Mostra SP: Berlin Alexanderplatz

Vinicius Machado
SALA SETE
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4 min readOct 26, 2020

Berlin Alexanderplatz é um clássico a literatura alemã. A romance da década 20, escrita por Alfred Döblin, conta a história de um cidadão que, depois de cumprir pena por assassinato, se vê livre para começar uma nova vida. Porém, ele se envolve com pessoas que o levam para outros rumos. O livro trazia uma Alemanha enfraquecida pós Primeira Guerra Mundial, num retrato de uma população em busca de se reerguer em uma terra de poucas oportunidades. Nos anos 80, foi adaptado por Rainer Fassbinder, em uma série de 14 episódios, considerado hoje um de seus projetos mais aclamados. Agora, em 2020, a obra ganha uma nova roupagem, abordando uma Berlim atual, em que a crise está longe das trincheiras, mas próxima às fronteiras imigratórias.

Nesta nova adaptação, dirigida e roteirizada pelo alemão Burhan Qurbani, Francis é um refugiado vindo da África Ocidental e acaba se estabelecendo em Berlim, mas sem visto de trabalho ou passaporte. Porém, com muitas portas fechadas, ele, que tinha como objetivo viver de maneira decente, acaba se envolvendo com Reinhold, um traficante excêntrico e manipulador. Ao longo do caminho, ele encontra figuras importantes na sua trajetória, como Mieze, uma prostituta pela qual se apaixona, gerando um certo ciúme em Reinhold.

Ainda que seja uma adaptação com elementos completamente diferentes da obra original, é possível encontrar semelhanças na estrutura. Além do mesmo cenário, e os mesmos nomes dos personagens, as situações em que eles se envolvem também possuem uma certa relação. Se antes a prisão por assassinato era o grande peso a ser carregado por Francis, agora a fuga do continente africano e um acontecimento trágico neste trajeto se tornam os motivos das angústias. O mesmo vale para as oportunidades, em que Berlim, uma das cidades mais estáveis da Europa, se torna um empecilho nas oportunidades a quem chega, principalmente aos refugiados, numa crise que assola todo o continente Europeu.

Mesmo assim, apesar desta abordagem sempre estar presente na trama, há pouca profundidade neste debate, fazendo com que estes detalhes sejam somente um pano de fundo para uma narrativa. O objetivo aqui é o foco completo em seus personagens e como eles lidam com suas próprias situações, mesmo quando o choque entre eles acontece. Para isso, há sempre uma câmera em movimento, mas próxima a seus personagens, com uso de cores e texturas para tratar cada uma das situações. É um filme esteticamente bem feito, com uma semelhança a videoclipes, e não há qualquer sequência fora do contexto em suas três horas de duração.

Qurbani realiza contrastes interessantes a respeito da cidade. Berlim é exuberante, que mistura história com tecnologia, onde é possível encontrar resquícios históricos em maio a prédios espelhados. Para trazer esse valor estético e contextualizado, o diretor usa takes aéreos e planos abertos, cheios de luzes e movimento. Já quando quer trazer a realidade para o micro, ele abusa das abordagens em boates, sequências em locais fechados, apartamentos, parques e ruas pouco ampliadas, como se aquilo não estivesse exclusivamente dentro da cidade alemã, podendo acontecer em qualquer lugar do mundo.

A mistura entre a estética e a trama ganha contornos interessantes e conseguem prender o espectador durante todo o tempo. Há sempre uma necessidade de entender qual será o próximo passo dos personagens, causando uma certa apreensão. A construção de Francis (Welket Bungué) é capaz de gerar empatia com o público, da mesma forma em que Reinhold (Albrecht Schuch) atrai o oposto. O desenvolvimento de Schuch, aliás, é um diferencial enorme e muito dos méritos do filme estão depositados na capacidade de manipulação do personagem. Reinhold é um homem com problemas psicológicos e no começo pode até soar irritante, mas há uma ascensão no personagem que beira o odiável, positivamente falando. É um vilão tão bem construído que é possível até mesmo considerar o filme uma espécie de thriller, onde ele é capaz de gerar dúvidas e expectativas no próprio público.

No entanto, embora as duas horas do filme funcionem perfeitamente dentro de todo o contexto, é próximo ao seu desfecho que o longa encontra suas principais dificuldades. A volta na trama para justificar algumas atitudes dos personagens se torna questionável, principalmente quando Mieze (Jella Haaze) passa a ser figura presente. Sua abordagem como somente um interesse amoroso no protagonista tira um pouco da força que o filme carrega dentro de suas questões. Além disso, a personagem ainda executa diversas decisões inverossímeis, e que só acontecem para que o filme possa ser finalizado.

Berlin Alexanderplatz conta com uma história poderosa, uma estética deslumbrante e encontra meios interessantes de adaptar um clássico ao período atual sem perder a essência da obra original. É um filme que não se preocupa em trazer a todo momento a crise imigratória para o primeiro plano, mas ainda assim discute isso pelas ações de seus personagens. Uma pena que as decisões finais sejam tão superficiais ou feitas para cumprir tabela, ainda mais com um epílogo extremamente desconexo com tudo o que o filme coloca. Ainda assim, além de ser uma experiência interessante, pode servir como inspiração para (re)visitar a obra de Fassbinder.

Filme visto na cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.