Dois Papas debate valores e questões sobre a igreja com bom humor

Vinicius Machado
SALA SETE
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4 min readDec 4, 2019

Em 2006, pouco antes dos cardeais votarem pelo novo Papa, Joseph Ratzinger e Jorge Bergoglio se encontraram no banheiro do Vaticano. O argentino cantarola Dancing Queen, do ABBA, enquanto o alemão, enquanto lava suas mãos, tenta entender que música é aquela, desconhecida mesmo depois de obter a resposta. Algumas horas depois, Ratzinger se tornaria Bento XVI.

Pode ser que esse encontro nunca tenha ocorrido de verdade, mas está em Dois Papas, novo filme de Fernando Meirelles e talvez seja uma das sequências que mais transmita a essência do objetivo do longa, que é desconstruir e humanizar tudo que envolve o Vaticano e suas figuras históricas.

Descontente com a forma em que a igreja católica vem sendo conduzida, Bergoglio decide se aposentar e recebe um convite do Papa Bento XVI para uma reunião, na qual ele acredita ser para efetivar sua aposentadoria. No entanto, as conversas vão além e se tornam grandes debates sobre a igreja e suas trajetórias pessoais tão diferentes.

Meirelles opta por colocar Bergoglio no centro de seu enredo, tanto que inicia o filme mostrando seus feitos pela comunidade de Buenos Aires Toda a simplicidade do cardeal argentino é colocado em tela, seja por seus atos religiosos ou pelo seu apreço pela cultura pop e sua paixão pelo futebol, item que o diretor faz questão de exaltar diversas vezes.

Do outro lado, Ratzinger é tratado como um homem frio, metódico e de poucos amigos. De origem alemã, o até então Papa admite ter vivido uma vida repleta de restrições por conta dos estudos e sua dedicação à religião. A união desses dois personagens se torna um desafio interessante e todas as questões levantadas pelo roteiro, escrito por Anthony McCarten, ganham uma humanização e profundidade pelas grandes atuações de Anthony Hopkins e Johnathan Pryce, relativamente semelhantes às figuras da vida real e que conseguem transmitir a essência de seus respectivos papeis.

O que torna Dois Papas ainda mais atrativo é a forma com que Meirelles conduz sua trama pelo enquadramento. Ao colocar os dois personagens frente a frente em um jardim, por exemplo, ele opta por usar câmeras sobre o ombro dos dois em planos fechados ou planos abertos mais distanciados. É como se ele colocasse o público como um intruso, tentando espiar o que está acontecendo.

(Imagem: Netflix)

Num mundo dividido pelo conservadorismo e o progressismo, é possível observar o quanto essas questões atingem as grandes instituições. Além de entender um pouco mais do processo interno do Vaticano, o espectador também pode ver de uma maneira clara a forma como os assuntos são abordados e quais as filosofias da Igreja Católica, tudo com muito didatismo e linguagem que se encaixe popularmente. E mesmo quem não tem muita familiaridade com a religião pode se interessar pelo filme.

Entre tantos conflitos, os diálogos são sempre bem-humorados, exaltando o carisma de Francisco e também tornando um tanto quanto cômico a amargura de Bento. Enquanto um busca trazer a igreja para os novos tempos a fim de cativar o público mais jovem, o outro enfrenta uma crise institucional e diversas acusações a cardeais envolvendo abusos sexuais. Assuntos sérios que se juntam ao cômico com muito dinamismo.

Um dos jogos mais interessantes de Meirelles é como ele contrapõe os dois protagonistas a todo momento. Quando não são os debates, são suas trajetórias de vida. Com depoimentos reais de pessoas comuns, o diretor levanta a hipótese sobre Bento ter apoiado o partido nazista, mas é justamente Francisco que tem um passado nebuloso em relação à ditadura Argentina. E são esses momentos em que o filme humaniza e dessantifica ainda mais seus personagens, tornando dois homens quase divinos em pessoas comuns, falhas e passíveis de erros.

A trajetória de Jorge Bergoglio até se tornar o Papa Francisco carrega uma história de culpa (Imagem: Netflix)

Por outro lado, o filme peca pelo excesso de flashbacks na intenção de contar uma história completa sobre a trajetória de Francisco. Apesar de ajudar a conhecer melhor sua história e dar um gancho para gerar as viradas de roteiro, há uma quantidade enorme e didática demais, o que alonga ainda mais o filme.

Há quem diga que Dois Papas é uma propaganda da Igreja Católica, e pode até ser, mas nem por isso deixa de ser um grande filme sobre duas figuras eternizadas na história. Com a ajuda de dois grandes atores afiadíssimos em seus papéis, Meirelles entrega seu melhor trabalho na carreira. Um filme que traz assuntos complexos sobre a religião institucional de uma forma bem-humorada e leve, que faz com que qualquer um consiga compreender as questões levantadas, sejam elas sobre a crise do Vaticano ou sobre a final da Copa do Mundo entre Argentina x Alemanha.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.