Assassinos da Lua das Flores | Uma história sobre soldados

Vinicius Machado
SALA SETE
Published in
4 min readOct 27, 2023

Soldados serão sempre soldados. É isso que Martin Scorsese vem dizendo em seus filmes ao longo dos anos. A lealdade pela patente maior é quase uma lei no universo do diretor, seja ele um departamento policial, a máfia, a religião, o mundo corporativo e até mesmo dentro de uma família, como em Assassino da Lua das Flores, em que Ernest Burkhart (DiCaprio) um soldado reformado, que sai de uma guerra para servir de olhos fechados um outro homem: William Hale (DeNiro), em sua missão de exterminar o povo Osage a fim de conseguir as concessões de terra e aumentar o patrimônio.

Scorsese aqui mantém sua estrutura narrativa de lealdade entre homens para denunciar o genocídio. E, mais uma vez, ele nos coloca sob a visão não só de quem vivencia isso, como também executa tais ações. Para ele, não é interessante esconder o jogo. O público precisa saber quem são aquelas pessoas e do que são capazes de fazer por dinheiro e lealdade ao outro (mesmo que uma lealdade frágil de acordo com seus interesses).

Como homem branco, o diretor nunca intenciona se colocar no lugar do povo Osage, muito menos o público. Ele quer que o espectador tenha identificação com Burkhart, ele traz um personagem carismático e burro para que quem o assiste se encontre no mesmo lugar que ele. Ernest é simples, apaixonado pela mulher, soldado que viveu e sobreviveu à guerra e agora busca uma oportunidade. É fácil gostar dele na primeira hora e meia do filme. Depois, a lealdade à patente muda de um general para seu tio, e os atos questionáveis começam a aparecer até se tornarem intragáveis. A pátria de homens assim só muda de nome. A de Ernest vira William Hale, que por sua vez é um senhor simpático, que jamais escapa do tom sereno e se comporta como um avô qualquer quando se está com a família. A passivo-agressividade — numa atuação impecável de DeNiro — só é identificada também da metade para frente. Já quando se trata da própria trama, os crimes cometidos por ele só passam a ser reconhecidos após o tribunal. A impunidade a homens como Hale os colocam nesse contexto. Homens sorridentes e falsos moralistas que apunhalam pelas costas aqueles que interferem em seu caminho.

Dentro de uma sala, em determinada cena, homens engravatados e familiares tentam convencer Ernest a ajudar Hale. Scorsese coloca o protagonista numa iluminação mais baixa, com a pele avermelhada e suada. Para aqueles presentes na sala, ele não é mais um homem branco, mas um Osage, mais um que, se necessário, será exterminado. É justamente nesses estudos de personagem que Scorsese tenta manipular seu receptor. A construção das nuances faz com que o público enxergue uma certa inocência em Ernest e, ao fazer isso, é como se o filme apontasse o dedo e colocasse todos de uma sala de cinema na mesma condição de seu protagonista. É como se ele falasse “Olhe bem e veja do que esses homens são capazes de fazer. E nós fomos e somos coniventes com isso”.

No entanto, o diretor também explora um contraponto. Se em O Irlandês, a solidão se torna uma companheira dos personagens, aqui não é diferente. Todo e qualquer ato de atrocidade cometido por eles são acompanhados da mesma consequência: o isolamento. Seja ele ao precisar trair ou ser traído por seus companheiros para sobreviver ou escapar de uma acusação, seja dentro de uma cela ou abandonado pela família. Na órbita desses homens, assim como esteve Anna Paquim em O Irlandês, está Mollie Burkhart, também numa interpretação fantástica de Lily Gladstone. Mollie é a representação da resistência de seu povo, mas que vive à margem dos atos cometidos pelos americanos, sem controle ou qualquer poder sobre os acontecimentos.

Por fim, Martin Scorsese opta por encerrar Os Assassinos da Lua das Flores como no mundo real: a história dos Osage contada por um espetáculo, como puro entretenimento, sem qualquer peso aos atos daqueles que verdadeiramente derramaram sangue. A interpretação de uma rádio novela para contar o desfecho de cada personagem coroa toda a intenção do diretor em lamentar e colocar seu público no mesmo estágio. Não há diferença de quem está cinema e de quem está na plateia dentro da cena. Desta vez, o diretor olha para sua obra e a reconhece como um mero retrato de uma época em que nada poderá ser feito a não ser prestar as devidas condolências e homenagear um povo quase extinto.

--

--

Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.