiam espalhar a misteriosa (e mortal!) doença que, em poucos dias, contaminou cidades inteiras, eventualmente tornando algumas megalópoles em cidades fantasmas. Aqueles que não morreram imediatamente ou aqueles que ainda não tinham sido contaminados, fugiram das cidades povoadas, para reduzir o risco de contrair a doença.

A praga foi chamada de “Corrupted Blood” e teve um efeito devastador na vida das pessoas, causando centenas de milhares de mortos e um rastro de devastação por onde passou. Talvez você esteja se perguntando: “Como eu nunca fiquei sabendo dessa doença tão violenta?”. A resposta é simples: A praga apenas existia no fantástico mundo de Azeroth, o planeta no qual se passa a história de World of Warcraft.

Imagino que todos saibam o que é World of Warcraft, o MMO mais conhecido do (nosso) planeta. Mas para aqueles que não sabem, WoW é um MMORPG (Massive Multiplayer Online Role Playing Game) baseado no cenário de fantasia de Warcraft. O jogo foi criado pela Blizzard em 2004 e se tornou rapidamente um dos jogos mais jogados e lucrativos da história, com mais de 110 milhões de contas registradas até hoje. Os jogadores controlam personagens com habilidades especiais, num mundo com magia e lutas constantes contra outras raças, demônios e mortos-vivos. No entanto, durante o período de 13 de Setembro até 20 do mesmo mês, em 2005, os jogadores se tornaram um caso de estudo, salvando vidas reais e, porque não, virtuais também.

A Praga

O boss Hakkar, the Soulflayer, que deu origem a praga

O incidente começou a tomar forma após a implementação de uma nova raid, chamada Zul’Gurub, durante uma nova atualização.Seu boss final, Hakkar, the Soulflayer, poderia afetar os jogadores com uma magia, chamada de “Corrupted Blood”, vindo daí o nome da praga. A magia tinha dois efeitos, um de dano imediato e um de dano contínuo, sendo esse último significativamente forte. O que originou a contaminação era o fato de que a magia poderia ser passada entre os personagens próximos, como uma doença de fato, espalhando para os jogadores do mapa.

A desenvolvedora do jogo codificou a magia para que ela funcionasse apenas dentro desse mapa específico, para evitar problemas. Ironicamente, eles esqueceram de impedir que a magia continuasse em pets e minions (que são companheiros dos personagens jogáveis), que acabaram sendo os vetores da doença fora da raid. Quando os jogadores voltavam às cidades, com seus companheiros infectados, a praga começou a se alastrar, como um vírus real. A doença também afetava NPCs (os personagens do jogo que não são controlados por jogadores e sim pelo próprio servidor), mas estes não eram mortos pela doença, apesar de espalhar o vírus como qualquer outro jogador. Por ser um efeito de nível alto, a doença matava personagens de nível médio e personagens recém criados em apenas alguns segundos, deixando uma pilha de corpos em cada cidade.

Quando eu disse queram pilhas de corpos, eram MESMO pilhas de corpos.

Cada vez mais e mais jogadores eram afetados e contaminados, espalhando a praga por todo o mundo de Azeroth. Em questão de dias, os poucos jogadores que não morriam imediatamente da doença, começaram a voluntariamente tentar ajudar os novatos, utilizando magias de cura e outras formas de salvamento dos personagens. Outros, que não tinham as mesmas capacidades de cura, se ofereceram para guiar outros jogadores para as áreas não-infectadas, formando uma espécie de quarentena. Existiam ainda grupos organizados apenas para espalhar a doença em novatos, levando personagens contaminados para áreas até então seguras, para espalhar ainda mais o caos. Uma onda de pânico se instaurou no jogo, com vários grupos se atacando e duelando para impedir ou permitir o avanço da praga.

A Blizzard tentou criar áreas de quarentena forçada, mas elas não funcionaram da forma como esperado. Após uma semana de guerras civis, caos e pânico no continente, a desenvolvedora resetou os servidores em 15 dias e consertou o problema. Mas, após o problema ser resolvido e as cidades serem repopuladas, um outro grupo criou interesse na praga.

