Mostra SP: Apenas Mortais

Vinicius Machado
SALA SETE
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3 min readOct 20, 2020

O Mal de Alzheimer é uma doença que já foi retratada algumas vezes nos cinemas. Os mais conhecidos, Para Sempre Alice (2014), Amor (2012), trazem toda a angústia que a doença causa na família, mas, principalmente, em quem sofre deste problema. São obras delicadas, premiadas, e abordam questões sobre a doença, utilizadas até mesmo em estudos acadêmicos. Agora, Apenas Mortais, filme de Liu Ze, traz uma perspectiva interessante sobre o tema, olhando muito mais para a cultura oriental. Baseado no romance de Li Yanrong, o filme conta a história de Xian Tian, uma mulher que decide voltar à sua cidade natal para cuidar do pai, que sofre de Alzheimer. Ao longo do tratamento, Xian passa por mudanças, que envolvem sua vida profissional e seus relacionamentos.

Ao contrário dos filmes em que citei, Liu Ze procura abordar muito mais a visão das pessoas ao redor ao invés de dramatizar o personagem doente. As situações em que ele está inserido são tristes, mas é possível observar um drama muito maior com que precisa estar ali o tempo todo prestando assistência ou, mesmo que ausente, esteja disponível financeiramente, já que os tratamentos não são baratos e cada vez mais se faz necessário um cuidador.

Ao longo desta jornada, Xian passa por um processo de amadurecimento interessante: sua relação com a mãe, com a irmã, com o trabalho e também com o namorado vão tomando outros tons. Ze a trata como uma borboleta a desabrochar, incluindo simbolismos em tela. Sua visão de mundo já não permanece a mesma do início e talvez esta seja a parte mais instigante para o espectador, acompanhar este processo de perto. Outros simbolismos também fazem parte do filme, como as conversas sobre a morte, que levam o nome do filme, inclusive, e também o confronto entre as gerações, de como as tradições orientais se chocam com as pessoas mais jovens. O diretor consegue dar sinais de reflexão mesmo que o filme pareça ser tudo muito bem ajustado, em seus devidos lugares.

A narrativa de Ze, aliás, consegue se dividir muito bem, sempre concentrada na figura de Xian, a respeito de sua vida. Em determinado momento, o filme deixa um pouco de lado as fotografias claras e azuladas de hospital para dar uma cor mais viva para sua rotina. É justamente neste ponto em que Tang Xiao ran mostra seu talento de atuação, pois ela consegue transitar muito bem entre esses espaços.

A evolução da trama é tão fluida, que sobra espaço para o diretor explorar um lado espiritual e alguns elementos de terror dentro do filme. A partir do último terço do filme, a câmeras escurecem um pouco mais e o trabalho dos espaços também se torna mais importante, mesmo que o espectador não espere por um susto ou algo horripilante. Aqui, este recurso serve somente para servir à narrativa e ao debate gerado pelos personagens. Se antes o filme tinha um pé no chão e uma certa rigidez na sua abordagem, os últimos cinco minutos do filme migram para uma outra perspectiva, mais sobrenatural e surpreendentemente coesa, já que tudo o que está sendo mostrado já teve, ao menos, uma pincelada durante o filme.

Apenas Mortais é uma obra extremamente delicada, sensível, e com uma das cenas finais mais belas e bem dirigidas dos últimos anos. O trabalho de câmera, o tom das atuações, o uso do som, a subjetividade, tudo é realizado com muito primor, para coroar uma produção que, além de emocionar, também entrega uma reflexão e apresenta uma cultura diferente ao público ocidental

Filme visto na cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.