Mostra SP: Bem-vindo à Chechênia

Vinicius Machado
SALA SETE
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3 min readOct 20, 2020

Em abril de 2017, o jornal russo Novaya Gazeta realizou uma matéria que denunciava ao mundo que estado da Chechênia vinha promovendo uma série de expurgos anti-LGBTQ, em que, ao menos cem homens homossexuais eram detidos e levados para prisões secretas, campos de concentração, eram torturadas e posteriormente, mortas. O caso gerou comoção e, logo depois teve a confirmação por parte de uma organização chamada Human Right Watch. Desde então, este expurgo passou a ser acompanhado e se tornou um documentário.

Dirigido por Dave France, Bem-Vindo à Chechênia traz David Isteev, coordenador do programa de emergência da organização Rede LGBT da Rússia, ao lado de outros colegas ativistas, arriscando suas vidas para proteger e refugiar diversos chechenos homossexuais, que se tornaram alvo das autoridades e até mesmo da família.

O documentário, produzido pela HBO, segue o mesmo padrão de outros documentário da casa, seguindo a linha narrativa de uma jornada de um ou mais personagens, com depoimentos, gravações caseiras e momentos que envolvem tensão. No entanto, este acompanha uma certa inovação tecnológica, em que, por meio de deep-fakes, os rostos dos personagens são remodelados para preservar suas identidades. É uma alternativa interessante, que não incomoda em quase nada e é muito bem-vinda para substituir os famosos borrões de edição.

France contextualiza todo o movimento político em torno do expurgo e seleciona os responsáveis, de maneira corajosa e afrontosa, como é o caso de Ramzan Kadyrov, um autocrata e ditador checheno, indicado pelo próprio Putin ao governo e que flerta com o extremismo de maneira explícita. É um cara debochado, inescrupuloso. Em uma entrevista por exemplo, ao ser questionado sobre esta agenda anti-LGBTQ em seu país, Kadyrov foi enfático. “Não temos esses tipos de pessoas aqui. Não há nenhum gay. Se houver algum, podem levar para o Canadá.

O clima de tensão se mantém por todo o filme, principalmente quando seleciona alguns personagens para destacar a narrativa individual de cada um, um deles pronto para viajar e deixar o país, uma mulher em busca de um visto e até mesmo um homem que decide se manifestar na imprensa sobre os abusos físicos que sofreu durante o sequestro — neste ponto, faz ainda mais sentido a opção de mascarar digitalmente os outros. Todos ali, mesmo digitalizados, despertam uma comoção do público, ainda mais com as câmeras aproximadas, registros pessoais e depoimentos, nem sem fáceis de encarar.

O que também não é fácil são as sequências de tortura e agressões físicas, incluindo uma tentativa de suicídio. Embora o objetivo do documentário seja chocar e conquistar seu espaço por meio disso, chega a ser um tanto quanto irresponsável o próprio documentário não contar com um aviso em seu início de imagens que podem gerar gatilhos e crises de ansiedade. Mesmo assim, se o fizesse, a opção por mantê-las em tela é questionável.

Bem-vindo à Chechênia ganha seu espectador pela urgência do tema e pelo confronto jornalístico, se tornando uma obra teoricamente essencial para que o mundo veja as atrocidades em relação às minorias e não só em países que praticam atos de violência. Antes dos créditos, o filme ainda informa que os EUA, sob o governo de Donald Trump, recusaram o pedido de refúgio de algumas vítimas, fazendo valer, como nunca o ditado alemão: “Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa”.

Filme visto na cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.