Como uma praga virtual salvou o mundo real

A origem e os caminhos de alastramento de algumas pandemias

No ano após o incidente, um grande número de epidemologistas de elite começaram a publicar algumas pesquisas sobre o evento. Existiam tantas correlações entre as reações virtuais à pandemia e aos casos históricos documentados que os epidemologistas Ran Balicer, Eric Lofgren e Nina Fefferman escreveram algumas mensagens entre eles, todas no mesmo ano, que recomendavam fortemente a pesquisa no mundo virtual para ajudar a estudar e prever o comportamento humano no mundo real. Os pesquisadores usam, desde muitos anos, modelos matematicos complexos para prever a disseminação de agentes patologicos e desenvolver políticas de saúde pública. O problema é que, de acordo com esse grupo de epidemologistas, eles removem (ou ignoram) o comportamento humano irracional da equação. Além disso, esses modelos não podem ser testados porque, além de ser antiético espalhar um agente patogênico numa população apenas para ver o resultado, também é impossível de esperar reações iguais entre todos os grupos.

Ainda segundo o grupo, os MMOs são o cenário perfeito para essas pesquisas. Quando uma pandemia como a do “Corrupted Blood” surge, os pesquisadores conseguem observar como a população responde à doença e como ela é transmitida. Por exemplo, Balicer menciona na sua pesquisa que existem muitos paralelos entre a praga de Warcraft e com dois casos que são recentes na história humana: A Gripe do Frango e o SARS. No caso da gripe aviária, patos assintomáticos espalharam a doença na Ásia da mesma forma que os animais espalharam a doença em Azeroth. Em ambos os casos, as medidas adotadas pelas organizações máximas (na vida real, a OAS e no mundo de WoW, a Blizzard) não tiveram nenhum efeito prático, com as quarentenas sendo fácilmente ignoradas e barradas, bem como o potencial de uma disseminação em escala global. Essencialmente, as pessoas do mundo real, assim como as do mundo virtual, não agem da forma como foram pedidas, nem fazem tudo que seria ideal na situação.

Além disso, respostas comportamentais são simplesmente impossíveis de prever. Nas cartas trocadas entre eles, Fefferman e Lofgren discutiram como os MMOs mostram o caos social de uma maneira que os modelos matemáticos simplesmente não conseguiriam. Durante o incidente do “Corrupted Blood”, os jogadores agiram de uma forma irracional, uma maneira que os modelos epidemológicos não levavam em consideração. As ações de grupos organizados para espalhar ou deter a doença também não são levadas em conta nos modelos, normalmente ignorando toda a participação das pessoas comuns nisso, deixando tudo na mão das organizações de saúde. Desde então, Fefferman incoporou essas reações em suas próprias simulações e começou a trabalhar com a Blizzard em um modelo virtual de pandemias para coleta de dados e pesquisa.

Dados importantes, os comportamentos instrutivos exibidos no mundo virtual incluíam jogadores colocando-se em risco correndo para curar aliados mais fracos, apenas para se infectar, enquanto, por outro lado, também existiam os jogadores infectando alegremente o maior número possível de outros. Alguns usuários enviariam seus avatares infectados para trabalhar ou para o mercado (sim, há uma economia de WoW inteira, virtual e sistema de transporte), assim como as pessoas ainda podem trabalhar com gripe porque precisam de dinheiro ou não têm dias de folga ou aquele famoso atestado maroto. Uma outra observação feita por Fefferman refere ao que ela chama de “fator da estupidez”. Muitos jogadores entraram no jogo apenas para dar uma olhada rápida na epidemia e acompanhar a histeria que se seguiu, obviamente contraindo e espalhando a doença eles mesmos.

Esse tipo de ação irracional está presente em epidemias reais também, com grande fluxo de jornalistas, pesquisadores, voluntários ou pessoas comuns que vão até locais contaminados para ajudar, reportar ou apenas observar. Os modelos puramente matemáticos não conseguem prever isso, porque isso simplesmente não é fatorado na conta. Claro que um mundo de fantasia não é uma simulação perfeita da sociedade humana (afinal, mortes em WoW não são permanentes), mas de certa forma, é um passo mais próximo para que epidemologistas possam prever os resultados complexos de uma grande população em uma pandemia. Porque, ao contrário do mundo virtual, se alguma coisa acontece, aqui não temos o botão de reset.

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Arthur Tinoco
Saideira

Co-Criador, host e escritor pro Saideira. Fanático por jogos e cultura pop. Considero o SuperNES a melhor invenção do homem.