Coringa é o retrato de uma sociedade corrosiva

Vinicius Machado
SALA SETE
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5 min readOct 2, 2019

Na HQ clássica A Piada Mortal, escrita por Alan Moore em 88, o Coringa tenta provar sua tese de que um simples incidente poderia fazer qualquer pessoa ceder a insanidade. Para isso, ele sequestra Barbara Gordon e a deixa paralítica, a fim de enlouquecer o Comissário Gordon. Quando o Batman chega para detê-lo, o palhaço ultrapassa as linhas para ver até onde o homem morcego pode ir dentro de sua própria loucura.

Na ideia de Moore, ele tenta nos dizer que não há diferença entre um e outro, que ambos lidam com a loucura, mas de forma diferente. E talvez seja exatamente desta forma que Coringa, novo filme de Todd Phillips, deva ser encarado.

“Demonstrei que não há diferença entre mim e outro qualquer! Só é preciso um dia ruim pra reduzir o mais são dos homens a um lunático! É essa a distância que me separa do mundo. Apenas um dia ruim.” — A Piada Mortal (1988)

Para começo de conversa, não há adaptações de obras ou qualquer resquício de referências aos quadrinhos no filme. A história é original e acompanha a vida de Arthur Fleck, um aspirante a comediante, que precisa trabalhar como palhaço para sustentar a si e sua mãe.

Mas mesmo sendo uma história completamente inédita, o projeto conta com a memória do público para tornar a experiência ainda mais interessante. Todos sabem do que o vilão é capaz de fazer e como sua mentalidade anárquica funciona. Mas aqui isso não é entregue ao espectador logo de cara. Phillips usa uma certa contradição ao trazer, de início, um personagem afável, inocente e pronto pra gerar uma identificação, ou ao menos uma empatia por ele.

E ao invés de dar a trama um tom aventuresco, ele opta por adentrar no universo interno de Arthur gradativamente. Não há um vilão pré-definido, nem uma linearidade de jornada do herói, pelo menos em primeiro plano. O personagem por si só se sustenta na elaboração da história e conta com o mundo externo para impulsionar as grandes viradas do longa.

São esses fatores externos que pulsam na tela para transformar o protagonista. Ao retratar uma Gotham oitentista suja, hostil e caótica, semelhante a uma Nova Iorque de Martin Scorsese em Taxi Driver, Phillips tenta estudar quais os elementos que levam um homem ao seu limite. O que faz alguém cruzar essa linha e até onde a sociedade é culpada por isso.

Dentro do tema, ele não só aborda a falta de empatia e a hostilidade de pessoas cada vez menos interessadas no próximo, como explora toda a dinâmica política, midiática e também familiar. A falta de recursos ao tratar pessoas de baixa renda com problemas psicológicos, a forma de ridicularizar pessoas em nome do espetáculo e as próprias relações dentro de casa. E mesmo sendo ambientes diferentes, eles em algum momento acabam se juntando. Um dos exemplos é a forma com que a mãe de Arthur aguarda a ajuda de Thomas Wayne, candidato a prefeito da cidade, acreditando que ele se lembrará de seus serviços na mansão e se compadecerá com a atual situação de sua família.

Joaquim Phoenix entrega diversos personagens em um só

A relação entre a mãe e ele se intensifica de acordo com o que acontece com ele tanto dentro, quanto fora de casa. Para isso, Phillips dá algumas informações para pensarmos junto ao personagem, para depois nos fazer questionar a veracidade daquilo. Num determinado momento, o público passa a duvidar de tudo o que tá acontecendo, se faz parte da realidade ou se tudo é obra da cabeça de Arthur, que passa aceitar cada vez mais sua insanidade.

Toda essa evolução do personagem é de forma seca, com uma trilha cada vez mais discreta e enquadramentos que se misturam entre planos fechados quando o personagem compartilha seus pensamentos, e planos mais abertos quando ele está num ambiente externo, deixando todo o ambiente a mostra justamente para ilustrar o que é visto do ponto de vista psicológico. E por ser tão seco, não há reviravoltas e a violência do filme ocorre da mesma maneira, gradual e orgânica, pouco gráfica, deixando ainda mais evidente que o longa não segue a fórmula de grande espetáculo, comum nos filmes de heróis.

No entanto, nada disso seria possível se não fosse a atuação magnífica de Joaquim Phoenix, que entrega seu personagem mais intenso da carreira e sabe exatamente como evoluir na trama de acordo com as diretrizes do roteiro e da direção. Sua atuação transita entre gêneros e há uma diversidade de personagens dentro de uma só pessoa, onde ele vai e volta em cada um deles de acordo com o momento da história. Ele sabe exatamente a hora em que deve causar identificação, repulsa e medo no público. As risadas variadas, que agora ganham um contexto do ponto de vista patológico, ganham tons constrangedores e por diversas vezes perturbadores.

Ainda que possa gerar interpretações distorcidas por conta das discussões na internet a respeito dos incentivos e gatilhos do enredo, é necessário ressaltar que o filme em momento algum toma partido para algum lado. Não há um endeusamento do personagem, muito menos um julgamento. Até por conta disso há, sim, uma linha tênue entre a simpatia e a periculosidade de Arthur, mas o filme a todo momento deixa claro que está falando de um personagem que, mesmo sofrendo todas as hostilidades da sociedade, o fator psicopatológico ainda é determinante e seus atos não se justificam.

E se há algum problema no filme, esse não tem nada a ver com sua diretriz, mas com algumas decisões de roteiro, como a exposição de alguns fatos que, se não fossem colocados em tela, aumentariam ainda mais a sutileza do filme e dariam ainda mais margem para interpretação. Além disso, há uma certa vontade em inserir de qualquer forma o Batman nesse contexto, o que deixa algumas sequências um tanto quanto forçadas, embora a inserção de Thomas Wayne seja importante para a trama. Ainda assim, ele é capaz de gerar uma curiosidade de como os dois se enfrentariam num futuro. São alguns pontos que destoam de toda a fineza a qual o filme se propõe por grande parte do tempo.

Resumir Coringa a um filme perigoso por conta do comportamento de seu personagem pode ser uma análise muito rasa, dada a complexidade e a dubiedade de todo o seu entorno. Mais que isso, é um filme denso, que faz pensar de maneira inteligente e intrínseca o quanto a sociedade e, principalmente, o sistema podem ser responsáveis por corromper alguém e como alguém pode atravessar a linha do aceitável nesse processo. Sobre o quão danoso pode ser o abandono e a falta de empatia, seja ela individual ou coletiva. É uma abordagem humana sobre corrosão e como lidar com ela, longe daquilo que o público está habituado a ver sobre o personagem já estabelecido há 80 anos.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.