Armageddon Time | Tempo de conhecer privilégios

Vinicius Machado
SALA SETE
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4 min readOct 13, 2022

Usando suas experiências pessoais, Gray passeia pelas desigualdades para falar sobre o privilégio branco em Armageddon Time

É possível traçar um paralelo entre o novo filme de James Gray, Armageddon Time, e o recente Marte Um, de Gabriel Martins. Ambos exploram relações familiares em casas da classe média baixa e em momentos de mudanças políticas em seus países, com crianças que sonham com futuros diferentes das expectativas dos pais. Mas em Armageddon Time, falamos de uma família branca, de descendência judaica e que, ainda que não seja rica, conta com o apoio dos avós maternos para custear os estudos dos filhos.

Em primeiro momento o filme pode parecer girar em torno de uma guerra entre gerações aos olhos de uma criança, já que Paul — principalmente — e Johnny batem de frente com os adultos e suas convenções constantemente, com um ar de rebeldia jovem que vai contra o mundo. Mas, fica claro através da amizade dos garotos (Paul, branco com uma família estruturada e Johnny, negro, sem estrutura familiar) que o filme se preocupa em mostrar as desigualdades raciais e sociais nessa América prestes a eleger Reagan, o que acaba, na verdade, por escancarar o privilégio branco.

A família de Paul tem duas realidades financeiras, a do avô com dinheiro e o pai encanador. Esse misto de condições gera um cenário típico da classe média: o sonho dos filhos serem bem sucedidos profissionalmente, a rejeição aos caminhos artísticos, a valorização do privado/particular em oposição ao público e o racismo velado.

Paul, apesar de criança já tem idade e noção para entender que sua escola pública dá menos chances e estruturas que a escola particular engomadinha de seu irmão, assim como entende que Johnny sofre tratamentos diferentes por conta da cor de sua pele. Nisso o filme flerta diversas vezes com a possibilidade de Paul se revoltar com tais diferenças e se opor aos preconceitos, defendendo o amigo, mas (por sorte) isso nunca acontece. Ambos meninos tem posturas rebeldes, mas aos poucos a raiva de Johnny contra o mundo se torna mais latente e compreensível, enquanto a de Paul rapidamente se mostra sem sentido e acaba por se adaptar. O garoto é ensinado a se moldar a esse mundo que está tão disposto a aceitá-lo se jogar de acordo com suas regras, e ainda que ao fim queira dar as costas a ele, está inserido e beneficiado nesse jogo desigual.

O tema do sonho americano falido não é novidade nos filmes de Gray, bem como suas relações familiares complexas, mas esse parece ser seu trabalho mais simples e com menos força. Apesar de ter atores de peso no núcleo familiar, todos parecem pouco aproveitados, com exceção de Anthony Hopkins que serve como uma ponte entre o mundo de Paul e o mundo dos adultos. Porém nem ele, nem sua bela relação com o neto despertam grandes sentimentos. Há uma trava emocional na família que inunda o filme e passa para fora, enquanto a mãe sofre o luto, todos se afastam, quando o menino erra, o castigo se cria como algo violento mas não se sustenta, existe algum sentido nesse distanciamento mas tudo parece muito fraco e se torna uma observação apática, que chega até a entediar em alguns momentos.

A história de Johnny parece importar pouco e, apesar do filme se demorar até demais em alguns pontos, só pincela rapidamente a narrativa do menino negro. Para deixar claro seu ponto, Gray só nos mostra as dores e o sofrimento desse menino, o pouco que se diverte logo acaba como um lembrete que ele não está no mundo a passeio, mas para enfrentar todos os obstáculos possíveis. E ainda que sejam amigos, ele e Paul nunca serão iguais, fato pontuado diversas vezes no longa.

Se Marte Um é o retrato de um Brasil formado por famílias que dão um jeito pra sobreviver apesar das injustiças e dificuldades, Armageddon Time é o retrato de um EUA formado por famílias que tem o privilégio da vida ser mais injusta com uns do que com outros.

James Gray já provou muitas vezes ser um diretor versátil e capaz de transformar histórias simples em experiências fantásticas, mas falta em Armageddon Time a magia típica do diretor, sendo esse seu trabalho menos memorável.

Colaboração: Raissa Ferreira é apaixonada por cinema desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver. Dá palpite no Letterboxd sobre o que assiste e tenta refletir sobre as representações femininas em tudo que consome.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.